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Um monstro na cozinha

02 Jul 2020
By Nuno Miguel Dias

As últimas semanas foram de confinamento. Um confinamento, sublinhe-se, demasiado intenso. Durante esse tempo, o monstro decidiu sair sorrateiramente de debaixo da cama e caminhar em pezinhos de lã até à cozinha. Chama-se frigorífico, tem fortes aliados no armário das bolachas e sem um exorcismo de exercício físico diário não vamos lá!

As últimas semanas foram de confinamento. Um confinamento, sublinhe-se, demasiado intenso. Durante esse tempo, o monstro decidiu sair sorrateiramente de debaixo da cama e caminhar em pezinhos de lã até à cozinha. Chama-se frigorífico, tem fortes aliados no armário das bolachas e sem um exorcismo de exercício físico diário não vamos lá!

© Getty Images
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Como é do conhecimento dos apreciadores do género e dos meros curiosos, nos clássicos de terror acorda-se sempre às 3h. É a hora do “bicho”, do mafarrico, do capeta, do Belzebu, do jurupari, do Lúcifer, do Satanás, do chifrudo (bem, para este último aparecer, e se tudo correr bem, não há hora). De uma forma mais erudita, é a hora da possessão, que isto até o paranormal tem de obedecer a certos horários, senão era o caos organizativo e depois lá vinha a burocracia e essa nem no além se admite, muito embora seja preferência daquela malta com cara de zombie ou vampiro nos guichets das instituições públicas, como se o “Tem de preencher o formulário 55E” fosse o novo “Eu te esconjuro, maldito” e, pensando bem, até é.

Voltemos, então, às 3h da madrugada, que agora já são 3h05, o possuído já se ergueu da cama, caminhou pelo corredor da casa, muito provavelmente já desceu até à cave (um clássico de terror de Hollywood não pode ser considerado como tal se não tiver alguma cena na cave) e entretanto, lá pelas 3h15, o mais tardar, porque os espíritos malignos têm mais que fazer, provavelmente uma máquina de roupa para estender ou assim, aproveitando que hoje as chamas do inferno estão boas para secar, já têm uma maldade qualquer perpetrada com requintes de malvadez que incluem sempre objetos pontiagudos, lâminas reluzentes e, claro, sangue. Indagado na manhã seguinte por dois investigadores criminais, o assassino não se lembra do sucedido. Um dos polícias acha que ele está a mentir. O outro é mais condescendente. Lembra-se de um caso semelhante em mil novecentos e troca o passo que, entretanto, foi arquivado. Ou então tem uma prima cuja sogra tinha um amigo que sofreu da mesma coisa e decide chamar uma médium ou “investigador do paranormal” para resolver este mistério. O polícia descrente está contra, mas o mais crédulo responde com: “Lá por não conseguires explicar certas coisas não quer dizer que não existam” ou outro clichê qualquer que ficará para sempre nos anais do cinema como o “I’ll be back” do Exterminador Implacável ou, melhor ainda, “O Crime é uma doença. Eu sou a cura”, de Cobra, o Braço Forte da Lei. 

O filme que temos estado a viver chama-se Confinamento em Estado de Emergência – A vingança do Ariston. Ou SMEG, na casa de quem pode. Um frigorífico, vá. Uma máquina infernal inventada por cientistas diabólicos que, não só durante a noite como a qualquer hora do dia (a muitas, muitas horas do dia) chama por nós sussurrando, com risadinhas mefistofélicas no final de cada frase. “Vinde até mim, que estais magérrimo” ou “Que bem que te sabia agora uma sandocha dos enchidos do cozido que sobrou” ou ainda “Aquele pudim instantâneo da Boca Doce estava mesmo bom, não estava? Porque não acabas com o resto”? É então que nos erguemos do sofá, braços caídos ao longo do corpo, sem vontade própria mas lutando contra esse impulso de uma forma incrivelmente tenaz, embora não se note, caminhamos em direção à cozinha como Joana d’Arc para a pira, mas com o estilo de Maria Antonieta a caminho da guilhotina, porque temos um pijama cheio de estilo e, finalmente, abrimos a porta do eletrodoméstico do inferno. A luz que dele emana ilumina a nossa expressão de puro horror. Há morangos, iogurtes líquidos, um quadrado de queijo do ruminante fêmea que ri, até a sopa de legumes sem batata que é só preciso requentar em lume brando. Os nossos olhos, muito abertos de pavor, veem tudo isto. Mas a nossa vontade, indomável e bestial, aponta-nos a mão, que não controlamos, para uma enorme taça de mousse de manga, feita de véspera para substituir a mousse de chocolate da semana passada, porque pensámos “ao menos sempre é fruta”. Mas já que estamos ali, ainda vem, agarrada como um íman, uma tablete de chocolate branco, sem que ninguém pergunte “mas como é que isto veio aqui parar?” ou “mas que espécie de gente guarda chocolate branco no frigorífico?”. 

Entretanto, o demoníaco Ariston (ou SMEG) conta com poderosos aliados. Estão encerrados no armário das bolachas, à espera que a maldição seja cumprida e possam assim levar a cabo a única função a que estão destinados, ampliar o perímetro abdominal do hospedeiro. Há biscoitos com e sem pepitas, tipo brownie, com recheio de cremes vários e geleias imensas, mas também há pacotes de batatas fritas para “comer enquanto vejo filmes”, sabor presunto, camponesas e ketchup, consoante os filmes sejam comédias românticas, thrillers ou musicais, respetivamente. Por cima destes, os livros de receitas da nossa avó que trouxemos no enxoval (esta palavra ainda existe?) e ainda os livros de cozinha que comprámos conforme as paixões dos diversos momentos da vida, da viagem à Índia àquela ida ao restaurante de um grande chef. Possessos que estamos, damos início a um périplo de pratos que nunca antes tivemos tempo de confecionar, dado o grau de dificuldade, de impossíveis vindaloos a pudim abade de Priscos, passando por raviolis com massa que nós próprios esticamos em máquina própria. A esta fome insaciável junta-se a vontade de voltar a comer num restaurante – lembram-se, quando nos sentávamos, pedíamos a lista, hesitávamos entre os jaquinzinhos e as pataniscas, degustávamos um bom vinho e guardávamos a última pinga para depois da sobremesa? Juramos vingança e prometemos que, assim que possível, vamos pedir um farto bitoque com tudo e mais alguma coisa, incluindo os ridículos pickles em volta do prato (para quê, meu Deus, para quê?), depois lembramo-nos “mas porque não fazê-lo em casa” e é aí que descobrimos a dificuldade que é, num fogão de quatro bicos, ter o bife pronto, molho incluído, ao mesmo tempo que o ovo estrelado e o arroz branco, sem que nada arrefeça ou perca um ar minimamente apetitoso. Há certas coisas que só dão satisfação num restaurante. Até o bacalhau cozido com grão de bico não é, nem por sombras, a mesma coisa. Mas isso não impede que o tentemos. E tentemos outra vez, em busca de uma saciedade que não chega. Ali, ao fundo, geralmente no WC, está a salvação. Por si só, a balança de nada servirá. É apenas a tomada de consciência que dará origem à busca pela redenção. Que, não desanimemos, chega sempre, dependendo da persistência. 

Deve ser por tudo isto que temos visto runners e joggers com um anormal perímetro abdominal. Anormal para runners e joggers, claro. Há duas hipóteses: a) nem os desportistas escapam à voracidade que o isolamento social trouxe; b) há gente que anda a aproveitar a “permissão” de saída de casa para a prática de desporto para levar a cabo aquilo que nunca na vida tinha feito. Não é muito difícil distingui-los. Topam-se a léguas. De qualquer forma, é louvável que haja uma consciencialização de um dos muitos efeitos nefastos deste confinamento. Mesmo que se fique em casa, é por demais conveniente mexermo-nos, o mais possível. Mesmo que não vejamos quaisquer resultados práticos, o corpo sente-o. E ficamos livres para poder cometer mais um ou outro excesso. Que não deve ser cometido. Sob nenhuma circunstância. Segundo a Direção Geral de Saúde, uma equilibrada dieta em isolamento, mesmo que em teletrabalho, consiste num consumo de sopa de hortícolas ao almoço e ao jantar e, por dia, três peças de fruta e dois litros de água (ou oito copos). Deverá ser tempo de voltar a valorizar as leguminosas como feijão e grão, para além de ervilhas e favas (é tempo delas e não necessita de consumir as enlatadas, que sorte). Proibidos estão os snacks com excesso de açúcar, sal e baixo valor nutricional, ou seja, precisamente aquilo que andamos com ganas de comer. 

Para além da saúde do corpo, estes são tempos de zelar pela nossa saúde mental. Que sofre, como se sabe, agressões continuadas desde que entrámos em casa para sairmos apenas “quando o rei faz anos”. Muitos de nós ficámos sem trabalho. Ou com horário reduzido e remuneração a refleti-lo da pior forma. Alguns ficaram em regime de teletrabalho. Sortudos, dirão alguns. Blasfémia, dirá quem tem de dividir aquele que é agora o seu escritório com um ou dois fedelhos que ensandecem à medida que o confinamento se prolonga. Saltos, piruetas, gritinhos, correria, pinotes, cabriolas, brigas, disputas, voam almofadas, volteiam brinquedos, os canais infantis em altos berros, a desordem, o mais puro caos no seu epítome, tudo menos um ambiente que promova um trabalho minimamente produtivo. E tudo isto antes das aulas (virtuais) terem tido início. Com o começo da telescola, quando não pensávamos que as coisas pudessem ficar piores, o destino prega-nos a mais baixa e humilhante infâmia. São as conference calls que têm de ser adiadas mediante os horários dos meninos, parar o nosso trabalho para tentar mil usernames nas apps que são disponibilizadas pelo Ministério da Educação, controlar o email da turma para que possamos ter a certeza de que os meninos não estão a tentar passar-nos a perna, verificar que as tarefas estão todas feitas, prestar toda a ajuda na resolução dos problemas de uma matemática que já nos é tão estranha como a professora que nos lecionou a outra, a nossa, com “dois números na casinha” nas operações de divisão. Acomete-nos um pensamento que nunca tivemos ser possível: “Tenho saudades de ir para o trabalho”, o que inclui o percurso de transportes públicos ou, pior ainda, um engarrafamento de pelo menos uma hora fechados no carro, o Nilton a repetir a mesma piada há quinze dias como única companhia. Num dia de chuva. Mas tudo é preferível a “isto”. 

Procuramos auxílio. Desta feita, a Direção Geral de Saúde não pensou em nós. Os sites mais generalistas dão contas de opções que são tudo menos opções, em artigos que decerto foram escritos por alguém que não só não tem filhos como não deseja tê-los tão cedo. “Combine com alguém que possa ficar com eles.” Como assim? Sim, assim mesmo: “Procure o auxílio de um vizinho ou familiares próximos, como a avó.” Mas então não era precisamente isso que devíamos evitar, desde o início, o contacto com idosos? “Crie o seu espaço de trabalho” Como assim? Só há a sala. A sala é onde está a TV. Onde está a TV estão os nossos filhos! É suposto criar uma cerca em volta? “Crie uma rotina para si e para os seus filhos.” Ah tá. Os maiores especialistas em quebrar rotinas, que são os nossos petizes, vão acatá-la agora, de livre vontade, só porque eu estou a trabalhar em casa, como se deixassem, de um momento para o outro, de exigir toda a atenção que não compreenderão se não tiverem, já que uma coisa é terem os pais a trabalhar no seu escritório, outra é terem-nos aqui, à sua frente, mas a ignorá-los (ou pelo menos a tentar). “Monitorize o tempo que passam em frente aos monitores.” Caríssimos, os monitores são a nossa salvação! Sem eles, estamos condenados! “Esteja focado e evite distrações.” Eh pá, a sério. Isto é a gozar, certo? Eis que chega aquela hora de comunhão, a paz assenta sobre o agregado familiar com os aromas vindos dos tachos (ou devia, mas na realidade há um chorrilho de perguntas: “O que é o jantar, mãe?” e “Cheira tão bem mãe, isso é aquela comida que eu gosto muito, mãe?” ou pior: “Ervilhas? Não gosto de ervilhas” e “Não vou comer nada disso, quero antes cereais”). Depois, todo o clã sentado à mesa, engalfinham-se as ricas criancinhas numa food fight épica, com batatas fritas arremessadas com vigor, depois de uma troca de galhardetes sobre a Nancy Lacinhos Coloridos. Já os pais desentendem-se porque um deles desautoriza o outro. Ou porque é demasiado permissivo. Ou porque é demasiado ríspido. Ou porque sim. E todo o ambiente que deveria ser de concórdia, sintonia, harmonia e convergência torna tudo ainda mais pesado. Sonhamos com o tempo em que podíamos dar cabo de uma travessa de lagartinhos à mesa de um restaurante, ou mesmo de uns bifinhos com champignons com um tinto rasca. Não sabemos lá muito bem como é que foi possível que tudo mudasse para tão pior em tão pouco tempo. Pior ainda, não sabemos quando é que tudo voltará à normalidade. Certezas, só uma: uma normalidade relativa não chega. Tudo isto terá de ser, brevemente, uma memória malfadada. Mas e se não for?

*Artigo originalmente publicado na edição "Freedom on hold" da Vogue Portugal, de abril 2020.

Nuno Miguel Dias By Nuno Miguel Dias

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