Opinião   Palavra da Vogue  

O dia depois de amanhã

04 Jun 2020
By Ana Murcho

No futuro, todas as pessoas usarão máscara e caminharão com dois metros de distância umas das outras. Não era bem assim que idealizávamos a profecia mas, bem vistas as coisas, também não era bem assim que idealizávamos os primeiros meses deste 2020. E aqui estamos.

No futuro, todas as pessoas usarão máscara e caminharão com dois metros de distância umas das outras. Não era bem assim que idealizávamos a profecia mas, bem vistas as coisas, também não era bem assim que idealizávamos os primeiros meses deste 2020. E aqui estamos. English version here. É um exercício simples, que qualquer um de nós pode fazer. Imaginemo-nos, por instantes, de volta a 31 de dezembro de 2019, a poucos minutos da meia-noite. Daí a nada estamos a brindar com champanhe e a engolir 12 passas, correspondentes a 12 desejos para um novo ano, e de repente somos interrompidos pelo génio da lâmpada, que por acaso também é o génio das passas, que nos avisa de algo importante: “Tem em consideração que, daqui a meses, poderás não ter a vida que tens agora. Poderás ser forçado a afastar-te dos teus entes queridos, tal será o receio de os contaminares. Poderás não estar horas a fio em filas de trânsito para o trabalho, porque, durante meses, deixarão de existir filas de trânsito. Poderás não ter forma de sair à rua sem primeiro te desinfetares, dos pés à cabeça, com álcool-gel. Poderás não ter acesso às tuas distrações favoritas – o restaurante da esquina, o cinema do costume, o quiosque de quinta-feira à tarde. Se tudo isso acontecer, como prevejo que aconteça, que desejos irás pedir? Quais serão os teus propósitos para 2020?” De volta a essa noite, e na presença dessa figura impositiva, o mais provável seria lançarmos uma gargalhada cínica, acompanhada de um encolher de ombros. “Já bebi demais. Agora até já vejo quem me indique o caminho do apocalipse.” Não nos culpemos por esse pensamento. Quem é que, no seu perfeito juízo, poderia acreditar que o mundo ia ficar suspenso durante semanas a fio, qual filme de zombies? Quem é que, habituado ao rebuliço do dia a dia, a cidades com milhares de habitantes que convivem numa desarmonia mais que perfeita, poderia conceber as principais avenidas das principais metrópoles dominadas por um ruidoso silêncio? Ninguém. Escolas fechadas, parques e jardins fechados, centros comerciais fechados, hotéis fechados, aeroportos fechados, fronteiras fechadas. Milhões de pessoas desempregadas. Bolsas de pequenos e grandes países com quebras históricas. Preços impensáveis, de tão baixos, para o barril do petróleo, esse ouro negro que raramente é afetado pelas oscilações dos outros setores. E um número incontável de doentes que vive entre o limiar da vida e da morte à custa de um vírus invisível do qual se sabe pouco, quase nada, apenas que é transmitido a partir daquilo que temos de mais humano: o toque, a respiração, isso a que chamamos de “estarmos juntos.” A normalidade tem muito que se lhe diga. Charles Addams, o cartoonista por detrás da famosa Família Addams, é autor de uma das melhores frases sobre o tema: “Normal is an illusion. What is normal for the spider is chaos for the fly.” Por outras palavras, o que para mim é normal, para si, que me está a ler, poderá ser, ou parecer, o mais completo absurdo. Já a Wikipedia sugere que a normalidade é “um estado padrão, normal, que é considerado correto, sob algum ponto de vista. É o oposto da anormalidade.” Até aqui tudo... normal. E acrescenta: “A normalidade muitas vezes dá-se por conta de uma maioria em comum, sendo anormal aquele que contraria esta maioria. A normalidade também se dá por um resultado padrão ao realizar uma operação com alta probabilidade de se repetir.” Ora é precisamente aqui que os recentes acontecimentos – propagação descontrolada de um vírus desconhecido, elevado número de óbitos, imposição de medidas de distanciamento social, confinamento, declaração de estado de emergência – entram em cena. Nada disto era suposto acontecer, quanto mais repetir-se. É como se estivéssemos preparados para tudo, menos para uma coisa assim. Será possível voltar atrás? Será possível recuperar o “antigo normal”? Ou estaremos perante uma nova normalidade? “Depende do que se descobrir sobre este vírus. Sabe-se pouco sobre ele. Não consigo dizer se o antigo normal vai voltar. Vai haver um normal. Vai haver uma realidade que nós vamos reconhecer como sendo normal. Não sei se vai ser igual ou diferente daquela que tínhamos antes – ou da que temos agora. Vai haver um momento em que saímos à rua sem pensarmos no risco, independentemente do risco existir. Mas nós vamos habituar-nos a esse risco e à sua existência. Isso vai acontecer, tenho a certeza absoluta. Mesmo que isso implique diferenças no nosso quotidiano, nós vamos assumi-las como sendo algo normal. É nesse sentido que estamos a viver uma crise agora: aquilo que nos disseram que devia acontecer não está a acontecer.” As palavras são de Tiago Correia, Professor Associado na Unidade de Saúde Pública Internacional e Bioestatística e Investigador Sénior do Global Health and Tropical Medicine, ambos do Instituto de Higiene e Medicina Tropical – Universidade NOVA de Lisboa (IHMT-UNL), que está habituado a pensar fenómenos do género. Para ele, esta epidemia simboliza, acima de tudo, um momento de disrupção. É por isso que não conseguimos evitar questionar-nos sobre o que irá acontecer depois. “Nós somos obrigados a pensar porque estamos a viver num momento de crise, de ruptura, de disrupção. Mas a partir do momento em que essa crise, essa ruptura, essa disrupção, deixarem de ser percecionados dessa forma, e passarem a ser percebidos como algo normal, o que vai acontecer é que vamos deixar de pensar sobre isso. São os momentos especiais, no bom e no mau sentido, que muitas vezes nos fazem ter de parar para pensar na nossa vida. [...] Quando deixarmos de viver nesta interrupção, por muito diferente que seja a rotina, ela vai levar-nos outra vez a comportamentos mais automatizados, menos refletidos, e portanto vamos entrar novamente numa cadeia... vamos chamar- -lhe ‘normal’, em que acordamos de uma certa forma, vamos para o trabalho de uma certa forma, trabalhamos de uma certa forma, temos atividades de lazer de uma certa forma... Quando voltarmos a ter liberdade para fazermos o que habitualmente fazemos, por muito que seja diferente, vamos deixar de parar para pensar sobre isto. Neste momento estamos com esta consciência, porque isto está a mexer com aquilo que dávamos por adquirido. Quando aprendermos a viver com novas rotinas, acredito que este estado de hiperconsciência se vá atenuar.” João Luís Lisboa é Professor Catedrático de História e Teoria das Ideias do Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A sua posição sobre a antiga, e a atual, normalidade, é mais pragmática. “Não sei se a normalidade parecia semiperfeita. Nem penso que seja justo falar de uma normalidade errada. O problema da ideia de vida normal é que não existe nenhum modelo em torno do qual possa haver um acordo pacífico. O quotidiano do trabalho e do lazer? A luta pela sobrevivência? A vida das telenovelas e dos concursos televisivos? As sequências de foodies nas redes sociais? O stress dos espetáculos desportivos? O normal das doenças e da violência que agora não tem espaço mediático? Tudo isto representa pequenas normalidades, tantas rotinas, umas mais leves do que outras. Por retorno à normalidade pode entender-se apenas a ausência (o fim? a pausa?) da emergência sanitária, como a paz pode ser a ausência da guerra ou a saúde pode ser o intervalo entre momentos de aflição de um corpo desequilibrado. Esse ‘normal’ que se anuncia, mas que mal se adivinha, será, por muitas razões, diferente do normal anterior. As diferenças, ainda por definir, resultarão de ondas de choque deste período ‘anormal’, ainda por muito tempo. E também da tensão e da força entre formas diferentes de entender o que há que reformar e corrigir.” As relações interpessoais, acredita, serão amplamente afetadas pelo surto do novo coronavírus. “O receio de aproximação será pesado e a solidão que se vai arrastar tem consequências que não podem ser ignoradas. Durante quanto tempo os avós vão continuar a ser defendidos contra si próprios e contra os netos? Um ano é uma eternidade para alguém que já passou dos 80. Os portugueses não se vão tornar ‘nórdicos’ e distantes, mas as relações pessoais vão manter alguma estranheza. Uns dirão que é o resultado da disciplina auto-imposta, outros que é a inércia de medos. [...] O desejo do abraço ainda contido vai acompanhar o cuidado com algumas normas de higiene, mãos, sapatos, espirros... As relações de trabalho vão prolongar protocolos de prudência e nalguns casos tentar-se-á continuar formas de trabalho remoto e manter procedimentos digitais como adquiridos. Mas isso é da ordem dos comportamentos. O mais importante será o que se retira do peso da cooperação e do que são bens públicos a cultivar.” Nos últimos dias de março, o jornal inglês The Guardian publicou um extenso artigo de análise onde questionava o regresso à normalidade após a atual pandemia. Intitulado We Can’t Go Back To Normal: How Will Coronavirus Change The World?, o texto juntava as opiniões de vários peritos, ou especialistas, em crises, e desconstruia a ideia de que seria possível voltarmos a algo parecido com aquilo que tínhamos há três meses, quando vivíamos de um lado para o outro sem pensarmos nas consequências de dar um passo maior que a perna – porque não tínhamos de manter qualquer distância de segurança face a quem caminhava à nossa frente. “Num mundo totalmente racional, poderíamos assumir que uma pandemia internacional levaria a um maior internacionalismo”, começava por dizer o historiador americano Mike Davis, cronista habituado a estudar os desastres provocados pela globalização. Davis, que em 2005 escreveu um livro sobre a gripe das aves, considerava que as pandemias são um exemplo perfeito do tipo de catásfrofes às quais o capitalismo global é particularmente vulnerável – mas que o mindset capitalista, na sua incapacidade de pensar em termos além do lucro, não consegue atingir. “Num mundo racional, estaríamos a aumentar a produção de suprimentos essenciais básicos – kits de teste, máscaras, ventiladores – não apenas para o nosso próprio uso, mas também para os países mais pobres. Porque é tudo uma batalha. Mas não é necessariamente um mundo racional. [...] O que significará mais mortes e mais sofrimento em todo o mundo.” Mais de um mês após a saída deste texto, a profecia de Davis confirma-se. As atitudes isolacionistas de muitos países contrariam a ideia de que este novo coronavírus, do qual ainda pouco sabemos, não transformou o planeta num gigantesco palco solidário, nem semeou nas mentes capitalistas a necessidade de união. Por isso mesmo, Peter C. Baker, autor da peça, acabaria por concluir que “a tarefa, hoje, não é combater o vírus de forma a voltarmos a viver como se nada fosse, porque continuar como se nada fosse seria um desastre.” Um desastre que estava mais ou menos escrito nas cartas, e que potencia certos extremismos que, nos últimos anos, têm tentado sabotar a vida das sociedades democráticas. Como a radicalização do outro, a xenofobia, o racismo. “Era algo que já existia. Estamos a lidar com algo que é desconhecido, e o desconhecido causa medo. Basta pensar no que aconteceu nos anos 80 com o HIV. Foram precisas muitas décadas para combater todas as formas de discriminação e de abuso. Mas este vírus não veio criar essa necessidade, veio só reforçar essa necessidade de termos muita atenção com todas as formas de exploração, de humilhação, de negação do outro”, defende Tiago Correia. João Luís Lisboa concorda. “Esse risco existe porque é fácil deixar crescer um olhar mesquinho sobre os vizinhos e há quem procure cavalgar essa onda. Os estranhos seriam as comunidades asiáticas, mas também espanhóis e italianos, como se ouviu aquando dos primeiros casos de contágio, nos inícios de março.” Ou o controlo da nossa liberdade. “Há claramente esse risco. Mais do que haver uma vigilância institucional, pode haver além disso uma outra coisa, que é essa vigilância institucional ser legitimada pelas pessoas. As pessoas acharem que isso deve acontecer para uma ‘proteção coletiva’. Acho que isso já acontece em certas realidades. Essa é uma questão que as novas tecnologias, associadas ao medo, e ao desconhecido, trazem – essa necessidade de controlo quase absoluto. As tecnologias das quais dependemos podem ser ferramentas de controlo de todos os momentos da nossa vida. É por isso que digo que quanto mais soubermos sobre esta doença, e quanto mais depressa tivermos, eventualmente, a cura, mais depressa conseguimos combater, e deslegitimar, todas estas ferramentas que certos setores da sociedade quererão legitimar”, explica o investigador do Global Health and Tropical Medicine. O medo. Será ele o maior efeito colateral desta pandemia? De acordo com Tiago Correia, sim. “Em qualquer pandemia, é. Uso uma vez mais a analogia da Sida. O medo, a desinformação. Antigamente argumentava-se que era por falta de educação ou por falta de meios de comunicação social, hoje em dia percebemos que não é só isso. Os media podem ser um veículo de desinformação. Associado ao medo devemos ter qualidade acrescida na qualidade de informação, há uma série de novos riscos que associam o medo para efeitos negativos. São riscos muito reais.” Em 2008, precisamente numa altura de colapso da economia mundial, tornou-se famosa uma frase proferida pelo chefe de gabinete de Barack Obama, pouco depois deste ser eleito: “You never let a serious crisis go to waste.” Será que não há lições a retirar desta crise? Algumas, de acordo com João Luís Lisboa. “Haverá lições para vários gostos. Umas dirão que o planeta não pode ser tão interdependente. Outras, pelo contrário, reforçarão perspetivas de cooperação. Pensar uma crise como oportunidade começa por ser uma estratégia de sobrevivência. O problema é que esta crise pode proporcionar oportunidades contraditórias, conflituais, no sentido de reforçar situações de poder arbitrário ou de as contrariar. As mudanças serão as que houver força social para impor. Poder-se-ão mudar as prioridades, parar a ortodoxia do desmantelamento de serviços públicos, inverter as lógicas que reproduzem e agudizam desequilíbrios e desigualdades, lógicas que constituem chão fértil para o alastrar de calamidades deste tipo. Lembremo-nos que a crise de 2008 levou à orientação de incentivo do investimento público, para imediatamente a seguir se passar a impor, pelo contrário, medidas violentas de austeridade à escala global.” E se austeridade é um fantasma do passado que parece cada vez mais palpável, há quem se preste a fazer futurologia com questões mais prosaicas: a Internet está cheia de sites que propõem soluções práticas para o “novo normal”: cubículos de vidro em restaurantes, praias e espaços públicos, aposta nas bicicletas em detrimento dos transportes públicos, implantação de sinais luminosos no chão, que delimitam a distância de segurança entre pessoas (uma realidade em Singapura), extinção dos saltos altos (medida cuja urgência não conseguimos descortinar até ao fecho desta edição). Mas e os concertos? E as idas ao teatro e à ópera? E a dança? As exposições? O que será da cultura, e da arte? Continuarão a ser o escape privilegiado da vida quotidiana? Lançamos a pergunta ao Professor Catedrático: “Nem escape, nem supérfluo, mas necessidade imperiosa de expressão. Numa situação concreta, uma pessoa pode pensar se com as poucas moedas que tem no bolso, compra pão ou um jornal. Mas ao nível social global, a questão não se coloca do mesmo modo. O desenvolvimento equilibrado a que esta aflição apela impõe as várias dimensões da nossa humanidade e não uma existência mutilada. Implica tempo para viver um património em construção, a palavra que faz pensar como a comida que exalta os sabores, o riso como os afectos.” Por esta altura, já se sabe, nenhum de nós poderia ter imaginado o guião destes primeiros meses. Mesmo que trocássemos de desejos, seria impossível mudar o rumo que estava traçado para o mundo. Ou será que havia uma passa mágica, que dava acesso a um “final mais feliz” - e que nos escapou? Tiago Correia afirma-o com todas as letras: “Isto vai voltar a acontecer. É bom que as pessoas se preparem. Uma epidemia associada a síndromes respiratórias estava bem descrita na literatura. Nada disto é uma surpresa.” Facto. Nas últimas semanas, têm sido partilhados até à exaustão uma série de livros que, aparentemente, toda a gente leu, mas que ninguém levou demasiado a peito porque o que é que se vai fazer perante cenários apocalípticos como os apresentados n’A Peste, de Albert Camus (1947), n’A Dança Da Morte, de Stephen King (1978) ou no Ensaio Sobre A Cegueira, de José Saramago (1998), ligar para o FBI? O investigador continua: “É por isso que digo que as epidemias não têm uma origem biológica. As epidemias têm uma origem política. E económica. Hoje em dia, com o grau de conhecimento que temos, uma epidemia só surge porque alguma coisa não foi feita quando devia ter sido feita. E não é depois de o contágio estar tão propagado – e a nossa vida depende tanto de mobilidade, de bens, de pessoas – não é depois de haver um certo grau de contágio, que se consegue parar isto. É como se fosse um comboio em alta velocidade, e tentássemos pará-lo com as mãos. Não acontece. As epidemias não se gerem, as epidemias evitam-se. Previnem-se.” Eis-nos de volta ao grau zero de normalidade, aquele de que necessitamos para dar o passo em frente para uma nova normalidade. Só sabemos que nada sabemos. A partir daqui, espera-se, tudo correrá melhor. Está encontrada a décima terceira passa. Este é o dia depois de amanhã. Texto original na edição Happy Together da Vogue Portugal, publicada em maio 2020.

Ana Murcho By Ana Murcho

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