Opinião   Palavra da Vogue  

Testemunho: Tilintar no coração

12 Feb 2021
By José Couto Nogueira, 75 anos

Tenho sete décadas de vida, mas, tal como Orlando, a famosa personagem de Virginia Woolf que atravessou quatro séculos, passei por uma época antiga em que o amor era mitificado e o sexo maldito.

Tenho sete décadas de vida, mas, tal como Orlando, a famosa personagem de Virginia Woolf que atravessou quatro séculos, passei por uma época antiga em que o amor era mitificado e o sexo maldito. Ler ou escrever sobre o amor é sempre um passatempo frívolo, porque o único amor que conhecemos, que nos interessa verdadeiramente, é aquele que sentimos cá dentro. O dos outros, entre eles, ou em relação à nossa pessoa, é apenas a realidade à procura da ficção. Posto isto, entremos diretamente no assunto: amar é o único sentimento que nos faz ter a certeza de estarmos vivos. Ponto final. O resto são histórias. E vamos a elas. Se o sentimento do amor permanece imutável desde que o Homem se tornou Sapiens, as suas manifestações, os chamados “costumes”, mudam conforme a época e a cultura. E, mesmo dentro de uma cultura, variam de país para país. Por exemplo, os relacionamentos sentimentais na Suécia de 1950 eram diferentes dos que existiam nos Estados Unidos, na mesma década. Hoje, em 2020, os amantes agem de uma maneira em França e de outra maneira na Rússia. Entrei na minha “vida consciente” em Portugal, na década de 1960. No caso do nosso país, há um marco avassalador, a Revolução de 1974. Quem já andava pelo mundo antes desse ano, vivia num tempo que passou instantaneamente da Atualidade para a Antiguidade. Portanto, peço aos mais novos que acreditem que esse mundo realmente existiu. Tal como 1984, de Orwell, ou The Handmaid’s Tale, de Atwood, parece ficção, mas foi real. Muitos dos meus contemporâneos não se conseguiram livrar dele. Mas um dia estarão todos mortos e estas reminiscências da Idade das Trevas serão, finalmente, ficções para entreter leitores perplexos.  O amor existia e era reconhecido, mas dentro dos preceitos da Santa Madre Igreja, codificado em lei pelo Santo Estado Novo e cumprido com naturalidade pelas famílias. O sexo não existia, quer dizer, não era reconhecido, nem sequer falado em voz alta. Na família de uma amiga minha, dizia-se “o rabo da frente”, pois “vagina”, “ratinha”, ou qualquer referência explícita era pecado e, pior ainda, de mau gosto. Toda a gente sabia que amor e sexo eram realidades muito próximas, mas, como não se falava nisso, sempre que surgia o que podia ser amor, mesmo na forma inocente de um namoro, entravam em funcionamento os alertas contra o sexo. Parece estranho? Era naturalíssimo. A minha primeira namorada morava em Cascais, numa vivenda isolada no cimo de uma colina, e eu morava em Lisboa. Como era de praxe, os pais dela viam o nosso romance com grande desconfiança. Pertencíamos ao mesmo nível social, senão nem admitiriam sequer a hipótese. Mas gostávamos um do outro, era um sentimento que podia levar ao inominável. Escrevíamos cartas durante a semana, o que era tolerado. Telefonemas, nem tanto. Aos fins de semana eu lá apanhava o comboio para Cascais, sabendo que não poderia ir a casa da menina. Ou nos encontrávamos em “reuniões” – festas de amigos, com supervisão adulta – ou então eu subia a colina semeada de pinheiros, até ao muro das traseiras da vivenda. À hora marcada, ela conseguia escapar, porque a família era numerosa, e aparecia no escuro, bela como a lua. Acariciávamo-nos, abraçávamo-nos, trocávamos beijos na boca, curtos e sensuais. Uma prevaricação deliciosa, uma ousadia contida. Os irmãos dela não sabiam, eu não contava aos meus amigos. Quando nos encontrávamos nas reuniões, ou na praia, ficávamos juntos, até dávamos a mão, desajeitadamente. Ela era a mulher da minha vida, um dia haveríamos de ser grandes, casar e ser muito felizes. "Se ela não queria, já não me interessava. Amores não retribuídos são para masoquistas." Nem sempre os pais se opunham a um namoro. Se as famílias se conheciam, ou se uma investigação sobre a outra não revelava nada de impróprio. Mas a tolerância não implicava aceitação. Com um dos meus amigos, passámos horas e horas, de noite, do outro lado da rua, à espera de ver passar por alguma janela a menina dos sonhos dele. Ela sabia, deixava-se ver de fugida, e um visionamento era uma noite ganha. Mais tarde foram autorizados a namorar e noivaram, querendo dizer que ele podia frequentar a casa. Casaram, tiveram filhos, e estão juntos até hoje. Das suas amantes, mulheres de outra condição, talvez secretárias, não vou falar. Ao fim de anos desta repressão, finalmente o amor da minha vida cedeu e começou a namorar um idiota qualquer que a família aprovava. Enfrentei-o, pois claro, mas algo me impediu de ser agressivo – já digo porquê – e ele acobardou-se. Chorei vários dias, consolado por uma mãe sem muito jeito para lidar com sentimentos. Então, porque é que não lhe bati? Só mais tarde, à medida que fui descobrindo o meu funcionamento, é que percebi. Se ela não queria, já não me interessava. Amores não retribuídos são para masoquistas. Enfrentei-o porque parecia mal se não o fizesse, mas realmente não valia a pena puni-lo. Ela tinha escolhido, azar o meu. Tinha o direito de mudar de opinião, mesmo sendo mulher. Pouco tempo mais tarde – um ou dois anos letivos, a nossa unidade de medida – apaixonei-me perdidamente pela prima de uns amigos. Vivia com a mãe, uma senhora muito triste porque o marido abalara para as colónias com outra, e passava o dia a tomar sedativos. Aceitou-me sem engulhos – até gostava de mim, e deixava-me ir lá a casa. Eu ia, umas vezes oficialmente, outras abaixo do radar. Nessa época já tinha uma motorizada, deslocava-me rapidamente. No apartamento, nas Avenidas Novas, moravam a mãe, a avó e a filha. Como havia pouco espaço, a luz da minha vida, tão terna, tão doce, dormia no sofá-cama da sala, que era a primeira porta a partir da entrada. Fazíamos amor desajeitadamente, em silêncio, às escuras, com os olhos fechados e os ouvidos abertos. Nunca vi o corpo dela. Uma bela noite, barulho no corredor. Levantei-me num salto, mas na sala não havia nenhum recanto onde me pudesse esconder. A janela cobria uma parede inteira – arquitetura International Style – tapada com um enorme cortinado. Fiquei de pé, nu, encostado ao cortinado, quando a avó irrompeu pela sala e acendeu a luz, a dizer que tinha ouvido uns barulhos. Acontece que a avó via muito mal, mesmo muito mal. O meu amor resmungou que estava a dormir, não tinha ouvido nada. Tal como quando uma fera nos pressente no mato, o segredo é a imobilidade absoluta. A senhora fechou a luz e saiu. Tudo isto levou um minuto, mas foi dos momentos mais intensos da minha vida. Tanto que ainda me lembro. "Descobri uma coisa estranha: sexo sem amor não me excitava." Enquanto corria este amor delicioso, ocorreu um episódio inusitado. No paredão de Cascais, fui abordado por uma rapariga gira – de uma maneira estranha, mas gira – que me disse, com uma franqueza perplexante, que há dois verões me observava e que gostaria de se encontrar comigo. Uma situação invulgar, que me despertou, juro, apenas curiosidade. Da primeira vez, encontrámo-nos na Estufa Fria, e ficou claro que não era o local que nos convinha. Para ir direto ao assunto, criou-se um esquema de film noir: os pais dela iam todas as noites ao cinema, depois do jantar. Eu ficava do outro lado da rua, sentado na motorizada, à espera de os ver sair – eles não me conheciam. Tocava e subia. Era uma filha única mimada, com um quarto que eu só tinha visto no cinema, cheio de rendas e fofuras. Tão obcecada que mandara bordar as nossas iniciais nos lençóis. Tinha uma coleção de baby dolls e lingerie sexy, chinelas de salto com pompom, olhos melosos e gestos lânguidos. Se os meus amigos vissem, não acreditariam. Se acontecesse com eles, contariam a toda a gente. Mas nunca souberam; para mim era um segredo que escondia de mim próprio. E descobri uma coisa estranha: sexo sem amor não me excitava. Trair a outra arreliava-me. Tentava viver aquele filme, mas sem entusiamo. O que não parecia diminuir em nada o entusiasmo dela. A criada ficava de atalaia. Quando chegava a hora quase certa de os pais voltarem, eu ia para a cozinha. Na porta para a escada, ela ficava atenta ao elevador. Quando ouvia as vozes deles a subir, eu descia pelas escadas. A criada, uma rapariga nova e despachada, acompanhava-me no primeiro lance, para ter a certeza. Uma noite, ajoelhou-se no lancil, abriu-me a braguilha. Queria provar aquilo que a patroa tanto apreciava. Foi a coisa mais chocante que me aconteceu. Não conseguia configurar a situação dentro do meu modo de ver o mundo. Chegado à rua, decidi que aquilo tinha de acabar, ali e agora. A vida social continuava rotineiramente. As reuniões sempre supervisionadas em casa dos amigos, que tinham irmãs. Conversava-se, dançava-se, mas nada de poucas-vergonhas. Quando eram na piscina de alguém, no verão, em que estávamos de fato de banho – nada de tangas ou biquínis – já não se podia dançar. Isso era coisa dos filmes americanos, de gente sem vergonha. Idas ao cinema, só em grupo, com uma mademoiselle ou alguma tia que controlava a situação. Como é que os meus amigos, que não faziam “aquilo” com as namoradas, se safavam? Iam em grupo às “meninas”, no Bairro Alto. Encontravam-nas nas tascas, iam para pensões de curta permanência. Fui uma vez. Achei aquilo horrível. A rapariga, coitada, não tinha o glamour nem o interesse das que víamos nas revistas importadas pelos pais. Eu era o contrário do “Belo Antonio” do Pasolini, em que o herói só consegue fazer amor com mulheres que não ama. Ela bem se esforçou, para concluir que eu era impotente – mas a culpa era dela, uma tradição maldita que os homens lançaram sobre as mulheres e ainda hoje vale. Quando a menina do baby doll percebeu que eu tinha desistido de vez, desesperada, contou tudo ao papá. Sabia que o senhor, façanhudo, iria recorrer à solução consagrada. E, de facto, ligou para o meu pai, a exigir casamento. Legalmente não era obrigado, uma vez que éramos os dois menores. O meu pai, um gentleman, ciente da situação, muito experiente de duas mulheres e incontáveis amantes, respondeu que éramos muito novos, quando muito podíamos namorar sob controle e quando chegássemos aos 18 anos logo se veria. O outro recusou, ponto final. O meu pai contou-me o telefonema e acrescentou, à laia de conclusão: “Se calhar devia ter-te levado às putas...” "O direito à felicidade consiste também no direito a terminar algo para procurar algo melhor, mais adequado para a pessoa que agora se é." Possidónio Cachapa Além das meninas havia as estrangeiras. Genericamente conhecidas como “bifas”, tanto podiam ser realmente inglesas como de outra nacionalidade qualquer, desde que tivessem a lassidão de costumes que não se requeria às virginais portuguesas. Eu não costumava andar nessas caçadas, mas um dia conheci uma sueca que me tilintou no coração. Estava sozinho, começámos um namoro a sério. Foi a primeira vez que conheci os comprimidos vaginais anticoncecionais. Aliás, uma noite, estávamos nós no sofá da sala dela, os pais a dormir no andar de cima (ele era piloto da Scandinavian Airlines), e ouvimos um barulho. “Se o teu pai aparecer, o que vai fazer?”, perguntei. “Vai perguntar se eu tenho os comprimidos”, respondeu ela. Mas não foi só isso que aprendi. Ela lia-me os jornais suecos, deu-me a conhecer a civilização, tão diferente do buraco fechado onde vivia. Era socialista, discutíamos animadamente. Uma vez disse-me: “Pensava que eras estúpido, mas agora percebo que vocês são é ignorantes!” Como namorávamos e eu tinha muito orgulho nela, levei-a à famosa festa anual do Clube da Parada de Cascais, a créme de la créme da “alta sociedade” da província que isto era. Fomos mal recebidos e no dia seguinte vieram pedir-me satisfações: “Como te atreves a trazer uma bifa para uma festa onde estão as nossas irmãs e namoradas?”  Posso dizer que fui um percursor, mas não único. Nessa época, no final do regime, as irmãs e namoradas começaram a engravidar e houve muitos casamentos à pressa. Eu, felizmente, escapei dessa vergonha. Casei com uma estrangeira – não a sueca, outra – cujos pais também vinham do mundo pós-Inquisição, acompanharam o namoro e ajudaram-nos a montar casa. O mundo lusitano estava a rachar pelas costuras. Só faltava mesmo uma revolução política para aquela estrutura diabólica desabar de vez. Não quero terminar com lições de moral, por isso recorro a um amigo, o escritor Possidónio Cachapa: “O direito à felicidade consiste também no direito a terminar algo para procurar algo melhor, mais adequado para a pessoa que agora se é. Ao longo das nossas vidas, somos várias pessoas, nos gostos, na forma de ver o mundo, nas nossas necessidades afetivas. Por isso, a primeira pessoa pode não ser a que terá de suportar tudo isso, tanto mais que ela própria se transformou, tal como nós. E se por um acaso essa pessoa deixou de nos amar, então é que é mesmo tempo de a abraçar, agradecer tudo o que vivemos de bom com ela... e de lhe dizer que parta. Não por ela, mas pelo espaço que nos dará para voltarmos a encontrar quem nos aprecie como um dia novo.” Isto, que ele diz em 2020, resume muito bem o que o antigamente não era. Este testemunho foi originalmente publicado no Love Issue da Vogue Portugal, publicado em dezembro de 2020.

José Couto Nogueira, 75 anos By José Couto Nogueira, 75 anos

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