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Tri-co-ti-lo-ma-ni-a

11 Aug 2020
By Joana Moreira

Difícil de pronunciar? E o-ni-co-fa-gi-a? Os vulgarmente designados “tiques nervosos” são tão difíceis de soletrar como de combater. Mas e se roer unhas (ou arrancar cabelos) for muito mais do que um mero mau hábito?

Difícil de pronunciar? E o-ni-co-fa-gi-a? Os vulgarmente designados “tiques nervosos” são tão difíceis de soletrar como de combater. Mas e se roer unhas (ou arrancar cabelos) for muito mais do que um mero mau hábito?

"Tem uma educação ótima, uma vida ótima, não há stress em casa, porque é que ela está assim?” Foi a pergunta que um casal de pais preocupado fez ao tricologista Ricardo Vila Nova, quando levaram a filha à clínica no centro de Lisboa. A falta de cabelo da menina tinha, afinal, uma explicação: tricotilomania, uma perturbação do espectro das perturbações obsessivo-compulsivas que se caracteriza pelo arranque repetitivo de cabelo ou pelos de diferentes partes do corpo. “O fator mais difícil foi os pais estarem em negação da condição. Mas era óbvio”, explica o médico. “Imediatamente as pessoas questionam-se: ‘Não tem nada a ver com o nosso estilo de vida nem com aquilo que proporcionamos em termos de edução e de vivência em casa. Porque é que ela está assim?’” Sensibilizados pelo profissional, os pais “começaram a monitorizar e a pedir na creche para ver como é que estava a almofada da criança depois do sono. E começou a revelar-se que, por exemplo, no horário da sesta havia bastante cabelo na almofada, o que levava a crer que o puxar de cabelo acontecia durante o processo dela adormecer. Acaba por ser um refúgio de conforto, ainda que autodestrutivo”, explica Ricardo.

O caso acima descrito não constitui a regra, mas antes a exceção, para os que sofrem com este tipo de perturbações. Estima-se que 1 a 4% da população mundial sofra com tricotilomania, mas o silêncio ainda domina, sobretudo da parte de quem sofre, que se sente muitas vezes isolado no sofrimento e na vergonha. Foi só em 2018 que Sara Sampaio partilhou pela primeira vez que sofria da perturbação que a leva a arrancar os pelos das sobrancelhas. Choveram mensagens de pessoas que partilhavam a mesma luta e angústia. E, com isso, o assunto ganhou alguma (convenhamos, muita) visibilidade. Ainda assim, “há uma negação da condição, porque as pessoas nem sempre se apercebem do que estão a fazer”, explica o tricologista. “Muitas vezes as pessoas chegam até mim com uma área difusa e depois tentam perceber o que é que aconteceu. E às vezes só depois de muito falar é que lá se consegue perceber que a pessoa puxa o próprio cabelo. Mas não pergunto isso diretamente [...]. É delicado, temos de ir às apalpadelas quase, para chegar a essa conclusão. E nem sempre as pessoas assumem”, diz. 

Da tricotilomania à onicofagia (roer as unhas) ou ao skin picking (estar com a unha na pele até fazer ferida, tirar uma crosta, ou literalmente picar a pele), a área dos transtornos do controlo de impulsos não é estranha a Eva Francisco Pinheiro, psicóloga, que já lidou com pacientes com estas perturbações. Da sua experiência, “o importante é que haja sempre um tratamento combinado, entre a terapêutica farmacológica, em que normalmente são prescritos antidepressivos, e a psicoterapia, que vai aumentar a consciência do comportamento, sobretudo quando são processos automáticos, vai identificar que tipo de estímulos é que são estímulos gatilho, ou estímulos competentes para desencadear aquele tipo de comportamento, e vai realizar substituições adaptativas, ou seja, vai substituir o comportamento do skin picking, da onicofagia ou de arrancar o cabelo, por outro tipo de tiques que sejam mais socialmente aceites”. Mas alterar comportamentos é mais fácil na teoria do que na prática, até porque a mesma fórmula não se aplica a todos. “Por exemplo, [no caso de roer as unhas] se existe uma fixação oral pode ser pedido à pessoa que utilize pastilha elástica para manter o foco na fixação oral. Mas é uma coisa que vai depender muito de paciente para paciente. Tenho um caso muito grave neste momento de onicofagia em que tentei a pastilha elástica e não resultou. Porque não é um hábito enraizado naquela família o do uso da pastilha elástica. Então, acabámos por fazer algo mais físico, que é utilizar luvas de látex, em situações em que era possível, claro. Na escola era incomportável, mas como ele [o paciente] roía mais as unhas a ver televisão, em casa, que nem é um ambiente de stress, conseguimos que utilizasse luvas de látex. São substituições que vamos fazendo consoante os pacientes e que dependem muito do historial do paciente, das rotinas, dos hábitos...”

Para o tricologista Ricardo Vila Nova, a estratégia para os pacientes que sofrem de tricotilomania é similar. “Temos de arranjar formas de desviar a atenção, criar atritos à volta das áreas onde as pessoas pegam, como usar um boné, ou mudar a textura do cabelo. Se o cabelo estiver mais gorduroso, ou com um produto que tenha cheiro ou até sabor, aquilo fica nos dedos. É como se aplicássemos aqueles vernizes que sabem mal, nas unhas, para perder o hábito de as roer. O objetivo é tentar desviar o cérebro para outro lado. O que recomendamos é usar algo para não ir com a mão diretamente ao cabelo, porque é um ato muitas vezes inconsciente, é exatamente como mascar uma chiclete, ou quando estamos mais irritados ou nervosos puxar de um cigarro e fumar, é um hábito que nos leva a fazer isso e que é quase inconsciente. Se criarmos um atrito no meio, [isso] dificulta ou relembra-nos que vamos fazer algo que não é benéfico. Temos de disciplinar o cérebro nesse sentido. É um pouco difícil porque é um tique que nos dá conforto”, admite.

Um mal menor?

Basta fazer uma viagem pela memória e contar quantas pessoas na vida já conheceu que roem as unhas para não duvidar que, apesar de frequente, o hábito é mais vezes visto apenas como inestético do que propriamente preocupante. “Mesmo os próprios técnicos da área da saúde mental desvalorizam a parte da onicofagia”, confessa Eva Pinheiro sobre um comportamento “que não é que seja normal, mas que é recorrente.” “No caso do skin picking e da tricotilomania é mais difícil desvalorizar, sobretudo a tricotilomania porque efetivamente muitas vezes aparecem com peladas e aí o transtorno e a perceção corporal ficam tão afetados que se considera que há transtorno ao indivíduo e que tem de ser tratado. A onicofagia e o skin picking conseguem ser mais desvalorizados nesta área e são considerados tiques de menor importância, e que causam igualmente desconforto no paciente, pode é não ser verbalizado esse desconforto. Até porque nós estamos a falar aqui de perturbações que surgem em média entre os nove e os 13 anos. Embora haja um outro foco, que acontece no pré-escolar, o grande foco é mesmo entre os nove e os 13 anos.” E nem sempre ficam por aí. A psicóloga assegura que “este tipo de sintomas muitas vezes são preditores de outras perturbações no futuro. Um início mais tardio deste tipo de sintomas é um preditor que possivelmente poderá vir a desenvolver uma perturbação depressiva ou de ansiedade.” 

Com uma literatura a apontar para mais mulheres a sofrer com o transtorno da tricotilomania, com o couro cabeludo a ser a zona do corpo mais afetada (80%), seguida pelas pestanas (47%), sobrancelhas (43%), região púbica (23%), extremidades (15%), axilas (6%) e abdómen (4%), a psicóloga Eva Francisco Pinheiro pede cautela a olhar para esta conclusão que põe o sexo feminino em maioria. “Não podemos olhar para estes valores como sendo valores absolutos, uma vez que as mulheres tendem a procurar mais o dermatologista em questões de skin picking, de tricotilomania, enquanto nos homens há maior desvalorização do problema, e há outras formas de se contornar, por exemplo uma tricotilomania se for no couro cabeludo é fácil de contornar rapando o cabelo. E é raro uma mulher rapar o cabelo por causa disso. E, por isso, como há mais pedidos de ajuda por parte de mulheres é normal que na literatura se identifiquem mais mulheres como tendo este tipo de transtorno do controlo dos impulsos.”

Consequências na autoestima 

Apesar de todos estes comportamentos constituírem momentos de escape em busca de conforto, o efeito é autodestrutivo, concordam os profissionais. A autoestima não sai ilesa. “O impacto é extremamente significativo, e embora estas obsessões não sejam desencadeadas por preocupações com a aparência, a preocupação com a aparência surge na consequência deste tipo [de comportamentos], porque há uma vergonha muito grande, uma tentativa de esconder, de atribuir a outras causas, como a alopecia, por exemplo”, explica a psicóloga. “O cabelo está muito associado, tanto nos homens como nas mulheres, a uma visão do autoconceito e ao cabelo forte, que é o que acaba por não acontecer, porque o cabelo se torna mais fraco. Em termos do autoconceito começa a afetar muito, começa a afetar as relações sociais das pessoas que sentem que têm a necessidade de se esconder, sentem culpa pelo comportamento que não conseguem controlar e sentem uma vergonha muito acentuada, o que faz com que se isolem e que evitem o contacto com os outros”, afirma.

Porém, mais do que a imagem que se vê refletida no espelho, este tipo de transtornos pode deixar marcas a longo prazo. No caso da tricotilomania, o tricologista garante que há um impacto: “Tal como acontece quando se faz uma depilação, estamos a minimizar o número de folículos com o tempo. Ao longo da nossa vida estamos programados para ter um número de folículos ao longo dos anos. O que estamos a fazer é a acelerar essa ação à medida que vamos puxando um fio de cabelo. O cabelo tem um ciclo médio de cinco a sete anos, cada fio de cabelo, portanto ele cresce da raiz e estende-se por todo o caminho até mais ou menos à linha de cintura, e depois renova para um outro fio de cabelo que vai crescendo. Esse ciclo repete-se ao longo da nossa vida numa média entre 20 a 30 vezes, uma média geral. Ora se nós estamos a arrancar o cabelo estamos a perder ciclos. Estamos a acelerar o ciclo. Aquele cabelo que deveria cair em quatro ou cinco anos está a ser arrancado ao primeiro ou ao segundo, e depois vai haver um cabelo que vai nascer já num novo ciclo, e voltamos a arrancar aquele cabelo. Ao fim de quatro, cinco, seis anos, há áreas em que o cabelo já não renasce outra vez. Começamos a definir uma ausência permanente de fio.” Sejam elas mais ou menos definitivas, as consequências dos comportamentos provocados por estas perturbações, nomeadamente as do foro estético, só parecem poder ser evitadas de uma forma: mudando de hábitos – e, para isso, pedindo ajuda.

Artigo originalmente publicado na edição de julho/agosto de 2020 da Vogue Portugal.

 

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