Moda   Tendências  

Será o feio o novo bonito?

25 Nov 2020
By Ana Murcho

Tempos houve em que usar umas Crocs de duplo salto com um vestido de lantejoulas era considerado impensável, digno de multa por essa instituição invisível chamada “polícia da moda." Not anymore.

Tempos houve em que usar umas Crocs de duplo salto com um vestido de lantejoulas era considerado impensável, digno de multa por essa instituição invisível chamada “polícia da moda." Not anymore. Esse look pode até nunca vir a fazer parte dos manuais de estilo, pelo menos dos mais tradicionais, mas tornou-se tão banal como ir às compras de calças de pijama, sweatshirt carcomida de borbotos e botas de pelo. Ok, quase tão banal.

Final do desfile primavera/verão 2019 da Gucci. Artwork by Mariana Matos. © ImaxTree
Final do desfile primavera/verão 2019 da Gucci. Artwork by Mariana Matos. © ImaxTree

Em novembro de 2017, o conceituado jornal Financial Times publicava um artigo cujo título, “Why Is Fashion So Ugly?” não deixava margens para dúvidas. O texto, assinado por Lou Stoppard, que não era propriamente uma novata nestas andanças, arrancava com um resumo do (suposto) estado de calamidade da indústria: “Formas estranhas, silhuetas gigantescas, sapatos desajeitados e acessórios de cabeça esquisitos. O hediondo está tão hot right now.” A ilustrar a dissertação – uma entre as centenas que enchem a Internet sempre que o tema é ugly-pretty, esse termo cunhado para resumir o misto de feiura e boniteza que primeiro se estranha e depois, com alguma sorte, se entranha, e que nos últimos anos tem tomado de assalto as principais passerelles de todo o mundo – estava um dos looks da coleção primavera/verão 2018 da Gucci, revelada poucas semanas antes.

"A Moda prospera na provocação. Ela prospera na novidade." Paul Surridge

Adenda: nem era dos mais insólitos. A jornalista, que assumia ela própria possuir roupa “bastante feia”, concluia que muitos dos coordenados apresentados nos desfiles para a estação quente de 2018 eram “deliciosamente horríveis.” Eis parte do seu desalento: “Christopher Kane, o designer responsável por reabilitar as Crocs como uma declaração de estilo, no ano passado, ofereceu sapatos que pareciam esfregões de limpeza.” Dito assim parece pavoroso, de facto. Mas eis que surge em seu auxílio Paul Surridge, à época diretor criativo da Roberto Cavalli, com uma explicação para tanto nonsense: “A moda prospera na provocação. Ela prospera na novidade. Essa epidemia de peças deliberadamente feias ou estranhas é sobre desafiar essa obsessão com um estilo de vida artificial. É um sinal dos tempos, quando o que parece atual é algo que não é tão perfeito e não é tão insípido.”

 

Será que a indústria, e os seus mais importantes criadores, foram acometidos por uma crise de desleixo? Ou será que esta aparente onda de peças menos bonitas (e o conceito de belo é tão lato como o de amor, por isso se o combinado mum jeans + dad trainers pode ser uma espécie de visão do inferno para uns, ele também pode significar o supra-sumo do coolness, para outros) é apenas reflexo do estado mental do consumidor, que está cansado de artifícios e que pretende, cada vez mais, encontrar um estilo próprio, seu, único, individual?

“O feio é atraente, o feio é emocionante. Talvez porque seja mais recente.” Miuccia Prada

De acordo com Stoppard, há uma teoria de longa data que defende que a feiura e a inovação andam de mãos dadas – como se uma não existisse sem a outra. Relembremos as palavras de Miuccia Prada, sua majestade, rainha de tudo o que é não-bonito, mas ultradesejável, proferidas em 2012: “O feio é atraente, o feio é emocionante. Talvez porque seja mais recente.” Se há alguém que nunca teve receio de pisar o risco é precisamente Miss Prada, que tem noções bastante claras sobre o que deve ser uma coleção de pronto-a-vestir. Desde estampados improváveis a tecidos aparentemente kitsch, a criadora italiana nunca receou espezinhar ou ultrapassar os limites do good taste.

A esposa de Paul Poiret com um vestido desenhado pelo seu marido em 1919. © Getty Images
A esposa de Paul Poiret com um vestido desenhado pelo seu marido em 1919. © Getty Images

O mesmo poderia ser dito de Paul Poiret, o couturier que, no início do século XX, rivalizava com Coco Chanel, e que se manteve fiel à sua estética, mesmo quando a reação às suas primeiras obras foi pior que má: “What are these ugly experiments?” (“Que raio de experimentações são estas?”), comentou-se na House of Worth, uma das casas francesas mais antigas de Alta-Costura.

A História da Moda está repleta de exemplos do género, porém, estes dois bastam para concluir algo bastante simples: de todas as vezes que algum designer surge com um pensamento (leia-se, coleção) que vai contra o sistema, é muito provável que a primeira reação seja pensar que aquilo que ele/ela está a fazer é estranho. E, em última instância, feio. Pouco importa se são os bonés Von Dutch que Paris Hilton usava nos anos 2000, e que vão regressando de mansinho, as sandálias de samaritano usadas com meias, que agora calçamos sem vergonha, os calções de ciclista, que tentamos a todo o custo incluir no nosso #ootd, as botas Ugg, que servem de uniforme tanto a Sienna Miller como a Kate Moss.

Voltando às Crocs, que ganharam estatuto high-fashion graças a Kane e, posteriormente, à Balenciaga (pelas mãos de Demna Gvasalia), e tal como referia Joelle Firzli, historiadora, em entrevista à versão digital da CR Fashion Book, “a moda está a forçar as regras ao extremo e a jogar no limite do que é considerado bonito, porque, bem, porque pode. […] O que é relevante é que todos nós reagimos a ela. A feiura na moda torna a moda relevante."

No dia em que Alessandro Michele se sentou para conversar com Nick Haramis, diretor da icónica revista Interview, em finais de 2018, tinha duas unhas pintadas de vermelho. Isto é relevante, porque prova que o designer é um praticante ativo desse chaos magic que rodeia todas as suas criações. A dada altura, a entrevista centrou-se, precisamente, sobre a inspiração, sobre aquilo que leva alguém a inventar, e a criar, algo novo.

"Percebi como era fofo eu ter estas mãos enormes com duas unhas pintadas de vermelho." Alessandro Michele

“Mas afinal o que é que significa inspiração? Nada. Como é possível que seja apenas uma coisa? Num momento podes sentir-te uma pessoa, e uma hora depois és outra pessoa. Estava a pintar as minhas unhas no outro dia…” E foi aqui que o diretor criativo da Gucci, cargo que ocupa desde 2015, foi interrompido: “But why just two of them?”, atirou o jornalista. Porque, além de ter um fraquinho por verniz desde criança, vermelho é a cor que a mãe de Michele usava e, segundo ele, “é punk.” E também porque, a dada altura, ficou sem unhas para pintar, já que estava a escolher tons para a maquilhagem de um desfile. “E então percebi como era fofo eu ter estas mãos enormes com duas unhas pintadas de vermelho. Isto fez-me sentir tão feliz e chique porque é tão errado. Acho que não fiz um trabalho muito bom, no entanto. Estou a ficar velho e não consigo ver se não tenho os meus óculos.”

De acordo com os cânones tradicionais da moda, as propostas de Michele são, à falta de melhor expressão, “inesperadas.” Começaram por ser etéreas, depois tornaram-se extravagantes, agora são simplesmente surreais. Ou freaks, como decidiram os jornalistas presentes no seu desfile outono/inverno 2018, onde alguns modelos seguravam réplicas das suas cabeças…cortadas, enquanto outros carregavam pequenos dragões ou cobras – a não ser que tenha estado debaixo de uma pedra nos últimos dois anos e meio, é impossível não saber ao que nos referimos. A roupa, no essencial, era uma maravilhosa trip de ácidos que aglutinava, no mesmo espaço, influências de várias épocas e de várias culturas. Era isso e muito mais. Só não era “bonita.”

"Nunca sinto necessidade de dizer algo novo. É novo só pela forma como o digo. É novo porque ocorre no momento certo." Michele

Como se isso fosse um problema… Numa indústria onde convivem nomes como Rick Owens, Gareth Pugh ou Vivienne Westwood, cuja originalidade não vive sem uma certa extravagância, ligar a sirene porque o italiano decidiu transformar a Gucci numa espécie de Terra de Oz seria uma loucura. “Tento sempre, de forma muito delicada, juntar coisas que estão sujas com coisas que estão completamente limpas, coisas da burguesia e coisas que pertencem ao gueto, coisas que estão completamente danificadas com coisas que estão bem feitas.” Assim explicava Michele, naquela entrevista, o seu modus operandi. E continuava: “Nunca sinto necessidade de dizer algo novo. É novo só pela forma como o digo. É novo porque ocorre no momento certo. Se eu ler um poema à tua frente, agora, mesmo um muito antigo, seria novo para nós, embora não o seja. […] Arte é conexão. Nenhum artista ‘de verdade’ deseja fazer uma peça e fechá-la numa caixa para que ninguém toque nela. Da mesma forma, a moda tem a ver com conexão. Já não é suficiente fazer roupas chiques e colocá-las numa boutique. A moda deve estar viva. Ela vem das ruas, da música, dos clubes.”

 

É por isso que, atualmente, até os espectadores mais desatentos reagem com apreço à sua ousadia. Seja na linha de prêt-à-porter, que apela a uma noção genderless, seja na mais recente Gucci Beauty, que é um hino à beleza imperfeita e natural, a sabedoria de Michele está em saber ler, muito antes de outros pares, os sinais dos tempos. As mulheres continuam a querer usar stilettos nude e vestidinhos pretos. Os homens continuam a desejar ter, no seu guarda-roupa, pelo menos um fato clássico, de bom corte. Só que isso não os impede de (quererem) explorar outros níveis do seu universo estético e sensorial, e ousar, aqui e ali, com peças que, à partida, não fariam qualquer sentido até alguém lhes  mostrar que existe um novo caminho a seguir. E esse caminho poder-se-á chamar, para nosso deleite, ugly-pretty.

O termo remonta a 2014, quando a indústria ficou à beira de um ataque de nervos com uma (supostamente nova) tendência “feia-bonita”, que apelava à mistura de tudo o que, até então, estava “certo” e “errado” na moda. Pelas passerelles surgiram vestidos ultradelicados combinados com sandálias e sapatos que eram uma afronta à noção de elegância, viram-se enfeites kitsch costurados em tudo o que eram blusas e camisolas de malha, a mistura de padrões reapareceu, num mix and match que magoava a vista dos mais sensíveis, e as defuntas parkas, que pensávamos ter enterrado nos idos anos 80, ganharam as proporções do símbolo da Michelin.

Primeira reação: os deuses devem estar loucos. Segunda reação: o mais espetacular dessa minirrevolução foi encorajar o público e, em última instância, o comprador, a romper com as suas noções previamente concebidas sobre o que significa ser “feio", e a não ter medo de brincar com essas novas peças – estrambólicas, sim, mas que no fim de contas surgiram para o fazer arriscar um pouco mais. Para abalar os seus preconceitos. Para o fazer sonhar. É isto, sobretudo, que sustenta e justifica esta obsessão pelo ugly-pretty – a sua capacidade para nos fazer sonhar. Até porque, como é sabido, nos sonhos somos todos maravilhosamente, magicamente, belos. Mesmo com umas Crocs de duplo salto. Principalmente com umas Crocs de duplo salto. 

Ana Murcho By Ana Murcho

Relacionados


Guestlist  

Tastes like summer, smells like Victoria

17 Apr 2024

Atualidade   Curiosidades  

Celeste Caeiro, do Franjinhas para os livros de História

17 Apr 2024

Moda   Tendências   Compras  

Trend Alert | As carteiras essenciais para esta primavera

16 Apr 2024

Palavra da Vogue  

O que lhe reservam os astros para a semana de 16 a 22 de abril

16 Apr 2024