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Estado de espera(nça)

01 Jul 2020
By Joana Moreira

A pandemia monopolizou as atenções e emudeceu momentos da vida marcados pela união. Uns partem sem as despedidas merecidas. Outros nascem sem os abraços esperados. As novas mães nunca estiveram tão sozinhas. Três delas contam à Vogue como estão a desafiar a História – e a reescrever a sua.

A pandemia monopolizou as atenções e emudeceu momentos da vida marcados pela união. Uns partem sem as despedidas merecidas. Outros nascem sem os abraços esperados. As novas mães nunca estiveram tão sozinhas. Três delas contam à Vogue como estão a desafiar a História – e a reescrever a sua.

© iStock
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O novo coronavírus tirou-nos os beijos, os abraços, as ternuras. O distanciamento social estendeu-se além dos vivos, e não faltam reportagens avassaladoras sobre a profunda solidão de quem perde alguém e não pode despedir-se. Morrer em tempo de pandemia é partir sem o último toque. Nascer em tempo de pandemia é chegar sem saber quando será o primeiro. O primeiro cheiro, o primeiro leite, o primeiro tato da pele contra pele. Os constrangimentos em prol da segurança obrigam a que os que seriam outrora momentos felizes sejam hoje momentos de preocupação. As opiniões da Direção Geral de Saúde (DGS) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) divergem, levando a comportamentos distintos entre hospitais e profissionais de saúde.

Graça Freitas, rosto da DGS, chegou a pronunciar-se que “quando a gravidez chega ao seu término, deve ser feito um teste”. Mas do dever ao fazer vai uma distância. “A maior parte dos nossos casos de grávidas com COVID-19 não tem sintomas – 50% na nossa base de dados nacional. De maneira que se justifica fazer o teste, o rastreio, a todas as grávidas que entrem em trabalho de parto. E muitos hospitais já iniciaram isto. Outros hospitais, para além da grávida, pretendem testar também o acompanhante”, afirmou Diogo Ayres de Campos, Presidente Eleito da Sociedade Europeia de Medicina Perinatal, em entrevista à SIC. Basta falar com profissionais de saúde para perceber que a diferença entre instituições de saúde, tanto públicas como privadas, de norte a sul do país, é inegável.

“Os hospitais não estão todos a funcionar da mesma forma”, conta Paula Gonçalves, enfermeira, à Vogue. “A realidade é que as grávidas não têm sido incluídas nos grupos de risco para infeção por COVID-19. Tem a ver com a falta de evidência científica”, explica. Sobre a necessidade de testar, e apesar das palavras de Graça Freitas, “as normas da DGS não falam disso. Dentro da população grávida, não há nenhuma obrigatoriedade em fazer o teste”, elucida Paula. Até ver, o risco de infeção da grávida parece ser igual ao da população em geral, e pouco se sabe sobre a transmissão ao feto, mas parece ser reduzida. Também não há evidência de que o vírus passe para o leite materno e os benefícios da amamentação acreditam-se superar o risco potencial da transmissão do vírus. Da mesma forma que não há nada que mostre que após o parto a mãe com COVID-19 deva ser separada do recém-nascido. O impacto da separação pode ser mais prejudicial do que o risco de infeção. Mas esta é uma questão controversa, como a própria DGS admite, mas que para a OMS é mais clara: as mães com COVID-19 podem e devem fazer contacto pele a pele com os bebés, fazer amamentação, partilhar quarto, dar colo, tudo mantendo as condições de higiene e limpeza.

“Conheço vários casos em que não foi permitido à mãe ter contacto pele com pele. Mesmo com a OMS e algumas outras entidades a dizerem o contrário”, assegura a enfermeira, que alerta para o possível impacto psicológico na futura mãe. “Os benefícios do contacto pele a pele são mais que conhecidos, a ligação, o próprio despertar hormonal da mãe e do bebé, a primeira procura da mama e a primeira mamada nos primeiros segundos de vida, tudo isso é muito aconselhado, mexe com questões fisiológicas, e com o desenvolvimento tanto da recuperação pós-parto imediata da mãe como do desenvolvimento do bebé”, diz.

O fator psicológico é neste momento uma preocupação real. “Estamos a falar de mulheres e de famílias que estiveram a viver a sua gravidez, que é uma altura da vida importante, muito própria, que não é replicável porque todas as gravidezes e partos são diferentes. Muitas destas mulheres fizeram a preparação para o parto, geriram as suas expectativas diante do seu companheiro, da sua família, tinham uma ideia muito clara daquilo que queriam, fizeram o seu plano de parto e, de repente, tudo aquilo que tinham idealizado acaba por ser frustrado. Ou porque ficaram infetadas ou porque por uma questão de precaução lhes foi alterada esta dinâmica. É uma altura em que a mulher está extremamente sensível, muitas mulheres sentem-se roubadas desse momento tão especial. Acho que o impacto psicológico é muito grande.” A saúde mental é um dos pontos do documento com medidas de prevenção para grávidas em tempos de COVID-19 do Núcleo de Estudos de Medicina Obstétrica (NEMO) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), emitido a 24 de abril. “Deve existir especial cuidado com o bem-estar mental e, se necessário, contactar uma linha de apoio psicológico.”

Mas enquanto não houver certezas absolutas e os testes não forem garantidos, a possibilidade de se estar infetado é uma preocupação constante. É o caso de Carolina Gonçalves. “Na última consulta com a minha obstetra falámos sobre isto. Ela deu-me indicação que já há hospitais que convocam todas as grávidas às 39 semanas para a realização deste teste, mas no hospital onde vai ser o parto ainda não há essa indicação. Estou a aguardar ansiosamente que saia essa medida”. Carolina tem 27 anos, é terapeuta ocupacional, e está grávida pela primeira vez. Por ter uma profissão considerada de risco para a gravidez, está em casa desde as 26 semanas. Hoje, a caminho das 38, muita coisa mudou. “Considero-me uma pessoa calma e otimista, mas a conjetura atual tem-me deixado ansiosa. Por um lado, faz parte, ser mãe de primeira viagem e entrar nesta aventura desconhecida já desenvolve em nós muita adrenalina, [mas] viver uma pandemia é acordar e adormecer ansiosa, juntar estas duas situações ainda pior”, admite.

Com o companheiro a trabalhar num supermercado, Carolina optou por fazer o isolamento mudando-se temporariamente para casa dos pais. Sem grandes alterações ao plano de saúde, consultas e exames, o mais difícil foi mesmo reajustar as expectativas. “Via-me a fazer aquelas coisas que sempre quisemos: preparar o quarto da bebé, que ficou a meio, fazer uma sessão fotográfica, que tivemos de cancelar, o famoso babyshowertambém ficou suspenso… E andar a viver os últimos dias a dois, passear, jantar fora, preparar a casa, sendo esta última razão a mais difícil de gerir”, confessa. Por enquanto, o contacto com o pai da bebé continua a ser à distância. “Para ele não tem sido nada fácil [...]. Ele tem os cuidados redobrados no trabalho com esperança que não se contamine”. A esperança (e a cautela) é tudo o que lhe resta para combater o medo. “O meu maior receio é que sejamos contaminados neste momento. Depois de tanta proteção, algum descuido, ou não, porque todos os dias ouvimos histórias de pessoas que não imaginam onde se infetaram, deitemos tudo a perder. Tenho receio de que, na hora do parto, apresente algum sintoma e que me tirem a bebé, que não deixem o pai conhecê-la e que não me deixem amamentar”, reconhece.

A história de Laureen Gouveia de Melo é diferente. A fotógrafa, de 26 anos, a viver em Paris, tem uma doença ginecológica e por isso define o bebé que aí vem como “um pequeno milagre da natureza”. Dadas as condições, já estava de baixa desde dezembro, sendo as idas à rua escassas mesmo antes de ser decretado qualquer isolamento obrigatório. Contudo, o marido continuava a trabalhar. Até que Laureen sentiu os primeiros sintomas. “Ligámos à Saúde 24 e aconselharam-me a ficar em casa porque os sintomas não eram alarmantes, era tosse, dores de cabeça, diarreia, dificuldade moderada em respirar e dores musculares... Nessa altura, França estava no pico da epidemia e só as pessoas com mais dificuldades em respirar eram admitidas nos hospitais por falta de camas”, explica à Vogue. Os dias passaram e os sintomas pioraram. “Estava a ser muito duro para mim. O pneumologista mandou-me então fazer o teste no dia 30 de março”, conta. O resultado adivinhava-se: positivo para COVID-19. “A preocupação com o bebé começou a instalar-se, mesmo se todos nos tentam tranquilizar dizendo que está protegido. No fundo, será que temos mesmo a certeza?”, questiona. “São muitas perguntas e poucas respostas.”

Hoje, mais de um mês depois, e com 28 semanas de gravidez, os sintomas praticamente desapareceram. Mas nada é certo. Laureen sabe que não está previsto fazer um novo exame, e por isso espera conseguir fazer um prometido teste serológico, para avaliar a imunidade ao vírus. Por enquanto, e por ter uma gravidez de risco, continua a ir a consultas, mas com proteção redobrada. “A cada consulta tenho de ter máscara, luvas, avisar toda a gente que estou infetada por COVID-19 antes de chegar e o pai [do bebé] nunca me pode acompanhar”, conta. Já as aulas de preparação do parto, essas, foram canceladas. “Arrisco-me a não ter feito nenhuma aula antes de ter o bebé. É uma fonte de ansiedade adicional”, não esconde. “Tínhamos imaginado um momento mágico que compartilharíamos juntos, o pai do bebé e eu. Aliás, tínhamos reservado um quarto individual na maternidade para que ele pudesse ficar dias e noites connosco e dar assim início a uma vida de família a três. Mas, com tudo isto, tudo mudou.” Laureen sabe que “o parto não se passará da mesma maneira que um parto ‘normal’, mas nada está escrito e tudo se vê caso a caso”.

Inês (nome fictício) prefere manter o anonimato quando conta à Vogue a sua história. É profissional de saúde, tem agora um bebé nos braços, mas o que passou nos últimos tempos é algo que não esquecerá. Com 33 anos e às 39 semanas da sua primeira gravidez, descobriu que tinha COVID-19. “Fiz [o teste] numa sexta, para ser internada num domingo”. Estava em casa em isolamento há muito tempo e completamente assintomática. “Fiquei surpreendida. As únicas saídas que fiz foram as consultas para o hospital e uma ou outra vez que tive de sair para ir às compras. Era quase impossível ter contraído pelo contacto com pessoas. Só se fosse através das superfícies, no hospital ou no contexto dos supermercados”.

Inês decidiu ir para casa, tentar fazer o isolamento com a bebé na barriga, “limitando o máximo de dias que eu depois teria de estar em isolamento dela”. Ainda assim, não quis sair do hospital sem o marido ser testado. “A nossa ideia era se ele realmente fosse negativo ter a possibilidade de vir para casa com o bebé ao cuidado dele”, explica. O teste ao companheiro deu negativo e daí seguiu-se um escrupuloso plano de ação. “Ao chegar a casa limpámos tudo e basicamente dividimos a nossa casa em duas, para não partilharmos espaços. Cada um no seu quarto, com a sua casa de banho, mesmo na própria sala, criámos uma área para cada um, e na cozinha tínhamos utensílios diferentes, sem partilhar. Isso manteve-se até ao parto e depois teve de se manter no pós-parto durante mais dois dias, porque apesar de o pai ter dado negativo acabou por estar em contacto comigo, e por mais que eu me esforçasse pelo isolamento, tinha receio de o poder ter infetado”, conta.

O parto acabaria por acontecer só quase dez dias depois. “Mal entrei na urgência fiz o rastreio de novo, mas o resultado só chegou depois, ou seja, fiz a cesariana assumindo que era COVID-19 positivo. Só nessa noite é que soube que era negativo. Por isso os tramites [no parto] foram deixar-me ver a saída do bebé da barriga, o cortar o cordão, e foi basicamente isso”, diz, com um suspiro. “Isso foi o mais difícil de gerir, porque no fundo estava numa ala só com grávidas COVID positivas no momento em que soube que era negativa e aí também acresceu a ansiedade e a dificuldade em gerir as coisas naquele momento”. Por trabalhar na área, Inês sabe que “os falsos negativos são muito mais comuns dos que os positivos, mas estes também existem”.

A primeira vez que tocou na filha tinham passado 48 horas depois do parto. “Responsabilizei-me a ter uma alta mais precoce porque ambas éramos negativas após 48 horas”. Foi para casa com a bebé, “sem ter necessidade de distanciamento dela, apenas lavando as mãos e todas essas coisas.” No entanto, o resultado do teste ao pai tardou quatro dias e havia a possibilidade de ele ter sido infetado. Por isso “voltámos a limpar tudo, e ele acabou por ir para o quarto onde eu estava, que seria o suposto ‘quarto COVID’ e eu voltei para o nosso quarto, supostamente o quarto limpo, para receber a bebé”, explica. “Confesso que é uma coisa difícil de gerir. É difícil estar com um recém-nascido e ter de lembrar constantemente toda a logística de desinfeção e não contacto e isolamento e essas coisas todas”, desabafa. Hoje os três, mãe, pai e bebé estão em casa: negativos, felizes e, acima de tudo, juntos.

Artigo originalmente publicado na edição de maio/junho de 2020 da Vogue Portugal. 

Joana Moreira By Joana Moreira

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