No Velho Oeste – e no novo também – não existem atores principais nem atores secundários. No Velho Oeste – e no novo também – só existem atores. Bang bang. The end.
No Velho Oeste – e no novo também – não existem atores principais nem atores secundários. No Velho Oeste – e no novo também – só existem atores. Bang bang. The end.
Quando o tema é sétima arte, não há discussão que dê mais prazer ao mais comum dos mortais do que esta: afinal, quem foi o melhor ator em Once Upon A Time... In Hollywood? Foi Leonardo DiCaprio, o nomeado ao Óscar (supostamente) mais cobiçado no que a representação diz respeito? Ou foi Brad Pitt, um dos candidatos a vencer na categoria de Melhor Ator Secundário? Quem diz o nono filme de Quentin Tarantino pode dizer The Two Popes, um filme que faz o mais comum dos mortais questionar se Jonathan Pryce está na categoria de Melhor Ator porque a sua prestação foi melhor que a do seu par Anthony Hopkins, que partilha a de Melhor Ator Secundário com Pitt, Tom Hanks e Al Pacino. Quando o tema é sétima arte, o ator secundário dá pano para mangas. Porque é que é secundário? É porque fala menos? É porque tem menos relevância na história? É porque não tem tanto mérito? Porque é que existe sequer esta distinção?
“Quando os Óscares começaram [no final dos anos 20] existiam nomeações para Melhor Ator e Melhor Atriz que incluíam aquilo que hoje chamamos como performances secundárias”, escreveu David Thompson num artigo do The Guardian, intitulado The Importance of Supporting Actors. “Frank Morgan em Affairs of Cellini (1934) e Franchot Tone em Mutiny on the Bounty (1935) são performances secundárias, notavelmente menos proeminentes que Fredric March, Charles Laughton ou Clark Gable nos mesmos filmes. Mas foi somente em 1936 que a categoria de supporting foi introduzida nos Óscares, e tal só aconteceu porque o recém-formado Screen Actors Guild tinha conseguido atrair membros da Academia. Foi com o intuito de reconquistar essas pessoas que a Academia introduziu as categorias de supporting e, consequentemente, institucionalizou este tipo de acting.”
Patrícia Vasconcelos nasceu em Lisboa e é casting director há trinta anos. Do seu impressionante currículo saltam à vista uma série de projetos nacionais e internacionais, da televisão ao cinema, no qual foi responsável pelo casting de filmes como Mistérios de Lisboa, de Raul Ruiz, Parque Mayer, de António-Pedro Vasconcelos, e Love Actually, de Richard Curtis, sem esquecer o seu papel como fundadora e membro da Direção da Academia Portuguesa de Cinema, onde criou e desenvolveu o projeto Passaporte – uma iniciativa que celebra a sua quinta edição este ano, e pretende dar a conhecer atores portugueses a casting directors de todo o mundo. “Eu não adoro a designação do ator secundário, mas é a designação que existe”, começa por dizer, numa conversa por telefone, à Vogue. “Porque acho que não há atores secundários, há atores. Como não há pequenos papéis, há papéis, e esses são dados a um ator que depois faz deles uma coisa grandiosa, de preferência, não é? E é por isso que a escolha é tão importante.”
"A mim, por exemplo, dá-me mais gozo distribuir esses papéis do que os papéis dos protagonistas. Porque para mim são eles [os supporting actors] que fazem o pilar do filme."
Na opinião da casting director, que curiosamente decidiu aventurar-se pelo desconhecido mundo do casting por causa da escolha dos atores secundários – “comecei a trabalhar por causa disso, por causa da má escolha de um ator secundário” -, “o [termo] supporting actor faz muito mais sentido, na medida em que [é ele que] apoia o elenco principal. É nesse sentido de apoiar. A mim, por exemplo, dá-me mais gozo distribuir esses papéis do que os papéis dos protagonistas. Porque para mim são eles [os supporting actors] que fazem o pilar do filme. Uma coisa são os protagonistas, os principais, e depois os outros são os pilares, são os que assentam, para mim, o próprio do filme, são as fundações. Mas isto é a minha visão. Eu dou muito importância às escolhas desses papéis”.
Como explica Patrícia Vasconcelos, “a importância dos mesmos depende sempre da história” – mas, a seu ver, aquilo que caracteriza um bom ator secundário “são as mesmas características de um ator, seja protagonista ou secundário; ou seja, tem que ser inteligente, tem que ter disponibilidade para ouvir, tem que ter criatividade. As bases são as mesmas”. E vai mais além: “Normalmente, quando é bem feito, quando o ator é bem escolhido, e bem representado, nem se repara [que é secundário], ou seja, o carro anda a direito e não desvia. Quando é mau, normalmente, as pessoas reparam. ‘Ei, olha aquele ali que é tão mau’. Mesmo com a escolha da figuração, que muitas vezes é menosprezada ou menos cuidada... lembro-me sempre de uma cena terrível nesse sentido, que aconteceu numa série: há um cocheiro, um cocheiro, que está só a conduzir a charrete, e enquanto os protagonistas iam atrás e estavam a ser assassinados, ele estava impávido. Isto não pode acontecer. Até um figurante, que pode não falar, tem que saber estar no sítio certo, a fazer a coisa certa, e tem que receber indicações”.
"Normalmente, quando é bem feito, quando o ator é bem escolhido, e bem representado, nem se repara [que é secundário], ou seja, o carro anda a direito e não desvia. Quando é mau, normalmente, as pessoas reparam."
E esse sentido de right place at the right time é algo que fascina a casting director desde sempre. “No fundo, aquilo que me interessou [quando comecei a fazer casting] foi encontrar a pessoa certa para o sítio certo. Porque no fundo o cas- ting vem de tudo: quem vende casas também é casting, encontrar a casa certa para a pessoa certa, ou encontrar a alimentação certa para a pessoa certa. Acho que é isso que me motiva”, conta. “Às vezes eu vejo assim uma pessoa fora do seu fato, ou seja, no sentido em que às vezes uma pessoa vê uma coisa na rua e pensa, ‘ai, ficam-lhe tão bem aquelas calças, vou comprar igual’, mas a nós se calhar não fica tão bem. Eu acho que é isso que me fascina, é conseguir encontrar as características certas de uma pessoa, para encaixar naquele papel. Eu acho que começa tudo pelo olhar, por uma certa atitude que a pessoa já tem, à partida, mas depois é construído com o figurino, o decor da casa, tudo aquilo tem que ser complementado. À partida eu escolho a pessoa, eu digo que aquela pessoa é a pessoa certa, mas depois há um todo, há a maquilhagem, o cabelo, a roupa, o decor. Tudo isso vai construir esse tal supporting actor, e isso é fascinante.”
Um processo de construção que, como defende Patrícia, não acontece se não existir criatividade – e trabalho de equipa. “Às vezes faço assim umas perguntas que parecem absurdas, mas para mim não são. Por exemplo, estou completamente a ver o género de pessoa que aquele realizador descreveu no guião, mas depois faço assim uma questão que o deixa um pouco sem jeito: ‘Que género de relógio usaria? Que tipo de relógio? É um Rolex, é um Swatch, ou não tem?’ Para mim é um pormenor importante. É por isso que gosto de observar as pessoas, é isso que me inspira”.
E continua: “Ontem estava a distribuir um casting de um filme franco-português que estou a fazer, e há um personagem que está descrito como ‘amigo do protagonista, não se vêem há vinte anos, encontram-se na rua outra vez, quando o protagonista chega a Lisboa, e encontra-o, fazem uma grande festa, mas esse tal amigo, o que está em Lisboa, está completamente diferente, tem uma camisola dos Ramones, tem assim um estilo engraçado.’ Ou seja, tem pouco mais do que isto. O diálogo é que depois me ajuda a tentar encontrar que fisionomia é que eu acho que poderia ser aquele homem. É um personagem que eu adoro porque ele diz três ou quatro coisas, mas eu acho fascinante. E então eu estava a perguntar ao realizador: ‘Como é que você o vê?’ E ele diz-me: ‘Olha, pode ser alto, pode ser baixo, pode ser não sei o quê, não tenho assim uma grande ideia.’ E eu disse: ‘Este personagem faz-me lembrar o personagem do Notting Hill, do roommate, que de certeza que estava descrito de uma forma que nem era muito interessante. No entanto, quando o casting director teve a ideia daquela personagem, o próprio personagem ganhou relevo.’ É isso que me fascina no casting.”
"Até um figurante, que pode não falar, tem que saber estar no sítio certo, a fazer a coisa certa, e tem que receber indicações."
Num mundo de infinitas possibilidades, é nestes papéis de “suporte” que Patrícia Vasconcelos também encontra espaço para imaginar aquilo que, às vezes, ainda parece inimaginável. “Tenho andado muito ativa no que diz respeito a estes papéis, dos supporting actors, serem uma certa intervenção social, imagine”, diz a casting director. “Porque é que não pode ser indiano? Rececionista num hotel? Pumba, porque não? Ou porque não vir de cadeira de rodas? Porque não? Desde que não desvie o espectador a ir por outro caminho e a fazer uma leitura que não é suposto ser feita – ou seja, não tem mais leitura do que isso, ele só está numa cadeira de rodas, ponto final, é um ser humano.”
Sente que o espectador tem uma expectativa cada vez mais elevada no que toca a diversidade no grande ecrã? “Sinceramente, na maior parte das vezes, acho que o espectador nem sequer se apercebe. Ou seja, não entra logo”, defende Patrícia. “Por exemplo, a série Peaky Blinders. Eu conheço bem a casting director, e ela faz uma intervenção social superforte. Como parte de uma história que não existe – ok, há um bocadinho do plot que é baseado numa história verdadeira –, o resto ela pode criar à vontade dela. Aquele personagem negro, não estava lá dito que era negro. Ela é que o pôs. E porque não?”, questiona a casting director.
"Nós às vezes lutamos muito por estas ideias. É uma luta. E a criatividade de um casting director é muito importante, é uma coisa pela qual eu luto muito em Portugal."
“Mas isto não é uma coisa pacífica, atenção. Nós às vezes lutamos muito por estas ideias. É uma luta. E a criatividade de um casting director é muito importante, é uma coisa pela qual eu luto muito em Portugal. E ainda há muitos produtores e realizadores que gostam de fazer os castings sozinhos, o que é completamente legítimo, mas eu muitas vezes acho que eles ainda não percebem a importância da criatividade de um casting director. Não é só chutar nomes, é ajudar a pensar, em conjunto. Eu só ponho ideias em cima da mesa, e gosto de refletir sobre os personagens. Há uma reflexão importante sobre os personagens, tem que se pensar. Por exemplo, no Parque Mayer fiz questão de pôr o Miguel Seabra, que tem uma paralisia numa parte do corpo, como o porteiro do Parque Mayer. E foi espetacular. É essa parte da criatividade que eu gosto, é algo que me fascina no meu trabalho.”
Como defendia Patrícia Vasconcelos, não existem atores secundários, mas sim atores – basta olharmos para as infinitas listas de nomeados aos prémios da sétima arte para percebermos que os nomes que disputam as categorias de lead e as categorias de supporting vão fluindo com a mesma delicadeza da imagem em movimento. Al Pacino, por exemplo, foi indicado à estatueta dourada de Melhor Ator cinco vezes (venceu o Óscar em 1993, com o filme Scent Of A Woman), e nomeado à categoria de Melhor Ator Secundário quatro vezes. Meryl Streep é outro exemplo sonante: dezassete nomeações a Melhor Atriz (das quais duas se traduziram em vitórias) e quatro nomeações a Melhor Atriz Secundária (uma delas representativa de uma estatueta dourada).
Qualquer que seja a categoria, como defendia também Patrícia Vasconcelos, se a performance for boa, as linhas esbatem-se por completo – Anthony Hopkins tem quinze segundos de antena em The Silence Of The Lambs, e é a imagem dele que nos vem à cabeça quando pensamos na obra cinematográfica. “Não consegue imaginar o Mamma Mia! sem a Meryl Streep. Se fosse outra pessoa era o outro filme”, remata a casting director. “O ator depois apodera-se completamente do personagem, e isso é muito giro. Os atores... eles são de uma entrega completa. É de uma entrega impressionante! Eles entregam-se, despem-se, e confiam completamente no realizador. É impressionante!” E isso, no fim dos créditos, é tudo o que podemos esperar de qualquer ator ou atriz – seja lead, supporting ou um roommate tão engraçado que, ainda hoje, nos lembramos dele.
Artigo publicado na edição de fevereiro de 2020 da Vogue Portugal.
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