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Ainda é preciso chocar para se ser criativo?

23 Mar 2021
By Pureza Fleming

E quando a criatividade choca quem a vê, trata-se de provocação ou de mau gosto? Ou de nenhuma das duas e, simplesmente, é só o que tem de ser? Em terras de virgens ofendidas, como é o mundo em que vivemos atualmente, quem tem a coragem de desafiar as leis da criatividade é rei.

E quando a criatividade choca quem a vê, trata-se de provocação ou de mau gosto? Ou de nenhuma das duas e, simplesmente, é só o que tem de ser? Em terras de virgens ofendidas, como é o mundo em que vivemos atualmente, quem tem a coragem de desafiar as leis da criatividade é rei.

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© Artwork de Mariana Matos
© Artwork de Mariana Matos

“Estou chocado/a”. Na cidade do Porto utiliza-se muito esta expressão: “Estou chocado/a”. E não é que as pessoas da Invicta se choquem muito, nada disso. Aquela é só uma forma de, por exemplo, exacerbar a receção de uma notícia, que pode até ser banal. Que não precisa, necessariamente, de ser chocante. Ou digna de choque. De acordo com o dicionário, a palavra choque — além da sua definição literal (o choque entre dois carros, por exemplo) — significa: a) estado de grande perturbação mental ou psicológica. Abalo, comoção ou concussão; b) divergência entre pessoas ou ideias. Antagonismo, colisão, conflito luta; c) efeito fisiológico que resulta da passagem de corrente elétrica pelo corpo. Esta última diz respeito ao choque elétrico. E como é que nos deixa um choque elétrico? Abananados. Atordoados. Sem saber muito bem “a quantas andamos”. E, embora não seja a melhor das ideias desatarmos a enfiar os dedos nas fichas para apanharmos um choque e, quiçá, “abrirmos a pestana”, por vezes uma terapia de choque é necessária para mexer com as nossas ideias, crenças ou convicções. Para, no fundo, as sacudir e, quem sabe, conseguirmos ver as coisas de uma nova perspetiva. Terapia de choque seria, então, qualquer coisa como a vida nos dar uma tremenda sova. Daquelas que soam a — lá está —, um choque elétrico, capaz de abanar até as estruturas mais sólidas e as crenças mais bem resguardadas. Das tais que não queremos ver. Mas que, com o choque, vemos. E vemos ao melhor estilo: não vai a bem, vai a mal. E porque é que nos chocamos? Porque, evidentemente, não queremos olhar em determinada direção. Então, quando certa imagem, palavra ou evidência nos é posta à frente, sem pedir licença, o nosso cérebro entra em curto circuito. E então o “choque.”

No passado mês de julho, a Vogue Portugal foi alvo de críticas que incendiaram os media e as redes sociais, tanto em Portugal como no exterior. Num número dedicado à loucura, apelidado de Madness Issue, uma das capas mostrava uma manequim sentada numa banheira enquanto era cuidada por duas enfermeiras (que, no caso, eram a mãe e a avó da modelo, segundo uma publicação da própria na sua conta pessoal de Instagram), num hospital psiquiátrico em Bratislava. O ato de dar banho parecia ser feito com carinho e com cuidado, mas o público (ou parte dele) não se poupou às acusações, como se tornou comum na novíssima cultura de cancelamento. 

O “choque” sobrepôs-se ao conteúdo. “Se a imagem parece sombria é porque o assunto o é”, referia um comunicado enviado pela Vogue ao jornal inglês The Guardian aquando da polémica. A imagem seria, além disso, uma homenagem aos doentes e aos profissionais que lidam com uma doença muitas vezes esquecida: “Também queremos trazer para o debate as instituições, a ciência e as áreas que hoje lidam com a doença mental”, acrescentava o texto. Apesar das muitas vozes que também aplaudiram a capa — mas essas, já se sabe, parecem fazer sempre menos barulho... — por normalizar um tema que é habitualmente tratado com pinças, ela nunca chegou a ser produzida.

Uma vez mais, o “choque.” Ele poderia resumir o trabalho de Franca Sozzani (1950-2016), à frente da Vogue Itália. A diretora da revista tinha um certo gosto em ser polémica, em “chocar". Ou então, desejava apenas ser relevante, apontar as falhas do ser humano e do mundo, numa tentativa de “acordar” os seus leitores. Mas, é certo e sabido, nem sempre o mundo reage bem a provocações. Nem sempre o ser humano deseja ser despertado para os problemas reais que o rodeiam (muitas vezes nem sequer das suas próprias vidas), uma vez que isso irá acabar com todas as suas fantasias e, de certa forma, o obrigará a mudar. 

Em agosto de 2010, Sozzani publicou Water & Oil, uma fashion story (que, obviamente, era uma muito mais do que uma fashion story) de 24 páginas inspirada no derramamento de óleo no Golfo do México, que tinha ocorrido meses antes. As fotos, da autoria de Steven Meisel, mostravam a modelo Kristen McMenamy deitada, indefesa, numa praia deserta, com roupas cobertas de óleo e de penas pretas. Dessas imagens sairia a capa, cuja única chamada era The Latest Wave. A reação dos media foi imediata, generalizada e dividida. Tanto capa e editorial foram descritos como "nauseantemente insípidos”. A plataforma Refinery29, embora capaz de reconhecer que as imagens eram lindas, escreveu o seguinte: “Glamourizar este recente desastre ecológico e social em prol ‘da Moda’ reduz o trágico evento a nada mais do que a um pedaço de banca de jornal que chama a atenção”. Por outro lado, noutro site de Moda, podia ler-se: “Embora a ironia de se usarem roupas no valor de milhares de dólares que, provavelmente, voaram do outro lado do mundo só para aquelas fotos, não se perca em nós, não podemos deixar de pensar que se aquilo não é arte, não sabemos o que é.” 

A própria Vogue Itália afirmou que “as fotografias têm o peso de uma reportagem e o impacto de uma obra de arte.” Uma coisa é certa: se o objetivo de Sozzani era chocar, ela conseguiu fazer exatamente isso. Mas seria esse o seu objeivo? Chocar só porque sim?

Vogue Itália, agosto de 2010
Vogue Itália, agosto de 2010

Não sabemos se é preciso chocar para se ser criativo, porém, o contrário pode fazer algum sentido. Muito, até. “É preciso ser-se criativo para chocar! E também muito corajoso para se assumir atos e responsabilidades inerentes ao trabalho criativo”, avança o produtor de Moda Filipe Carriço. E continua: “Temos, obviamente, de ser honestos e realistas quando pisamos o risco, e sabermos que esse passo nos pode trazer consequências menos agradáveis. Em relação à maravilhosa Franca Sozzani, o que sabemos é que todos os riscos que ela correu ao publicar e até incitar fotógrafos amados por ela, eram atitudes ‘cobertas’ por um certo meio burguês de onde ela era proveniente. Diria, em linguagem corrente, que ela ‘tinha as costas quentes’ de alguma forma. Não estou com isto a dizer que ela não tenha todo o mérito por sempre ter seguido a sua intuição criativa, e principalmente por não ter medo de o fazer. Trabalhar com medo e sob pressão é completamente contraproducente. E Franca, tanto quanto sabemos e podemos ver no legado incrível que nos deixou, nunca se deixou vencer pelo medo. Fez sempre o seu trabalho sem qualquer receio das represálias, e é isso que fez dela, e de todas as pessoas como ela, alguém com um génio superior.” 

“O papel da Moda passa, também, por abanar as estruturas e por ser, de certa forma, o espelho dos tempos.”

Serão esses “génios” que estão por detrás de algumas das imagens mais impactantes de todos os tempos? Vejamos. O sexo, por exemplo. Como se costuma dizer, “sex sells.” Não é um mito que o sexo, de facto, vende. Mas também ofende. E a Moda sempre foi um excelente palco para pôr à prova estas verdades irrefutáveis, seja através de editoriais, seja por meio de campanhas publicitárias. No seu ensaio de 2013, Beauty... and the Beast of Advertising, Jean Kilbourne, especialista em psicologia da publicidade, defendia que os anúncios vendiam muito mais do que os produtos: “Eles vendem valores, imagens e conceitos de sucesso e de valor, amor e sexualidade, popularidade e normalidade. Eles dizem-nos quem somos e quem devemos ser". Ao promover a diversidade — de sexualidade, raça, género — o papel da Moda passa, também, por abanar as estruturas e por ser, de certa forma, o espelho dos tempos. Assim sendo, porque não fazer alguma coisa além do politicamente correto? 

 

Terry Richardson (perito em “chocar”, e também pelas piores razões) e a Sisley fizeram correr tinta com um anúncio sugestivo que mostrava a modelo Josie Maran a beber leite da teta de uma vaca. A campanha, de 2001, foi o início de uma parceria entre o fotógrafo e a marca italiana, em que o briefing por detrás de cada foto parecia ser “falem mal, mas falem.” Já a Yves Saint Laurent, em 2002, causau escândalo quando lançou um novo perfume. Para o apresentar, concebeu uma campanha em que se via um homem parcialmente nu. Ou quase nu, à semelhança do que já tinha sido feito, em 1971, pelo próprio Saint Laurent. "O perfume é usado na pele", explicou na altura Tom Ford, então diretor criativo da maison. "Então, porquê esconder o corpo?". Outra campanha, igualmente “ousada”, e por coincidência com assinatura de Ford, foi a que lançou a primavera/verão 2003 da Gucci. A imagem revelava um elegante logotipo da Gucci gravado na zona púbica da modelo Carmen Kass. Neste caso, “o choque” teve consequências, já que o anúncio chegou a ser proibido no Reino Unido. Hoje, a mesma campanha é elogiada pela sua irreverência. Chocante? Bom, poderíamos dizer que chocantes são os assuntos e as falcatruas políticas que não vemos resolvidas, chocante é, em pleno século XXI, ainda haver fome no mundo, chocante é a violência de todos e entre todos, chocante é a maldade que assola o planeta Terra — e o universo digital, no geral. Estas imagens não são chocantes. Ferem suscetibilidades? Nada que um par de óculos escuros não resolva.

Em 1982, o fotógrafo Oliviero Toscani foi nomeado diretor de arte do Grupo Benetton, criando anúncios que confrontavam visceralmente o público com imagens como a de um homem com SIDA, prestes a morrer numa cama de hospital ou — ao que parece igualmente chocante naquela época — pessoas de diferentes etnias a saírem juntas. “Não há imagens chocantes, há apenas a realidade chocante", declarou Toscani em entrevista à CNN. “Uma imagem pode ser mais forte do que um exército.” E assim, através da atenção que os media davam às suas campanhas — que não mostravam apenas blusões e camisolas coloridas, mas alertavam, acima de tudo, para questões como a Guerra do Golfo ou a desigualdade racial — ele expôs uma realidade que era, frequentemente, ignorada pelo mundo. 

Tal como sublinha a esse propósito a revista Dazed: "As pessoas gostam de subestimar a publicidade de Moda como se de uma fantasia frívola se tratasse, ou apenas de se concentrar nos seus lados negativos, mas são essas imagens que têm o poder de mudar a nossa paisagem cultural." Diz-se que a ordem é o resultado da nossa tendência pela procura da segurança; já o caos seria o resultado da nossa vontade de repensar o mundo de uma forma criativa. E como é que se pode pensar o mundo de uma forma criativa se não olharmos para este de uma forma mais crua e sem floreados? Aprender a colocar-se certas questões, como “Conseguirei alertar os leitores para o problema X?” ou “Trarei algum insight para resolver o problema Y?” Ao invés de pensar, a medo: “Será que esta imagem vai chocar X ou Y?” 

Não se conclui, aqui, que é necessariamente obrigatório chocar para se ser criativo. Mas, certamente, um caminho criativo que choque será sempre um caminho melhor. Talvez não o mais bonito, nem sequer o mais agradável à vista. Mas aquele que provoca uma emoção além daquelas que estamos habituamos a sentir. Uma emoção que vai além da pureza das coisas. Um despertar da mente, um acordar para a vida. Um ver-as-coisas-como-elas-são porque, na maioria das vezes, é assim que elas são. O público é que não as quer ver.

Artigo originalmente publicado na edição de março de 2021 da Vogue Portugal.

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