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Kateryna Kovalyova: retratos de mulheres ucranianas em tempo de guerra

21 Sep 2022
By Maria Mokhova

Kateryna Kovalyova, dona de uma empresa de logística, fundou a organização de caridade Trinity poucas semanas após o começo da invasão em larga escala.

Fotografia de Lesha Lich
Fotografia de Lesha Lich

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Criar e interessar-se por Beleza no meio da guerra não é uma tarefa fácil, no entanto ao longo dos últimos meses os ucranianos descobriram uma imensa e interminável fonte de inspiração: as pessoas que estão a lutar pelo seu país e pelas suas vidas. A ideia de criar um projeto dedicado às mulheres a servir na guerra surgiu em março - quando a equipa da marca ucraniana NUÉ se encontrava a tentar resgatar a sua produção de Kiev. O resultado de vários dias de sessões fotográficas e entrevistas são seis histórias da constante batalha pela vida, pela pátria e pela Beleza - como uma humilde forma de agradecer a estas e a todas as mulheres ucranianas que lutam, protegem e reconstroem o seu país.

Kateryna Kovalyova, dona de uma empresa de logística, fundou a organização de caridade Trinity poucas semanas após o começo da invasão em larga escala. Vários anos de experiência no setor logístico permitiram a Kateryna contribuir de forma rápida e eficaz para o movimento de voluntariado que começou a trazer camiões de ajuda humanitária logo em março.

Sobre a própria

“Sou nativa de Kiev, nasci e cresci cá, uma de três crianças. Os meus pais trabalharam em logística durante muito tempo, e quando não consegui uma bolsa para entrar na universidade, depois da escola, fui trabalhar e rapidamente entrei neste setor. Com 21 anos mudei de empresa e, dez anos depois, criei a minha própria empresa. Já está no ativo há 13 anos. Não consigo dizer se gosto ou não deste trabalho, mas é um trabalho muito difícil. Camiões e mais camiões, uma responsabilidade gigantesca de documentação e armazenamento de carga, tenho de perceber um pouco de tudo, incluíndo como distribuir a carga ao longo de um atrelado de 14 metros, se é possível ou não meter uma encomenda por cima de outra, como enfrentar qualquer problema - é uma responsabilidade muito grande, com riscos enormes associados. O meu telemóvel está sempre ligado, 24h por dia, porque os nossos transportes têm de passar a fronteira até durante a noite e, se algo a acontecer, tenho de estar disponível para o resolver. Tenho pensado em experimentar outros setores, mas, de momento, estas experiências, capacidades e ligações têm sido muito importantes para o voluntariado.”

Sobre voluntariado e responsabilidade

“No terceiro dia da invasão, tive de levar o meu avô ao hospital para fazer hemodiálise - e foi aí, mesmo no hospital, que o meu voluntariado começou. Falei com soldados e eles perguntaram-me se eu tinha cigarros. E depois disseram: ‘Fogo, também precisávamos de meias limpas e talvez até tenhas papel higiénico…’ Perguntei quem era responsável por eles, como lhes podia entregar tudo isto e, depois, levei o meu avô para casa e garanti que ele tinha tudo aquilo que necessitava e que os vizinhos poderiam tomar conta dele. Depois disso, fui simplesmente procurar coisas variadas para oferecer ao exército. Lembro-me de termos procurado leite condensado, que não havia em lado nenhum. No final, procurei um sítio onde pudesse descarregar os meus camiões que estavam estacionados no Reino Unido com carga ucraniana. A partir desse momento, ao quarto dia de guerra, comecei a ajudar. As pessoas espalharam a palavra e recomendavam que se chamasse a “Katya, transportadora de carga” sempre que fosse preciso ajudar a tirar alguém de zonas ocupadas, mas eu estava encarregue de transportar coisas, não pessoas, não sabia como podia fazer isso… Mas depois recebi uma chamada de Kharkiv, de um colégio no qual estavam crianças com síndrome de Down, em que os membros do staff pediam ajuda para as evacuar, pois as crianças estavam a sofrer muito com os bombardeamentos. Não lhes podia dizer que só transportava bens, e foi aí que comecei também a ajudar pessoas, virei tudo de pernas para o ar. Houve certos momentos em que a fatiga era tão difícil de aguentar que queria parar com tudo, mas sentia-me responsável para com estas pessoas, para com os soldados que tinha estado a ajudar durante todo este tempo. Um pouco antes desta nossa conversa, estava a ouvir uma mensagem de áudio de algumas pessoas que estão perto de Zaporizhzhia. Os russos estão a bombardeá-los com todas as munições que têm, e ao ouvir isso, percebes o verdadeiro terror que está instalado. Não têm nenhum sítio onde se esconder, não conseguiram ainda chegar às suas posições, e estão a ser bombardeados com toda a artilharia. Não têm nada com eles, apenas algum cozido e água que lhes é trazida de três em três dias. E eu peço-lhes: ‘Por favor, aguentem mais uma noite, nós iremos levar-vos tudo o que precisam, power banks, geradores, comida, aguentem só esta noite.’ Estas pessoas são quem me impede de ir abaixo e parar. Desde o início da invasão, tive três dias de folga, um quando fiquei doente, o segundo foi quando os meus amigos vieram e quase forçosamente me levaram para passar um dia no campo, e o outro dia simplesmente andei a passear por Kiev com uns amigos. Foi isso. Durante o resto do tempo, trabalhei. Nos primeiros dois meses, dormia no máximo três a quatro horas, porque havia muito trabalho com os norte-americanos e canadenses, fizemos licenças para se comprar armaduras e capacetes, permissões para serem importados para a Ucrânia. Agora, já com essas licenças garantidas, felizmente, tornou-se mais fácil, simplesmente compramos, trazemos para cá e distribuímos para onde é preciso.”

Fotografia de Lesha Lich
Fotografia de Lesha Lich

Sobre o trabalho da fundação 

“Não posso dizer que abrir uma organização oficial de caridade tenha simplificado a nossa vida, porque é precisa muita documentação. E neste estado de guerra é difícil, porque hoje posso mandar algo aos soldados que estão na linha da frente e amanhã eles podem não estar vivos - e ninguém assinou os documentos. Embora perceba que é impossível fazer este trabalho sem papelada, e é importante para seja considerado de confiança, para que não haja suspeitas de que algo está a ir para onde não deve. Sinto-me muito responsável para com os doadores. Por exemplo, comprámos recentemente cinco intercomunicadores bastante caros para os nossos guerreiros perto de Mykolaiv, e fui que eu os entreguei. Mas as hostilidades lá estão ativas, não dá para tirar uma foto de algo e enviar-nos para colocar no relatório que mostraria aos doadores e isto tira-me o sono… De forma geral, o grande objetivo de registar a fundação, para mim, é poder contribuir para reconstrução do nosso passado após a vitória, para que a nossa terra natal se torne ainda melhor do que já era. Já estou há 25 anos no setor logístico e sei o que é preciso ser feito. Para além disso, já entregámos mais de 200 casas modulares em Irpin, Chernihiv, Bucha, Borodyanka, Gostomel - onde as batalhas têm sido mais intensas e muitas pessoas foram deixadas sem teto e a precisar de muita ajuda. Percebi logo que isto era o que eu queria fazer. Da mesma forma, as pessoas que trabalham comigo na fundação vieram de setores diferentes, alguns de publicidade, outros de cinema, mas todos fazem a mesma coisa. Finalmente sinto que estou a fazer algo importante na minha vida e a ajudar mesmo as pessoas.”

Sobre a beleza

“Sou o tipo de pessoa que vê beleza em tudo - especialmente nas pessoas, no seu comportamento, na maneira como se apresentam - e não é necessariamente ligado à aparência. De forma geral, a aparência está em segundo plano. Costumava fazer procedimentos de beleza todas as semanas e agora, desde o início da invasão, só os fiz duas vezes. Se diria que estou a sofrer com isso? Não, claro que não. À exceção de que é um pouco chato como as unhas e o cabelo crescem tão rápido [risos]. Antes da invasão, gostava de me vestir de forma elegante e vestir peças trendy, mas este verão tenho usado o mesmo conjunto de roupas que não precisam de ser passadas a ferro e estou bem com isso. Durante os primeiros meses, usava sempre um uniforme militar, era conveniente pois não se manchava. Naquela altura distribuía comida, almoços quentes para a polícia e outros profissionais de defesa territorial, levava borsch [sopa tradicional da Ucrânia], sopas e estas transbordavam e caíam nas minhas roupas, mas as nódoas não se notavam tanto no uniforme.”

Sobre 24 de fevereiro

“Não foi como o dia de todos os outros. O meu avô estava no hospital com covid e estava muito mal. Às 5 da manhã ligaram-me a pedir se o podia levar, pois precisavam de um sítio para colocar os feridos. Por isso passei o dia todo a ir buscá-lo aos hospital, levá-lo para casa, trazer-lhe comida, porque havia filas horríveis de trânsito na cidade, filas nos supermercados. Ele recusou-se a ir para minha casa, por isso tive de organizar tudo no apartamento dele. No dia seguinte também estive a tomar conta dele, mas ele estava com dificuldade em respirar e precisava de oxigénio. De alguma forma, graças aos meus amigos mais conhecidos, consegui encontrar um aparelho para alugar a um preço muito elevado - foi triste ver que havia pessoas a fazer dinheiro com uma situação tão trágica, mas eu estava decidida a pagar qualquer valor para o ajudar. E no terceiro dia, levei-o ao hospital para fazer hemodiálise, onde conheci os militares que deram início ao meu voluntariado.” 

Sobre o dia mais negro

“Só consigo descrever como uma explosão de escuridão… Nos primeiros dias, vi que todas as estradas de Kiev estavam cobertas com infraestruturas anti-tanques, obstáculos, sacos de areia - fiquei em histeria. Curiosamente, mais tarde olhei para tudo isto e pensei: ‘Muito bem, fizeram ótimas fortificações aqui…’ Tudo era percecionado de forma diferente. Ou quando estava a levar o meu avô para fazer hemodiálise e ele olhou para tudo isto e começou a chorar silenciosamente. Ele participou na Segunda Guerra Mundial, a tirar minas dos mares. E quando morreu, no dia 3 de março, eu nem sabia como o podia enterrar, porque todos os serviços e infraestruturas estavam fechados. Depois, quando Irpin foi libertada e fomos lá evacuar os animais, tive de tirar uma mina de um cão que tinha uma armadilha entre as suas patas partidas… Ou quando tive de levar uma criança com um braço arrancado para fora de Zaporizhzhia, que estava praticamente cercada, e eu não conseguia não chorar à frente dele. As minhas memórias mais negras são as coisas relativamente às quais os nossos avós nos avisaram pois “não iria haver mais guerras” e nós não percebíamos aquilo que eles nos estavam a dizer. Mas, felizmente, a minha memória apaga as coisas más e deixa principalmente as coisas boas.” 

Sobre a procura por luz

“Há muita luz nas pessoas. Nos momentos em que os militares gravam pequenos vídeos a agradecer-nos pela comida que lhes levámos, quando partilham algo engraçado. Por exemplo, comprámos-lhes um carro, e era bastante não-militar. Era necessário cobrir alguns dos elementos mais brilhantes com um acabamento mate escuro e o comandante disse ao seu assistente: ‘Tem cuidado, não o risques!’. É muito inspirador ver como as pessoas estão unidas agora, dá-nos força para fazer muito todos os dias. Às vezes saímos com a nossa equipa, vamos comer alguma coisa, fumar um cigarro, até nos rimos - ajuda muito. De forma geral, considero-me otimista, mesmo quando entro em estado de choque, ultrapasso-o muito rápido, pois acredito que vai tudo acabar brevemente. Deus vai ajudar-nos a triunfar sob o mal.”

Ficha técnica:

Fotografia: Lesha LichDireção de arte: Olesia RomanovaVestuário: NUÉMaquilhagem: Yulia SchelkonogovaCabelo: Nodira TuradzhanovaProdução: Diana Melnikova

Projeto apoiado por NUÉ e Viktoriia Udina.

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