Fotografia: Raimonda Kulikauskiene / Getty Images.
Ou como perdemos a cabeça por um peluche dentudo.
Há poucas coisas mais deliciosamente humanas do que um drama inventado. O tipo de tragédias que gozam com o significado da palavra. Longe das lágrimas, faturas e decisões judiciais, estes são aqueles que, ainda que possam ser reais, são tudo menos sérios. Mas que, mesmo quando confrontados com a falta de seriedade, existem com uma intensidade quase religiosa. É este o meu primeiro pensamento quando vejo o tsunami de Labubus que me ocupam as redes sociais. Para os que vivem fora da esfera online — abençoados sejam, ainda me junto a vocês um dia —, o Labubu é uma criatura de olhos redondos e sorriso ligeiramente maléfico. Parte gremlin, parte bichinho de peluche pós-apocalíptico, nasceu da imaginação do artista Kasing Lung, mas ganhou vida (e cotação) graças à gigante dos brinquedos de designer Pop Mart — empresa chinesa que dominou o mercado global de art toys com uma precisão militar e uma fofura que quase disfarça o capitalismo selvagem que a alimenta. Antes de dissecarmos a forma como estes monstros infetaram tanto o TikTok como carteiras de todo o mundo, voltemos à sua villain origin story. Kasing Lung criou a personagem há mais de uma década, como parte do seu universo ilustrado The Monsters. O Labubu era, originalmente, só mais um dos seus muitos seres ligeiramente assustadores, com nomes estranhos e expressões que pareciam carregar traumas infantis e dieta de açúcar refinado. Mas em 2018, quando o Pop Mart, a empresa de bonecos chinesa, decidiu lançar uma série de miniaturas de vinil com o boneco como protagonista, algo mágico (e comercial) aconteceu: o Labubu tornou-se viral.
Mas o Pop Mart não é como qualquer outra empresa de brinquedos. O modelo de negócio da companhia é simples e perverso: blind boxes — aquelas caixinhas lacradas onde se escondem bonecos que não sabes que estás a comprar, até as abrires. A adrenalina, ah, a adrenalina. E entre todos os personagens lançados pela marca (incluindo as também populares Molly, Dimoo ou Skullpanda), o Labubu começou a destacar-se. Primeiro tímido, depois cobiçado, e finalmente objeto de culto. As versões limitadas esgotam em minutos. Há filas, em shoppings, de adolescentes e adultos sem fim à vista. E, no mercado de revenda, um Labubu raro pode facilmente ultrapassar os € 500, com versões exclusivas a roçarem os € 2.000. Sim, dois mil euros por um boneco de vinil de 7 centímetros. Recentemente, esta febre capitalista atingiu um novo pico quando um Labubu feito em colaboração com a marca de luxo Sacai e a banda de K-Pop Seventeen foi vendido por mais de 30 mil dólares.
Mais estranho ainda? Há mercado. E está a crescer. O Pop Mart virou império. E o fundador virou bilionário. Por detrás desta loucura com orelhas pontiagudas está esta empresa chinesa que começou em 2010 a vender pequenos brinquedos com um apelo meio infantil, meio obscuro, e que hoje é avaliada em milhares de milhões de euros. Literalmente. Em 2020, o Pop Mart entrou na Bolsa de Hong Kong. Pouco depois, o seu fundador, Wang Ning, tornou-se bilionário. Aos 30 e poucos anos, tinha construído um império a partir de bonecos colecionáveis com olhos grandes e pés pequenos. A mesma pessoa que, anos antes, vendia figuras em feiras de cultura pop, tornou-se um dos magnatas mais improváveis da nova economia criativa chinesa. Não estamos a falar só de brinquedos. Estamos a falar de culto, escassez, hype, capitalismo emocional e, claro, nostalgia. O Pop Mart percebeu aquilo que a maioria das marcas ainda está a tentar adivinhar: os adultos de hoje não querem crescer. E, acima de tudo, querem pertencer a uma comunidade, por mais capitalista que seja. É isso que os Labubu oferecem. A pergunta que mais me assombra neste fenómeno é simples: porquê? Esta é a parte mais fascinante: ninguém sabe exatamente porquê. O Labubu não é mais bonito do que outras personagens. Não é mais famoso. Não tem filme na Netflix, nem uma linha de perfumes. Mas há qualquer coisa neste monstro que cativou a atenção do mundo de uma forma sem precedentes.
Mais uma vez relembro: sou um fervente hater de Labubus. Os peluchinhos que adornam carteiras por todo o mundo irritam-me de uma forma quase incompreensível. Digo-o porque, de facto, compreendo a origem da frustração. O âmago do meu ódio não se encontra na sua aparência, ou sequer na sua popularidade, mas na forma como totalizaram o zeitgeist. Não é só por ser do contra, é porque, quando há algo que nos afeta culturalmente de tal forma, normalmente tem algum tipo de profundidade, de significado emocional. Pense-se em Barbenheimmer, há dois verões, ou em Wicked, no ano passado. Normalmente o fascínio cultural tem algum tipo de fundamento para além de um fundo capitalista. O sucesso destas pequenas figuras apoia-se na sua estratégia de marketing, orquestrada de forma maquiavélica para despertar o interesse pueril que vive dentro de nós. Online, um comentário diz: “É a interseção perfeita entre consumismo e apostas.” Ainda que o comentário tenha sido feito de forma positiva, não consigo deixar de o entender na sua versão mais negativa. A permeação cultural de algo que tão pouco de cultura tem é quase distópico. E talvez seja esta a resposta à minha pergunta anterior: o Labubu é o reflexo dos dias que vivemos —contraditório, ansioso, um pouco grotesco, mas profundamente carente de algo que nos abrace, mesmo que seja em vinil e poliéster.
Claro que toda esta febre também levanta questões. Se o fascínio pelos Labubus se limitasse ao conforto emocional e nostálgico que evocam — essa espécie de regressão controlada a um tempo em que não tínhamos de pagar faturas nem responder a e-mails com "segue em anexo" —, talvez até os tolerasse. Talvez até comprasse um. Mas não. O colecionismo de brinquedos, que em tempos era coisa de nicho, um território onde geeks, artistas e designers trocavam entre si raridades com respeito mútuo e uma pontinha de obsessão saudável, tornou-se uma distorção de mercado, uma bolsa emocional em plástico e vinil. Hoje, o que se passa com os Labubu roça o delírio financeiro: drops com data e hora marcada, filas digitais, preços inflacionados e fóruns privados onde se especula sobre qual será o próximo modelo a ser lançado. Já ninguém compra para guardar ou amar, compram para vender. Pior ainda: compram para não abrir. Existem pessoas que colecionam caixas seladas, na esperança que o mistério valha mais do que o objeto. É o capitalismo tardio em modo kawaii.
E depois há a estética, ou melhor, a ausência dela. Porque os Labubu não só tomaram conta das prateleiras e dashboards, como também começaram a sair à rua, pendurados nas carteiras como talismãs contemporâneos, miniaturas com olhos gigantes e expressões ambíguas. A tendência até tem nome: Jane Birkinfying. Em homenagem à musa que, nos anos 70, transformava as suas Hermès em diários visuais, cheios de bugigangas, vestígios de vida vivida, não de stock comprado por impulso. A Jane Birkin verdadeira prendia conchas que apanhava na praia, colocava pins políticos, deixava o cigarro que fumava a meio dentro do bolso da mala. Era personalização com propósito. Agora? É só repetição com hype. Com os Labubu, essa ideia de uma mala que espelha individualidade foi substituída por uma espécie de catálogo ambulante. Já não se trata de quem és, mas de que edição limitada conseguiste comprar. A ironia, claro, é que a estética de Birkin era tudo menos estética: era desleixo com charme. Já os Labubu são um excesso controlado, um esforço tremendo para parecer espontâneo. As malas transformam-se em altares genéricos, onde o mesmo boneco com orelhas de elfo aparece pendurado entre um chaveiro com glitter e uma AirTag com capa da Bottega. Jane, perdoa-os porque não sabem o que fazem.
E aqui está o verdadeiro paradoxo: na tentativa de mostrar personalidade, estamos a seguir à risca um guião. O Jane Birkinfying, na era dos Labubu, tornou-se um uniforme. E isso, mais do que a febre dos brinquedos, é o sintoma de um mal maior: a dificuldade de sermos únicos num mundo que nos empurra para sermos virais. Porque se todos pendurarmos o mesmo boneco na mala, quem é que se distingue? Pior: quem é que pensa? Bem, no final desta rant digo isto: quem sabe como vou acordar amanhã? Muitos amigos meus concordaram comigo sobre esta questão e, no dia seguinte, vi-os com Labubu na carteira. Talvez seja recrutado para o culto. Se me virem com o bonequinho, este será o meu último manifesto antes do delírio.
Originalmente publicado no Summertime Daydreams: The Escape Issue, a edição de julho/agosto de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.
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