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Será que o amor platónico é... real?

11 Feb 2021
By Ana Murcho

Nunca aconteceu, mas podia ter acontecido. Os amores platónicos resumem-se quase todos assim – com um invisível, mas sempre presente, “e se”, que condiciona as ações, e os pensamentos, dos seus protagonistas.

Nunca aconteceu, mas podia ter acontecido. Os amores platónicos resumem-se quase todos assim – com um invisível, mas sempre presente, “e se”, que condiciona as ações, e os pensamentos, dos seus protagonistas. No final, o que prevalece é um gigantesco “nim”, que serve apenas para amolecer os corações mais inocentes - porque, nestas histórias, apenas um dos intervenientes está disponível para amar.

© Getty Images
© Getty Images

Em tempos tive um relacionamento espetacular – que nunca aconteceu. Na minha cabeça, estávamos a passos largos, mas firmes, do altar, mesmo que tivéssemos, ambos, pouco mais de dez anos. Estava tudo certo. Os nossos pais eram amigos. Os nossos amigos eram amigos. Nós éramos amigos. Conhecemo-nos no colégio, onde éramos os “terroristas de plantão” e, como seguimos para a mesma escola, passávamos grande parte dos dias juntos. Não era nada planeado, simplesmente acontecia: ele gostava de jogar ao berlinde, eu também; ele recusava-se a comer o lanche que nos davam, eu também. Era fácil, e simples, estarmos um com o outro. Tinha tudo para dar certo. Antes de nascermos, já os astros conspiravam a nosso favor – ele veio ao mundo um dia antes de mim. Uma das nossas private jokes consistia em esmiuçar quantas horas, exatamente, é que ele era mais velho que eu. Éramos felizes! Quando chegou a altura de jogar ao quarto escuro, que rapidamente evoluiu para brincadeiras mais matreiras, como a dança da vassoura, eu nunca “me cruzava” com ele, ou seja, eu nunca era a sua escolha óbvia. Nem era preciso, pensava, estávamos tão ligados que não precisávamos de um slow ao som de Bryan Adams, agarrados q.b., as nossas cabeças entrelaçadas, para confirmar algo de que eu estava certa – do nosso amor. Como mais tarde se veio a confirmar, enquanto eu via as nossas fotografias vezes sem conta (as poucas que existiam nos anos 80, normalmente referentes a acontecimentos especiais, como o Carnaval, ou o início do ano letivo), ele tinha outras coisas em mente. E eu não fazia parte de nenhuma dessas coisas. Porque eu era apenas “a amigalhaça”, que ficaria, eternamente, na friendzone. Quando ele arranjou a primeira namorada – que é como quem diz, a primeira miúda com quem andou de mão dada - senti uma faca espetar-se-me no coração. E foi então que percebi que tinha andado séculos (quando somos mais novos tudo demora séculos) a viver uma relação que só existia dentro da minha cabeça. Ele nunca soube. Eu nunca lhe disse que, para mim, estivemos juntos metade da nossa curta existência. Para quê contar-lhe? Para quê falar-lhe de uma ilusão que era apenas minha, e que nunca se tornou real? Hoje sei que essa foi a minha primeira relação platónica. O “amor platónico”, expressão usada com frequência no vocabulário popular para referir um amor impossível ou inalcançável, não sexual, deve o seu nome a Platão (350 a.C.), filósofo grego que examinou este tipo de relacionamento na sua obra O Banquete. No entanto, o famoso pensador nunca usou, ele próprio, o termo. O “amor platónico” defendido por Platão, passe a redundância, seria um amor essencialmente puro, que não se fundamenta em nenhum interesse (antes na virtude) e é desprovido de paixões – que segundo ele são cegas, materiais, efémeras e falsas. Só no século XV “amor platonicus” seria utilizado pela primeira vez, por Marsilio Ficino, filósofo italiano, ao referir-se a um amor centrado na beleza de caráter de alguém em detrimento dos seus atributos físicos. Com a publicação, em 1936, de Platonic Lovers, do poeta e dramaturgo inglês Sir William Davenant, a expressão disseminou-se, voltando a carregar consigo o cariz de virtude e empatia que lhe tinha sido originalmente dado por Platão. No mundo moderno, “amor platónico” é algo difuso, que poucos conseguem definir – mas que quase todos já experienciaram. A expressão serve tanto para relações que existem apenas num plano de amizade, como para aquelas que nunca se concretizam fisicamente. O dicionário Priberam define "platónico" como sendo um adjetivo “relativo à escola e filosofia de Platão; de caráter espiritual, sem desejo sexual, casto; sem interesses materiais ou mundanos; ideal.” Qualquer uma destas coisas é praticamente impossível de alcançar. Daí o casamento tão perfeito com a palavra “amor.” De acordo com Bernardo Coelho, sociólogo, investigador e professor universitário, “um amor nunca vivido é uma idealização. Temos da outra pessoa uma visão idealizada. Um amor nunca vivido pode ser um adversário duro para se viver qualquer [outro] amor. Porque nunca perde essa aura, nunca desce da idealização e da efabulação que dele fazemos.” Mas em que plano existe, afinal, o “amor platónico”? O que é que ele nos diz de nós, e da nossa forma de amar – e de sentir? “A ideia de amor não concretizado remete para dois planos distintos. Esta situação implica, de alguma forma, um desequilíbrio de poder entre as pessoas envolvidas: aquela que desejaria ir mais longe (romantizando, erotizando e sexualizando a relação existente), e a outra que está satisfeita com a natureza não amorosa, não erótica e não sexual, da atual relação.” Dito isto, o amor platónico pode assumir diferentes roupagens. “Pode ser um jogo (cínico) de sedução que se eterniza: um permanente oscilar entre o sim e o não, uma montanha russa entre a claridade e a obscuridade, entre a possibilidade e a impossibilidade de um futuro romântico, erótico e sexual. Neste jogo, há quem possa estar confortável – e há mesmo quem o procure abertamente, por lhe ser suficiente – mas há a possibilidade de uma desigualdade profunda: aquela que separa a frustração da satisfação, aquela que separa quem tem o poder de dizer a cada instante sim ou não, do outro que apenas deseja. Quem deseja revela, ou corre o risco de expor, a sua vulnerabilidade. Quem está do outro lado tem o poder de decidir, não só a sua vida, mas também a do outro – sem nunca revelar o que sente.” A dada altura do filme The Purple Rose Of Cairo (1985), realizado por Woody Allen – que, aproveite-se o aparte, afigura-se como um dos seres humanos mais capazes para analisar todas as particularidades das relações platónicas – a personagem Cecilia, interpretada por Mia Farrow, tem o seguinte desabafo: “I just met a wonderful new man! He’s fictional, but you can’t have everything.” O que ela diz, na sua voz inocente, é o que muitos de nós pensamos: “Acabei de conhecer um homem extraordinário! Ele não existe, mas não se pode ter tudo.” A frase resume aquilo que, nos dias que correm, se entende corriqueiramente por “amor platónico.” Aquele que nunca chega a ser. O amor dos posters dos nossos atores preferidos que temos (ou tivemos) no quarto. O amor das cassetes com músicas românticas que, por vergonha, nunca chegámos a entregar a “alguém.” O amor das cartas que nunca chegaram a ser escritas. O amor dos olhares cúmplices que nunca se transformam em beijos. Ou, então, o amor que não floresce por medo da rejeição, esse palavrão que paira, como um fantasma, sobre o século XXI. De volta a Bernardo Coelho: “Os amores podem não ser vividos ou concretizados porque uma das pessoas (ou as duas) têm medo de ser rejeitadas. A esse respeito é interessante perceber como as aplicações destinadas a encontros ocultam as rejeições e apenas mostram os “matches”. Ou como, noutros casos, apenas revelam as “secret crushes” se elas forem correspondidas. Tudo isto para que as pessoas minimizem o risco da rejeição. Porquê todo este medo? A resposta não será simples. Mas podemos pensar que esse medo é tão profundo porque tem a capacidade de abalar a ideia que temos de nós e que queremos que os outros validem. Isto é, potencialmente pode afetar a ideia que temos de nós e a forma como os outros nos veem enquanto homens ou mulheres. Ou seja, a rejeição tem consequência na nossa identidade enquanto mulheres e homens. Temos medo de cair em descrédito perante os outros por falharmos em exigências culturais e sociais sobre o que deve ser uma mulher e um homem (no plano do amor e da sexualidade).”  Mas será que um amor não vivido é realmente amor? É isso que perguntamos ao sociólogo, porque se alguém nos pode ajudar nesta demanda, é ele. Há várias coisas a ter em conta, sublinha: “Assumindo que nas sociedades contemporâneas o amor é uma construção permanente, que é um resultado da permanente confluência (ou avaliação da confluência) dos projetos individuais das pessoas envolvidas; partindo da ideia de que, na atualidade, as relações se constroem crescentemente, em igualdade, e de forma menos institucionalizada (abrindo portas a diferentes formas de viver o amor)... Partindo daqui... Arriscaria dizer que um amor que nunca chegou a ser experimentado ou vivido, nunca foi construído nem sequer iniciado. Pelo que, arrisco, não será amor. Porque o amor implica a construção e a confluência. Implica a gestão e a articulação dos projetos de cada um, implica a articulação dos guiões que cada um tem para as suas vidas, implica a exposição à exigente e permanente avaliação que o outro faz de nós e do nosso papel na sua vida e felicidade (no fundo, se ainda fazemos sentido no projeto individual do outro). No limite, o amor implica podermos amar e ser amados em igualdade e abertamente. Ora, um amor que nunca foi vivido, nunca viveu isto. Nunca foi. Não chegou a ser.” Como caracterizamos, então, aquilo a que chamamos de “amor platónico”? Essa relação pode ser muitas coisas: pode ser de amizade e solidariedade incondicional. Pode ser de intimidade profunda (havendo até revelação mútua de informação potencialmente constrangedora de cada uma das pessoas, bem como partilha de acontecimentos únicos e intensos e marcantes). Pode ser uma atração profunda nunca concretizada por causa dos medos já referidos. Também pode ser uma coisa morna e não vivida para não se colocar em causa a relação que já se conseguiu ter com a pessoa desejada, ou para não se arriscar o certo (uma relação amorosa estável que se tenha com outro alguém) pelo incerto de uma nova relação que não se sabe que futuro terá. Pode ser infatuation [à letra, uma paixão irracional] sem nunca deixar de ser aquele jogo eterno de sedução, manipulação e poder – também já referido. Mas não será amor, não será amor em construção, não será amor em igualdade, não será amor no quotidiano. Não será um amor. Porque o amor exige ser vivido. Não é uma suspensão. Embora seja sempre uma interrogação, mas uma interrogação que se vai respondendo com a vida.” Há um ditado popular que diz que “quando um não quer, dois não dançam.” Nem amam, acrescentamos nós. Lá está: nunca aconteceu, mas podia ter acontecido. Este artigo foi originalmente publicado no Love Issue (dezembro de 2020) da Vogue Portugal.

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