Opinião   Palavra da Vogue  

Testemunho: O pote de ouro enterrado no fim de um arco-íris

12 Feb 2021
By Rui Catalão, 49 anos

Eu tive um primeiro amor feliz, um segundo amor feliz, um terceiro amor feliz e por aí fora. Enfim. Todos os meus amores teriam sido felizes se eu tivesse capacidade para ser feliz. Dá-se o caso de eu não saber exatamente o que é isso de amar e ser feliz.

Eu tive um primeiro amor feliz, um segundo amor feliz, um terceiro amor feliz e por aí fora. Enfim. Todos os meus amores teriam sido felizes se eu tivesse capacidade para ser feliz. Dá-se o caso de eu não saber exatamente o que é isso de amar e ser feliz.

Ao longo da minha vida fui a muitos casamentos, quase sempre a acompanhar os meus pais. Os noivos, mal os conhecia. Houve vezes em que nem os conhecia de todo. O facto de só ter participado em dois casamentos de amigos meus diz bem o tipo de amigos que fiz ou a ideia que eles tinham de mim, para nem se darem ao trabalho de me convidar. Da primeira vez que fui casar um amigo o entusiasmo dele era tanto que, ao aproximar-se da mesa onde estavam reunidos os camaradas, a primeira coisa que nos disse foi: “Vamos lá a emborrachar-nos e bem depressa.” A boda não foi promissora. Nem me lembro do baile. É provável que tenha saído antes. Dois amigos, que ficaram até mais tarde, fizeram a vontade ao noivo, emborrachando-se grosseiramente. Quando a festa chegou ao fim e um deles se aproximou do carro, o outro tentou convencê-lo a apanhar um táxi. Seguiu-se uma discussão de bêbados. O primeiro não o quis ouvir e sentou-se ao volante; o segundo não desistiu e puxou-o do carro à força. O condutor caiu desamparado na gravilha e fez um golpe na cara. Estava o caldo entornado. Para não armar um escândalo, o agredido fez uma daquelas afirmações veementes: “Não me voltes a dirigir a palavra!” Voltou a entrar no carro e a amizade terminou ali. Em menos de um ano, os noivos também já se tinham separado. Nem fui a tempo de lhes entregar o presente de casamento, que deixara esquecido em casa.

O segundo casamento foi perturbador. Assim que a noiva entrou na igreja, o meu amigo, à espera dela no altar, começou a chorar. Até o padre dar a cerimónia por terminada, não houve maneira de estancar as lágrimas. A culpada, disse-me mais tarde, foi a mãe dele, que desatou num pranto ao pisar o átrio. “Pára de chorar ou daqui a pouco já somos dois.” A mãe não parou, ele aguentou, aguentou, mas quando o pai da noiva lhe entregou a mão da filha mal conseguiu vê-la. Não era só ter os olhos alagados. É que ele ainda por cima usava lentes de contacto. Ao dirigir-me para o parque de estacionamento, nas traseiras da igreja, assisti a um casal de namorados aos berros um com o outro. Os dois só conseguiam repetir a mesma frase. Ele dizia: “Larga-me, deixa-me ir embora”; ela fazia variações circulares em torno de: “Eu gosto tanto de ti e tu só me bates!” A moça agarrava nele por um braço, ele dizia “Larga-me, deixa-me ir embora”, depois sacudia-a, ela ia ao chão, como se não tivesse equilíbrio sem o braço dele, e voltava à ladainha: Eu gosto tanto de ti e tu só me bates”. Fiquei a assistir, para confirmar se lhe batia mesmo, mas como a única coisa que ele fazia era tentar libertar-se dela, que não desistia de o agarrar, entrei no carro e desandei, envergonhado pelos dois. Mesmo entre amigos íntimos, como nós éramos, eu não podia adivinhar se o amigo do segundo casamento era assim tão feliz como aparentava ser. Havia, no entanto, um ingrediente que me fazia acreditar que sim. Eles amparavam-se um ao outro como dois coxos que partilham a mesma bengala. Ela aceitava com uma resignação de santa os defeitos dele e ele adorava-a como se adoram as santas de altar, cobrindo-a de beijos, de festas e de frases lambidas. Consolava-se dos seus pecados e pavores agarrando-se a ela. Era um devoto. Nunca se esquecia de rezar aos pés da padroeira que tinha lá em casa. Ela estava destinada a ter uma morte de santa. Adoeceu antes de celebrarem 20 anos de casamento, resistiu um par de anos e foi-se numa agonia atroz, a que nem as drogas mais pesadas a pouparam. Não deixou filhos. Só muitas tentativas. O meu amigo seguiu com a sua vida, claro está. Ou talvez não, que sei eu? "Queremos mais da nossa vida do que aquilo que ela tem para nos dar." Os fantasmas podem não existir, mas isso nunca impediu ninguém de acreditar neles com fervor. Apesar de ser da mesma geração do meu amigo, e de ter assistido a episódios do seu crescimento e envelhecimento, assim como ele tem assistido aos meus, a nossa história tem sido bem diferente. A dele foi de amores impossíveis e não correspondidos, seguindo-se um estado de bonança, com toda a aparência de eterna, que só a morte da esposa veio interromper. Eu tive um primeiro amor feliz, um segundo amor feliz, um terceiro amor feliz e por aí fora. Enfim. Todos os meus amores teriam sido felizes se eu tivesse capacidade para ser feliz. Dá-se o caso de eu não saber exatamente o que é isso de amar e ser feliz. Afinal, esses amores acabaram, daí se terem seguido outros. Ou afinal não acabaram? Será que o que acabou foram as relações, com tudo o que nelas há de prosaico e de mundano e de torturante, com o amor a continuar, indiferente à separação, à pequenez dos nossos segredos e mentiras? O amor, tal como Deus, felicidade e verdade, são palavras poliédricas. Ninguém sabe muito bem o que significam, porque significam sempre mais qualquer coisa que não está ao nosso alcance. Inspiram sentimentos confusos. Tanto vemos o que mais ninguém consegue ver como ficamos cegos perante qualquer evidência. É provável até que essas palavras signifiquem todas a mesma coisa: que queremos mais da nossa vida do que aquilo que ela tem para nos dar.  À beira dos 50, o amor não me impressiona. Parece-me um sentimento reguila, cabotino e muito dado a exigências. As pessoas a quem reconheço alguma decência não fazem alarde do amor. Domam os sentimentos como um cavalo selvagem, não vá ele dar um coice. Cuidam do que têm e lhes aparece pela frente e não se deixam apoquentar com qualquer contrariedade. As pessoas que sabem amar, julgo eu, são essas, as que cuidam dos outros da mesma maneira que não deixam morrer as plantas do jardim nem os legumes da horta. Mantêm a casa arrumada e limpa. Tudo tarefas em que sou incapaz. Aqui há umas décadas, quando ainda vivia na casa dos meus pais, uma colega ofereceu-me o bonsai de um ulmeiro com sete anos. O porte daquele ulmeiro em miniatura era uma coisa linda de se ver. Em vez de subir na vertical, o tronco tinha crescido para o lado, depois curvava em forma de “u” e só então subia para formar a copa. Enquanto a minha mãe tratou do ulmeiro tudo correu bem, mas depois ela foi de férias, eu achei que era boa ideia pô-lo à janela e quando voltei a lembrar-me dele já estava morto. Mantive-o mais uns anos, ressequido e desfolhado, como um fóssil, para não me esquecer do meu descuido. Mas com o avançar do tempo até o fóssil desapareceu. "Passamos a vida a saltitar de ilusão em ilusão, como se o amor fosse um pote de ouro enterrado no fim de um arco-íris." Tive uma namorada que um dia me disse: “É tão difícil encontrar a pessoa certa... devia haver alguém a decidir por nós com quem é que devemos ficar. Pronto, este agora é o teu companheiro. Aprende a dar-te bem com ele.” Ela era bastante chanfrada, mas neste caso até consegui entendê-la. Passamos a vida a saltitar de ilusão em ilusão, como se o amor fosse um pote de ouro enterrado no fim de um arco-íris, julgando que nos basta uma pá para o desenterrar, mas o que mais temos em falta é o sentido de compromisso. “Há que assumir”, dizia ela.  As emoções fortes, as grandes paixões, as excitações da juventude, são um vaso pouco fiável onde plantar o amor. Os sentimentos que resultam dessas emoções são mais enganadores do que um ditador demagogo. Não se esqueçam que Stalin, Hitler, Mao Tsé-Tung e tantos outros torcionários deste mundo foram amados até à loucura pelo povo que governaram. O sentimento amoroso é presa fácil de sombras sugestivas e efeitos de luz, de olhares penetrantes e expressões misteriosas. É uma matéria excelente para a poesia, mas péssimo sustento para aguentar esta vida. Embora tenha morrido quando tinha apenas 41 anos, Jane Austen foi a autora que li que melhor percebeu as matreirices da causa amorosa. Logo no seu primeiro romance, Sensibilidade E Bom Senso, ela acompanha uma personagem, Marianne, que para mim define o quanto o amor encontra melhor convívio quando se rende às evidências do que quando insiste em caprichos românticos. Marianne apaixona-se por Willoughby, um jovem tão cativante e culto como ela, que desaparece da sua vida mal o compromisso entre ambos se torna iminente. Willoughby vai antes atrás de um casamento que lhe resolva as dívidas. Entretanto, Marianne negligencia as atenções do Coronel Brandon, um amigo da família, mais velho do que ela, e que é seu confidente. Para o leitor, é bastante óbvio que é com esta personagem que Marianne tem uma verdadeira relação, o que não a impede de continuar a ter emoções com a aparência desmedida de Willoughby. Só depois de as ver arder, às belas emoções, se vai apercebendo do quanto depende da paciente dedicação de Brandon. As emoções gritam por amor, a razão sussurra o caminho. "Talvez o amor seja o poder de manter o foco no que é importante e precisa de nós agora mesmo." Quem é que quer conviver com a razão, que é outonal e anuncia o inverno, quando temos o pipilar da primavera a excitar-nos as hormonas? Confunde-se facilmente o amor com as paixões. Quanto mais as vivemos, às paixões, mais elas se assemelham a uma droga. O processo repete sempre as mesmas etapas: euforia, obsessão, febre, dependência, desespero, desilusão, ressaca. E na ressaca as etapas anteriores juntam-se numa dança infernal que nos mutila da própria vontade de continuar a viver. Às vezes ocorre-me que o amor é um caminho pelo fogo da juventude em direção à brandura da maturidade. Não é bem um desejo, ou algo que possa ser conquistado. É antes uma aliança, em que nos devotamos, se tivermos força para tal, a preservar coisas que por si mesmas são precárias. Todos havemos de morrer. O universo mostra-se indiferente à nossa presença, mas sobrevivem pequenos sinais que garantem que não, que o mundo ainda assim evolui em direção à clareza, e que podemos participar dela. Nos meus sonhos, costumo deambular feito um mendigo por casas ao abandono, que exibem ainda vestígios de quando as habitei. Fico sempre apoquentado de não ter pago a renda, desde a última vez que lá dormi, e não percebo porque é que o senhorio não se livrou dos meus tarecos para arrendar a casa a outro inquilino. Sei que vou passar ali a noite, não tenho outro sítio onde ficar, mas no dia seguinte terei de ir embora, não vá o senhorio exigir-me a renda dos meses em que me fui embora. Vagueio sem trabalho nem companhia. Entre pedaços de paisagens familiares, reencontro-me ocasionalmente com gente que não vejo há muito tempo. Essa gente ignora-me, o que me faz desconfiar. Serei eu uma alma penada que já não pertence ao mundo dos vivos? O olhar destes seres que já fizeram parte da minha vida cruza-se então com o meu. Não é certo que me vejam, mas por um instante o seu olhar ilumina-se e eu acredito que mesmo sem me verem reconhecem a minha presença. Acordo nesse momento. Devolvido ao presente, em que as horas discorrem e os dias passam uns a seguir aos outros, fico com a impressão de o amor pertencer a um tempo em que o passado já vivido continua tão presente como o futuro que ainda resta para viver. Mas estando eu acordado, já não pertenço a esse tempo. E só me é possível agir estando desperto. É aqui, no presente, onde a realidade nos esbofeteia, que ainda podemos fazer alguma coisa e dar uso à nossa capacidade de amar. Gostava de ser mais esforçado, mais dedicado, mais devotado. Mas distraio-me e fico cansado com tanta dispersão a chamar por mim. Talvez o amor seja o poder de manter o foco no que é importante e precisa de nós agora mesmo. Mas isso é tão difícil de aprender!   Este testemunho foi publicado no Love Issue da Vogue Portugal, publicado em dezembro de 2020.

Rui Catalão, 49 anos By Rui Catalão, 49 anos

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