The Velvet Touch issue | To be continued: Na aflição, recuar ou avançar?

10 Dec 2022
By José Couto Nogueira

Há quem diga que, em tempos de crise, as pessoas se refugiam no passado; mas também há quem afirme que o incómodo é o motor da inovação.

Há quem diga que, em tempos de crise, as pessoas se refugiam no passado; mas também há quem afirme que o incómodo é o motor da inovação. 

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Não estou a pensar em moda, particularmente, antes a olhar para o universo mais vasto, onde a moda está incluída, a que chamamos de cultura. Ao relembrar tempos de aflição, como o atual, procuro descobrir o que estes tempos nos indicam sobre o comportamento — nas artes, nas ideias, nas aparências e nos espíritos. Talvez estejam aqui as pistas do que nos espera. Lembro-me da década de 1960 (sim, já levo muitos anos “disto”) e de como essa época era de alegria e esperança. Parecia que o mundo caminhava inexoravelmente para melhor: mais liberdade, criativa e não só, mais compreensão, paz e amor, flower power e felicidade universal. A tecnologia avançava no sentido do bem bom; novos materiais sintéticos proporcionavam modas exuberantes e uma arquitetura fantástica; o urbanismo favorecia os espaços verdes, as vacinas garantiam saúde, o amor conhecia novas formas, as ideias conservadoras horrorizavam-se mas já não tinham força para se impor. O contraste com este tempo de agora é arrepiante. O mundo está dividido — radical, uma palavra nova que se aplica a tudo — vive-se com a peste, a guerra, desigualdades à vista de todos, inflação, falta de energia, poluição ameaçadora, mau perder e nenhum ganho. A arquitetura não tem escala humana, as modas dissolvem-se, a arte não traz evasão. Estou farto de estar em casa e não me apetece sair.

Quando leio sobre um tempo histórico mais alargado do que a minha vida, descubro que sempre se alternaram períodos de euforia com épocas de depressão. A História não anda numa reta traçada pelo destino, roda em círculos entre o quase apocalipse e o paraíso à vista. Depois da Grande Guerra de 1914-18, em que morreram milhões de pessoas, atrelada à pneumónica de 1918-20, seguiu-se um período de euforia, festas de arromba, o art-déco e as modas ousadas. Josephine Baker com uma tanga de bananas, o futurismo utópico de Metrópolis e a mulher de aço (1927), as noitadas retratadas em Babylon Berlin. Logo a seguir a Grande Depressão (1929-39), que não impediu o supérfluo a quem podia. E aqui temos uma referência, da diva da moda Elsa Schiaparelli: “Em tempos difíceis a moda é sempre surpreendente.” Ou seja, quando as coisas estão más, as pessoas procuram inovações provocadoras. Em tempos difíceis, olha-se para o futuro. Depois veio outra guerra, a de 1939-45, em que nada se construiu, tudo se destruiu em escala industrial. No pós-guerra, um período de alívio, surge um segundo modernismo, o estilo Dior, a penicilina, um grande upgrade do nível de vida. E uma mudança na moda, que considero deplorável: os homens deixaram de usar aqueles chapéus de feltro elegantérrimos do período entre-guerras... E aqui temos a situação contrária: tempos fáceis geram inovações — não provocadoras, mas antes confortáveis, suaves.

Estarei a contradizer-me? Ou estou a chegar a uma contradição histórica? Quando Napoleão se tornou imperador, nos idos de 1800, surgiu o estilo imperial, neo-clássico magnífico, as cinturas das mulheres subiram para baixo dos seios bem salientes, os chapéus ganharam plumas, a pintura tornou-se sumptuosamente alegórica. Contudo, depois do massacre geral que foram as guerras napoleónicas, entrou-se num período estético sombrio, moralista, de luxo contido, quase envergonhado. Não houve volta ao passado, mas também não se iluminou o futuro. O século XIX, o primeiro com inovações técnicas exponenciais, foi um período cultural intenso — na música, Chopin, Grieg, Strauss, e tantos outros, na pintura, os impressionistas, os fauvistas — já no final, o art nouveau e o abstracionismo, Kandinski. Nesta situação, foi a ausência de crise que provocou a evolução.

Quando olho para os grandes momentos criadores centrados num ponto geográfico — outra maneira de procurar se é a aflição ou a paz de espírito que faz avançar ou recuar a cultura — também me deparo com contradições. O nascimento do romantismo, essa volta ao passado mítico, ocorreu precisamente em Jena, uma minúscula cidade alemã, com Goethe, Schiller, Humbolt e outros, num período de grande aflição, na passagem do século XVIII para o XIX. Por outro lado, um avanço importante na modernidade, que aconteceu precisamente em Bloomsbury, um bairro da periferia de Londres, no pós-I Grande Guerra, com Virginia Woolf, E. M. Forster. Clive Bell (e até John Maynard Keynes, criador da moderna economia), e se prolongou durante um período de paz e tranquilidade.

Outro “aqui e agora” que deu a volta ao mundo foi o movimento hippie, brotado expontaneamente nos anos 60 em Bay Area, nos arredores de São Francisco, na Califórnia, com Frank Zapa, os Grateful Dead, os Chambers Brothers e tantos outros. Embora fosse um movimento contra — a guerra, a caretice, o ranço — era pacífico, de olhos postos num futuro feliz.

Para complicar mais a minha cabeça, vejo que os períodos bons e maus não estão sincronizados universalmente. Aqui em Portugal, a alegria libertária dos hippies correspondeu aos “anos de chumbo”, isolados do mundo, obrigados a valores medievais. As mulheres não podiam usar calças ou minissaia. A polícia cortava-nos os cabelos compridos. Os cartazes na rua diziam “Droga, loucura, morte.” A guerra colonial era uma imposição aterradora. Escapei à polícia, mas quando fui para a tropa, em 1970, deram-me uma carecada, roupa áspera e botas cardadas, e uma “missão” que nada representava para a minha geração. Essa época de aflição não correspondeu a nenhuma volta ao passado, mas antes a um desejo ardente de futuro. Não se favorecia a cultura, nem a arte, nem a inovação, reforçava-se a censura. Os meus amigos traziam de Paris o jornal Le Monde e a revista Rolling Stone, eu não podia lá ir porque me tiraram o passaporte. Mas depois de 1975, tudo mudou. Uma segunda revolução, cultural, sucedeu à Revolução, e na década de 80 surgiu em Lisboa um grupo de criadores (honra a Manuel Reis, que os liderou e inspirou), o renascimento das noites loucas e dos dias criativos. Ou seja, a “desaflição” permitiu olhar para o futuro e esquecer o passado. Não é comparável aos outros “aqui e agora” que referi, porque não se tratou de inventar um mundo novo; tratou-se de trazer o mundo novo cá para dentro, de nos colocar ao par com o que acontecia lá fora.

Então, como é que ficamos? Por mais que tente compreender o mundo, só posso falar por mim. Nos maus períodos, não se pensa em mais nada do que sair deles. Não se vê nenhum mérito no passado, as promessas, assim como os estilos, as modas, a artes, estão todas à espera no futuro. Nos bons períodos, vive-se esse futuro. Quer-me parecer que a aflição abafa a criatividade, o bem estar estimula-a. Quando vai ser a próxima época dourada, não sei — mas tenho cá umas ideias a incubar, à espera da inexorável reviravolta da História.

Inserido na edição The Velvet Touch, publicada em dezembro de 2022.

José Couto Nogueira By José Couto Nogueira

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