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Do underground ao mainstream, vai um add to cart

02 Nov 2021
By Sara Andrade

Não. Por norma, não se dá licença a estes movimentos que chegam em modo de desvio da cultura vigente. Mas, de qualquer modo, estes movimentos também não dependem dessa autorização. Chegam, contestatários, donos de si, clandestinos, subterrâneos, até se infiltrarem nos meandros, mais ou menos aceites, da sociedade. Que, com maior ou menor resistência, muitas vezes acaba por lhes abrir a porta para que entrem e sejam por demais bem-vindos. Com licença para ficar.

Dá licença? Não. Por norma, não se dá licença a estes movimentos que chegam em modo de desvio da cultura vigente. Mas, de qualquer modo, estes movimentos também não dependem dessa autorização. Chegam, contestatários, donos de si, clandestinos, subterrâneos, até se infiltrarem nos meandros, mais ou menos aceites, da sociedade. Que, com maior ou menor resistência, muitas vezes acaba por lhes abrir a porta para que entrem e sejam por demais bem-vindos. Com licença para ficar.

English version here.

Artwork de David Delruelle.
Artwork de David Delruelle.

"Acho que tenho uma espécie de síndrome de Tourette, no sentido em que, se não posso dizer algo, torna-se muito apelativo fazê-lo. Estás numa banda de rock – do que é que não podes falar? De Deus? Ok, vamos a isso. É suposto escreveres músicas sobre sexo e drogas. Pois, mas não o vou fazer.” Haverá forma mais disruptiva de começar um texto sobre underground do que com uma citação de Bono em vez de um dos ex-líbris desse movimento? Um William S. Burroughs, um Jack Kerouac, até um Andy Warhol ou Basquiat? Afinal, todos têm quotes fantásticas. Há uma que gosto particularmente de Burroughs e que reza algo como “nos Estados Unidos, tens de ter um comportamento desviante ou morres de tédio”, o que também se poderia usar nalguma espécie de paralelismo com parte da cultura underground, mas para efeitos de pontapé de saída, damos a benesse ao frontman dos U2 para tocar aqui num nervo: as subculturas e contraculturas têm gerado, ao longo dos anos, controvérsia no contexto em que se inserem, tanto quanto adeptos fascinados pela sua mensagem e cariz marginal. Saem das normas vigentes, de um nicho não aceite pela sociedade da época, mas, na maioria das vezes, estes movimentos culturais acumulam fãs e seguidores que acabam por ser absorvidos por ela (a sociedade), muitas vezes de tal forma que o seu lado underground se perde no tempo para os colocar na via rápida do mainstream. E isso pode ser tão mais verdade no séc. XXI. Numa altura em que a tecnologia acelera essa transição, ainda há espaço para o nicho? Para o underground? Na era da cancel culture e do politicamente correto, ainda há margem de manobra para se ser contracorrente? Disruptivo? Sim, mas não no sentido de começar um texto com uma citação de Bono Vox, issonão é nada disruptivo, fyi. Disrupção é outra coisa.

É, em larga parte, aquilo pelo qual os movimentos underground são conhecidos. Contestatários por natureza, colocam em causa o status quo e desviam-se das normas vigentes numa espécie de rebeldes com causa “que se afastam um bocadinho da norma, das culturas dominantes, das culturas hegemónicas, daquelas que têm maior visibilidade”, explica, à Vogue, Ricardo Campos, investigador do CICS-Nova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais), sobre o que é isto de definir sociologicamente o conceito. “Portanto, o termo underground remete precisamente para uma ideia de algo que é subterrâneo, que é pouco visível, que está mais escondido, que é mais marginal ou periférico, ou seja, há aqui uma série de adjetivos que poderíamos empregar, no fundo, para descrever aquilo que são as subculturas e as culturas underground”. Subculturas e contraculturas serão, talvez, sinónimos mais self-explanatory que o estrangeirismo – sinónimos que diferem subtilmente na sua aceção, mas, ainda assim, sinónimos: “[underground] é um termo que, na verdade, eu não uso muito”, esclarece. “E pode ser usado por alguns colegas, mas na verdade, aquele que eu tenho utilizado mais, até porque há uma corrente de pesquisa que tem trabalhado estas questões, é o conceito de subculturas. Que de alguma forma se aproximam da ideia do underground. (…) Subculturas porque preveem formas de expressão que são de natureza mais subterrânea, mais minoritária, mais subalterna, e tudo mais, e, portanto, de alguma forma, podem estar associadas a esta ideia de underground”, refere o investigador, mestre em Sociologia e pós-graduado em Antropologia Visual. “O conceito de contraculturas também é um conceito que é empregue, mas que é associado a um período histórico em particular, nomeadamente das contraculturas nos Estados Unidos, nos anos 60 e 70, enquanto que o conceito de subculturas está mais associado a um movimento britânico que surgiu nos anos 70, por exemplo, o movimento punk, e não só. Portanto, os conceitos por vezes estão associados a determinados períodos históricos e correntes de estudo e daí que nós, de facto, os possamos usar como sinónimos, embora eles tenham à partida uma conexão mais direta com determinadas correntes de estudo ou períodos históricos em que são mais discutidos. Mas, mais uma vez: underground, subculturas, contraculturas, são tudo termos próximos”, diz-nos Ricardo Campos. E diz-nos também a história britânica que, de facto, o que se considera contracultura surgiu em meados dos sixties e prolongou-se para os seventies. O underground boémio não era novo, com uma cena gay discreta no background e uma comunidade de artistas que se manifestava sem grande alarido. O emprego em pleno permitiu o crescimento da cultura jovem, mas era pouco para uma juventude que queria ser mais do que uma secção num sistema estabelecido: diferentes locais adotaram apelidos diferentes e underground, termo que se aplicou em Nova Iorque e Londres, era uma alcunha genérica para uma comunidade de indivíduos com ideias semelhantes contra o sistema e a guerra, e pró-rock'n'roll, a maioria dos quais tinha um interesse comum por drogas recreativas. Viam a paz, o amor e a experimentação sexual como mais dignos da sua atenção do que entrar no estabelecido estilo de vida heterossexual e consumista, ainda que não se opusessem a quem o escolhesse viver. O contrário não era tão válido: as classes médias da época ainda achavam que tinham o direito de impor os seus valores a todos os outros, o que resultou no conflito social e, consequentemente, na caracterização do movimento como uma contracultura.

É neste sentido do “contra a cultura” vigente que se mexe o movimento, ou se mexem os movimentos subterrâneos, mas não apenas por isso: o underground tem também uma veia ativista, tem propósitos, não é do contra só porque sim. Não é à toa que underground é usado para caracterizar várias culturas alternativas que se consideram, ou são consideradas por outros, diferentes da corrente principal da sociedade e da cultura, sendo que o termo é usado porque há uma história de resistência sob regimes severos onde o conceito underground foi empregado para se referir ao sigilo necessário dos resistentes. Ricardo Campos corrobora esta veia ativista indissociável do termo: “a minha opinião é que, de facto, há uma dimensão política, digamos assim, em tudo o que é underground ou subcultural. Porque nós estamos a falar de grupos culturais, sociais, e de práticas sociais que são de, alguma forma, ou desprezadas, ou perseguidas, ou criminalizadas, ou que têm pouca visibilidade na esfera pública e, portanto, os atores sociais dominantes (e nós aqui podemos incluir os atores políticos e as autoridades, por exemplo), aquilo que fazem – se nós pensarmos num conjunto de subculturas ou culturas underground –, muitas vezes, é uma perseguição e uma criminalização destes movimentos. Pensemos no caso do graffiti, que é um caso que eu conheço bem, ou no caso das raves, por exemplo… há um conjunto de movimentos sociais e culturais que têm sido catalogados como underground que são de facto desprezados, criticados e, em muitos sentidos, também criminalizados. Mesmo quando não são perseguidos, o que acontece é que de alguma forma se afastam da norma dominante e das práticas dominantes e pretendem fazer ou produzir algo um bocadinho à margem. E, portanto, têm também este papel político de, de alguma forma, confrontar aquilo que são os poderes, mas também que são as normas sociais e, desse ponto de vista, eu diria que sim, que há uma dimensão política, nalguns casos mesmo ativista, de procurar que um conjunto de práticas e normas possam ser debatidas, possam ser questionadas, de alguma forma reformuladas, invertidas, e muitos desses movimentos estão depois associados a movimentos sociais também importantes que se movem mais na esfera política. Se nós pegarmos no caso do punk, por exemplo, o punk tinha uma vertente política forte, não é? O movimento hippie também. Se pegarmos noutro caso que eu conheço bem que é o do rap – e o rap quando surgiu tinha também de facto esta dimensão mais marginal, mais periférica – o rap é um instrumento fortemente politizado. E, portanto, temos aqui vários exemplos em diferentes campos, em diferentes esferas, em que a dimensão política está muito presente.” As vertentes culturais foram pródigas nesta advocacia do underground e a imprensa não foi diferente: a emergência de zines e de imprensa subterrânea, nomeadamente na cena londrina, que, nos sixties, se muniu dos seus próprios jornais – como o International Times, com recrutas renomados academicamente – e revistas, além da manifestação musical, artística e estilo de vida em geral, é também parte deste movimento de contracultura. Este International Times, por exemplo, começou como um jornal de artes e incluía reviews de teatro e entrevistas, mas também abordava temas tabu da altura: uma coluna gay intitulada Elizabeth (a homossexualidade ainda era ilegal, por isso, era necessário um “nome de guerra”) e outra sobre drogas onde, conta o escritor e co-fundador Barry Miles ao The Guardian, em 2011, “listávamos o preço da erva em diferentes cidades e denunciávamos polícias à paisana. Não tardou a que fossemos presos”. Os jornais clandestinos eram produzidos maioritariamente por motivos idealistas de forma voluntária e não remunerada, um pouco por amor à camisola e à causa, um amor que ainda hoje se verifica: nem todos os artistas querem expor em galerias, nem todos os músicos querem assinar por uma grande discográfica. Perseguidos pela polícia e discriminados pela maioria, Elizabeth Nelson, no seu livro The British Counter-Culture, 1966-1973: A Study of the Underground Press (1989) aponta esta imprensa subterrânea como “o principal repositório de pontos de vista e visões contraculturais e serviu para manter o movimento unido e dar-lhe a sua identidade”. De certa forma serviu como agregadora das diferentes vertentes culturais e de pensamento, hoje um trabalho que muito provavelmente estaria a cabo das redes sociais. Essas, cujo escrutínio é tão veloz quanto perigoso, cujo julgamento em massa não passa pela apresentação de provas e cuja disseminação impossibilita a mastigação que qualquer alimento para a mente e alma dos movimentos de outrora permitiriam. Ainda se pode falar em contracultura na era da Internet, quando se pode mobilizar uma multidão numa questão de horas e um qualquer evento, por mais underground que possa ser, é transmitido simultaneamente em todo o mundo, em tempo real? É possível haver contracultura quando a própria cultura é multifacetada? Ricardo Campos não dúvida que sim: “acho que é perfeitamente possível [ainda falar-se em underground]. Esta ideia de subcultura, underground, contracultura, existe e sempre existirá. Porque sempre houve pessoas e grupos que necessitaram de se expressar de forma contrária àquela que é dominante e que é hegemónica, por diferentes razões: seja por opções sexuais, seja porque fazem parte de minoria étnica, seja porque gostam e consomem um tipo de música que não  é reconhecido como a música dominante, ou seja, há aqui várias variáveis do ponto de vista sociológico, antropológico e tudo o mais, que levam a que determinadas pessoas se juntem e formem nichos. E é nestes nichos que, por vezes, se produzem estes circuitos culturais underground. E isso existirá sempre. Agora, o que acontece é que estão sempre em constante renovação. E em transformação.”

Essa transformação pode dar-se mais rapidamente na era tecnológica e sem-fronteiras, mas sempre existiu: os movimentos marginais têm uma tendência para se imiscuirem na sociedade, mais tarde ou mais cedo. Seja porque “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, seja porque, em modo Las Vegas, “o que é contracultura não fica na contracultura”, seja porque há uma série de expressões às quais podemos recorrer para criar a analogia, a verdade é que a contestação gera questão, e a questão gera avanço, muitas vezes colocando o que era underground no mainstream. Como? “Eu diria que há vários caminhos, vários percursos”, aponta o investigador. “Depende um bocadinho destas subculturas que estamos a falar e diria que esta passagem para o mainstream tem acontecido em basicamente todos estes exemplos que dei; de alguma forma, verificou-se esta passagem, e eu acho que há aqui vários fenómenos que estão interligados. Por um lado – e eu tenho estudado isto mais do ponto de vista da ligação destas culturas com as culturas juvenis –, aquilo que acontece é que grande parte destas subculturas são de facto de natureza juvenil, surgem entre jovens e, diria que, com o tempo e a passagem ao estado adulto, aquilo que antes era algo periférico e contestatário passa a ser algo normal (pensemos no caso paradigmático do rock, não é?). Este é um processo – é o facto de, com o tempo, aqueles que eram adeptos praticantes destas subculturas, que de alguma forma eram rejeitadas pelos poderes e por uma sociedade adulta, no fundo, acabam por se tornar algo bem mais aceite. E depois há aqui uma questão que é também fundamental, que tem a ver com o nosso próprio modo de vida: vivemos numa sociedade capitalista, consumista, e portanto esta passagem para o mainstream só se dá se, de alguma forma, estas culturas produzirem mercadoria, se se tornarem mercadoria – e em todos os exemplos que dei, encontramos isso. O rap começou a ser praticado na rua, e a partir do momento em que a indústria discográfica tomou conta do rap – o rap e o movimento hip-hop, na verdade –, disseminou-se por todo o planeta. O graffiti, quando surgiu, era produzido de forma relativamente rudimentar e, hoje em dia, temos indústrias que produzem latas especificamente para o graffiti. E há muitos [graffiters] que se tornaram artistas e, portanto, vendem o seu trabalho, quer em galerias, quer pela decoração do espaço público; a partir do momento em que estas produções se transformam em mercadoria, nós estamos a um passo de tornar isto mais acessível a toda a gente e, o que era de nicho, o que era underground, não circulava, ou não circulava para uma massa, a partir do momento em que se torna mercadoria, torna-se acessível. E torna-se um bem que é comercializável. Portanto, este é um passo fundamental para adquirir este estatuto de mainstream – que nalguns casos é mesmo mainstream, noutros casos não é, mas, pelo menos, torna-se algo mais visível e mais aceite”. Este passo acontece porque o sistema avança com a vanguarda, com a novidade, e o fator novo acompanha este desvio das normas: não é à toa que grandes marcas de Moda olham para o streetwear para se inspirarem e forjarem parcerias; tal como a indústria da publicidade busca ideias no mundo da Arte e a Música bebe dos ritmos de nicho – de certa forma, o efeito marginal tem um propósito ambivalente, que é o de repudiar e de atrair. Não foi à toa que Frank Zappa, um outro nome incontornável deste movimento, apregoou que “o mainstream vem até ti, mas és tu que tens de ir até ao underground”. O que o torna tão controverso acaba por ser também o seu chamariz, transformando lentamente o seu rótulo de underground para mainstream (um termo que, não aleatoriamente, tendemos a associar ao que é comercial): “de facto, uma das marcas do capitalismo e deste sistema consumista que nós temos é o facto de precisarmos de estar sempre a inovar, de criar mercadoria (criar mercadoria é criar coisas novas). E criar coisas novas é reinventar aquilo que já existe ou ir buscar muitas vezes aquilo que é menos conhecido, é de nicho e está na margem”, atesta Ricardo Campos. “Em toda a nossa história cultural, isso tem-se verificado. A indústria discográfica, para se reinventar, precisa de muitas vezes inspirar-se e ir buscar artistas que são de nicho, que são mais underground, e quem fala da indústria discográfica fala de outro tipo de campos culturais em que é importante criar produtos novos. E os próprios consumidores culturais necessitam desta constante reinvenção. E, de facto, estes campos mais underground, mais periféricos, mais marginais – e quando falo em marginais, estou a falar também do ponto de vista simbólico, mas não só –, por vezes têm este poder de atração do novo. Daquilo que é inusitado, daquilo que é inesperado. Daquilo que, por exemplo, se pegarmos no caso do Brasil, surge nas favelas e que é desconhecido e que de repente se torna viral e que se torna numa mercadoria nova; ou o que se passa, por exemplo, nos subúrbios de Lisboa e nós temos vários exemplos musicais, alguns de grande sucesso, que de repente passaram completamente para o mainstream, e surgiram na periferia, ligados a culturas africanas e culturas híbridas e de síntese, como os Buraka Som Sistema, e muitos outros. Se pegarmos num exemplo paradigmático, como é a Quinta do Mocho, que tem sido muito falada não só pela Galeria de Arte Urbana, mas por um conjunto de jovens DJs que surgiu na Quinta do Mocho e que se tornaram estrelas não só nacionais, mas internacionais, aquilo que acontece, é que, no campo da cultura e das indústrias culturais – estamos a falar de uma indústria –, é necessário, não apenas sangue novo, mas coisas novas. Que estejam sempre a surgir. Porque é assim que o mercado funciona. E o mercado da cultura, na verdade, não é muito diferente do mercado automóvel ou de outro mercado qualquer, é preciso produtos novos. E estes produtos novos por vezes despontam onde menos se espera e começam por ter uma dimensão e um papel mais reduzido, de nicho, minoritário, de underground, e depois passam para o mainstream.”

A passagem para mercadoria implica um outro aspeto: a perda, nem que seja em parte, do seu cariz contestatário, característica inerente ao conceito de underground. Não quer dizer que não continue a ter uma mensagem, por detrás, mas perde a sua força de contracultura, porque passa a ser comodidade aceite: “a minha opinião é que, a partir do momento em que se torna mercadoria e vendável, perde o seu papel político. Porque, no fundo, já faz parte do sistema, foi absorvido pelo sistema, e é transacionável”, concorda Campos. “Não sei se perde completamente, mas em grande medida perde aquele papel mais disruptivo que tinha, independentemente de, depois, estes artistas – estamos a falar já de artistas reconhecidos pelas instituições e legitimados – terem um discurso mais crítico, mais politizado. Agora, a partir do momento em que são aceites pelas instituições, em que são legitimados enquanto artistas, e legitimados pelo sistema, eu julgo que, em grande medida, perdem de facto o papel que detinham quando trabalhavam noutra esfera. Numa esfera que não era reconhecida, que era, lá está, mais subdural, mais underground… e esta passagem, do meu ponto de vista, de facto traduz-se nessa desvalorização do papel político e interventivo que tinham. E perde essencialmente esta capacidade disruptiva, de afrontar os poderes, de questionar o status quo, de ir contra aquilo que são as normas e as regras vigentes… porque, no fundo, esta passagem implica uma aceitação daquilo que é norma, não é? Que são os circuitos dominantes e hegemónicos. As galerias de Arte, o mercado da Arte, o papel das instituições… de alguma forma, é entrar no sistema. Enquanto que o graffiti, inicialmente, é profundamente anti-sistema. Não pede autorização para pintar, é perseguido e criminalizado, não tem – longe disso – um lado económico, é a antítese, se quisermos, do modelo capitalista. E entrar neste sistema de Arte é entrar também num sistema capitalista da Arte”. O que não quer dizer que já não se possa falar em underground – ele existirá sempre. O facto de vivermos numa sociedade multifacetada é que diluiu a sua preponderância, multiplicando os nichos e, por isso, diminuindo ainda mais a visibilidade de um movimento mais coeso que, ainda que subterrâneo, se revelava dominante em relação a outros de nicho. O underground não morre porque underground é evolução e uma sociedade está em constante evolução: “O underground é fundamental”, confirma com veemência Ricardo Campos. “Ou seja, em qualquer sociedade, em qualquer cultura, tem de haver sempre contestação, tem de haver debate e tem de haver de alguma forma, também, aqueles atores que estejam disponíveis para ir contra aquilo que é a norma vigente, porque só assim é que a sociedade muda, a sociedade se transforma. E nós podemos pegar em imensos exemplos de pessoas que historicamente eram consideradas ou doentes ou marginais e que, na verdade, demonstraram que estavam do lado certo da História. Peguemos, por exemplo, no movimento LGBTQ, o movimento gay nos Estados Unidos, e a forma como a homossexualidade foi entendida historicamente e o papel que estes movimentos tiveram – e que eram, lá está, movimentos underground, de nicho –, cruciais numa série de transformações. Peguemos, por exemplo, no caso do movimento negro e dos direitos civis, também, nos Estados Unidos, Se não fosse este papel que tiveram, nada tinha mudado. Ou seja, para que a sociedade mude, é importante que haja sempre estes fenómenos de contestação, de ativismo, de recusa da norma, de questionamento daquilo que é a norma, o status quo e os poderes instituídos. Isto, do ponto de vista cultural, do ponto de vista político, é fundamental. Portanto, qualquer sociedade saudável precisa que estes grupos existam e coexistam com aquilo que é a sociedade dominante. Caso contrário, vivemos em sociedades totalitárias, quereprimem fortemente estes grupos e que não consideram sequer a hipótese de existirem pessoas que de alguma forma vão contra ou duvidam daquilo que é a norma vigente e consensualizada.”

Continuam então, a existir, subculturas, certo? Claro. Basta perguntar às autoridades, que continuam a infiltrar-se em grupos que, no nosso contexto, são muitas vezes considerados marginais – fale-se em ambientalismo ou em Black Lives Matter ou em qualquer outra marcha de contestação. Protestos estudantis, grupos de direitos dos animais, ativistas ambientais e o movimento antiglobalização, há underground pronto a despontar em qualquer era, mesmo – ou, principalmente – na digital. Mesmo num contexto do politicamente correto, há – talvez até ainda com maior veemência – espaço para contracultura: “uma das características do underground é precisamente ligar pouco àquilo que é o mainstream e que é o dominante. Portanto, esta questão que tem sido muito discutida da cancel culture, do termo politicamente correto, que também é um termo duvidoso e que tem sido debatido por diferentes vertentes, eu acho que não impede – na verdade, até de alguma forma, pode favorecer – o aparecimento de grupos mais fechados, mais indizíveis, mais subterrâneos”, analisa Ricardo Campos. Aliás, “mesmo no meio digital, é muito curioso, porque há uma série de nichos, de movimentos underground que nós desconhecemos e o digital, curiosamente, favoreceu esta ligação entre pessoas que, de outra forma, nãose encontrariam, não teriam oportunidade de se expressar, de falar, nalguns casos, de problemas e gostos comuns. E, portanto, aquilo que existe, sempre existiu e continua a existir são esses movimentos mais subterrâneos, disso não tenho dúvidas”, acrescenta. De certa forma, o sistema reprime a resistência com uma mão, enquanto puxa, para a superfície, as culturas underground com a outra. Talvez seja uma boacaltura para ir buscar Burroughs e uma das suasccitações (não tendo espaço de abertura, ganhe, então, aqui o protagonismo de fecho do artigo): “o desespero é o material cru da mudança drástica. Apenas aqueles que conseguem deixar tudo o que sempre acreditaram para trás podem ansiar pelo escape.” E desespero assim não tem época. Nesse sentido, a história repete-se. E repetir-se-á sempre. Sem pedir licença.

Originalmente publicado na edição Underground da Vogue Portufgal, de outubro 2021. 

Sara Andrade By Sara Andrade

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