Entre comunidades ímpares de anões e bruxas que se transformam em dragões, o mundo dos contos de fadas rege-se pela representação do imaginário comum. Mas, mesmo neste mundo, sente-se a ausência estridente de personagens e narrativas LGBTQ+, ainda completamente inexistentes nestas fábulas fantásticas.
© Getty Images
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Não foi preciso muito para perceber que era diferente. Desde que me lembro que a diferença paira sobre mim como uma nuvem omnipresente, desafiando-me constantemente para que a esquecesse, um esforço que frequentemente fazia, mas que raramente sentia. Essas pequenas vitórias eram conseguidas através do refúgio fantástico dos contos de fadas, tão importantes na idade primaveril por nos mostrarem o potencial da nossa imaginação. Ainda assim, mesmo no mundo do fantástico, de princesas e bruxas, príncipes e dragões, sentia-me diferente, excluído. As fábulas que nos contam histórias que trespassam os limites da lógica continuam a não albergar sinais de homossexualidade. Se tratamos de sereias com tanta seriedade, porque é que não se considera a existência de um personagem nestas histórias que não seja heterossexual e cisgénero? Se nunca considerou esta ausência, existe a possibilidade de que agora, pela primeira vez, a tentemos justificar como um mero acaso, uma casualidade inexplicável. Mas, e se não for? E se a exclusão de narrativas, personagens e representação LGBTQ+ for não só intencional, como completamente deliberada? Esta noção torna-se dolorosamente óbvia quando, à procura de solucionar este eclipse, se revelam as multidões com forquilhas e tochas na mão.
A Fairy Tale for Everyone, um livro húngaro que, como seria de esperar pelo seu título, contém contos de fadas que procuram ser o mais inclusivos possível, é a prova consumada deste fenómeno. Ao longo das suas dezassete histórias, o livro reinventa contos de fadas clássicos, acrescentando-lhes personagens da comunidade LGBTQ+, assim como de origens étnicas que estão ausentes nas narrativas tradicionais. Desde um veado transgénero, a uma Branca de Neve lésbica e uma Cinderela de etnia cigana, a antologia combina autores húngaros respeitados e novos talentos emergentes. O livro, que tinha uma edição de 1500 cópias, foi impresso por uma editora pouco conhecida e acabou por se tornar altamente controverso, posicionando-se no epicentro de uma campanha política que ameaça (ativamente) os direitos de cidadãos LGBTQ+. Esta pequena obra, direcionada para crianças, foi publicamente contestada por algumas das mais importantes figuras políticas da Hungria.
O primeiro a reagir à publicação de A Fairy Tale for Everyone foi o líder do partido de extrema direita Mi Hazánk Mozgalom que, numa conferência de imprensa, rasgou e arrancou algumas das suas páginas, intitulando-o de “propaganda homossexual.” Passados poucos dias, foi o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que se opôs a estes contos de fadas, declarando: “Existe uma linha que não se pode trespassar, é desta forma que sumarizo a minha opinião: deixem as nossas crianças em paz.” O desdém público por parte do primeiro-ministro autorizou uma campanha de ódio pública contra a antologia, legitimando as vozes que insistiam que todas as cópias fossem queimadas, imediatamente retiradas das prateleiras das poucas livrarias onde se podia encontrar o livro. Para Boldizsar Nagy, editor responsável pela publicação do livro, o ódio generalizado foi “uma experiência verdadeiramente aterradora” e a destruição pública de A Fairy Tale for Everyone fê-lo sentir-se “como um inimigo público enquanto editor do livro.” De acordo com Nagy, a resposta ao livro que editou não existe no vácuo, faz parte de uma “nova campanha homofóbica e transfóbica de grande escala, que tem continuado desde então, e se fundamenta com as novas leis anti-LGBT+.” Ainda que compreenda que a resposta à antologia seja um eco de um movimento político que, sobre pretensões de preocupação, aliena e criminaliza a existência de cidadãos queer, o editor confessa que não esperava esta resposta: “Queria apenas que este livro encontrasse crianças que estivessem à procura de respostas e validação para que percebessem que não estão, nem nunca vão estar, sozinhas, e que o mundo encantado dos contos de fadas também é deles.”
Os argumentos utilizados pela classe política húngara , que comparam o conteúdo queer a uma tentativa de sexualizar crianças, não são novos — são, aliás, a justificação mais recorrente para a prevenção de narrativas LGBTQ+ nos contos de fadas. Ao relacionar o espectro queer com pedofilia cometem-se falácias perigosas. A comparação entre os dois não só descarta e trivializa a gravidade de crimes e das experiências de vítimas de abuso sexual, como se fundamenta em argumentos sem qualquer tipo de alusão à psicologia e biologia modernas. As problemáticas da sexualidade e género são ainda muito recentes na consciência pública, particularmente quando se intersetam com a inocência pueril. Existe um temor em relação à identidade LGBTQ+ nas crianças que revela os preconceitos latentes na nossa cultura, a lente enviesada através da qual percecionamos os indivíduos queer. Como salienta Boldizsar Nagy, “é suposto sentirmos que é errado e imoral abordar tópicos LGBTQ+ com crianças, pelo medo de as sexualizar. Isto acontece porque a maioria dos adultos só entende pessoas queer através de uma ótica sexual. Mas as identidades LGBTQ+ são apenas um elemento das nossas individualidades complexas.”
Existem ainda outras preocupações, exponencialmente irracionais, que defendem que se uma criança for exposta a assuntos LGBTQ+ se tornará queer. Estes “argumentos” não só se baseiam em preocupações homofóbicas e transfóbicas, como pressupõem que uma pessoa “fica gay”, em vez de nascer desta forma. A impressionabilidade das crianças é gravemente sobrestimada — se esconder conteúdos LGBTQ+ fizesse com que as pessoas não se tornassem queer, após 23 anos de bombardeamento, tanto de personagens heterossexuais, como de narrativas heteronormativas, certamente a minha homossexualidade já deveria ter caducado. As crianças não se “tornam gays” por verem um beijo entre dois homens ou um protagonista transgénero, a perceção que as crianças têm, tanto da sua orientação sexual, como da identidade de género, é mais prematura do que se considera. De acordo com estudos publicados pelo John Hopkins Children’s Hospital, entre os dois e os três anos as crianças desenvolvem uma noção dos papéis de género, bem como se se encaixam neles, podendo, ou não, corresponder ao sexo atribuído à nascença. Não há ainda qualquer tipo de prova científica que corrobore a relação entre conteúdo queer e a identidade LGBTQ+ de uma criança, mas existe, no entanto, uma panóplia de estudos que detalham a gravidade que os contos de fadas têm no desenvolvimento emocional e psicológico da mente infantil. Em grande parte responsável pelo desenvolvimento de questões como a autoestima e a empatia, a representatividade no conteúdo infantil é basilar para a postura que as crianças terão perante o mundo. Nas palavras de Boldizsar Nagy, “o impacto dos contos de fadas inclusivos nas crianças dos dias de hoje é apenas para que as pessoas LGBTQ+ façam parte da sua normalidade.”
Se os estudos científicos comprovam que a representatividade nos contos de fadas não só aumentaria o bem-estar das crianças, como contribuiria para uma sociedade mais empática, porquê a sua raridade? De acordo com Nagy, a resposta é dissilábica: medo. “O mercado de conteúdo para crianças é financiado pelos seus pais, é preciso muita coragem por parte de um estúdio cinematográfico ou uma editora de livros para se atrever a experimentar com um protagonista LGBTQ+,” revela-nos o editor húngaro, experiente em matérias de coragem, tendo-se tornado um inimigo público à custa da sua. Ainda que o medo das consequências controle a forma como o conteúdo para crianças é produzido, começa-se lentamente a ver os prenúncios de mudança. A própria Disney, fonte de contos de fadas mais fidedigna do Ocidente, demonstra indícios da metamorfose pendente. Enquanto que no passado todos os seus filmes se centravam numa narrativa heteronormativa, onde o amor entre um homem e uma mulher totalizava o enredo — assim como o seu “e viveram felizes para sempre” — esta já não é a realidade dos filmes que a Disney produz hoje em dia. Filmes como Brave – Indomável (2012) ou Vaiana (2016) abordam a história a partir de uma perspetiva completamente diferente, substituindo o amor romântico por manifestações de independência como catalisadores da narrativa. Mas Boldizsar Nagy avisa-nos para gerirmos as nossas expetativas. Ver uma protagonista LGBTQ+ num filme de uma magnitude como a da Disney é extremamente improvável, aconselhando a “aceitarmos o facto que livros e filmes para crianças queer serão sempre nunca escala bem mais pequena.”
Tudo o que envolve a sensibilidade acentuada das crianças exige uma atenção particular, especialmente os contos de fadas que lhes contamos. É através destas fábulas que aprendemos a sonhar, a amar, a ser. É imperativo que sejamos exigentes em relação às histórias com as quais as futuras gerações vão crescer, temos a responsabilidade de proporcionar às crianças do futuro sonhos onde estas se possam ver, fantasias nas quais possam participar, independentemente de serem ou não queer. O caminho terá de ser trilhado, novos contos de fadas terão de ser escritos. Como relembra Boldizsar Nagy, “deixemo-nos criar, deixemo-nos fazer erros, deixemo-nos melhorar, sempre com um objetivo em mente: não dececionar as crianças.” A responsabilidade é mais pesada nos nossos ombros do que a dos contadores de histórias de antigamente, pois viviam numa época diferente, não tinham acesso à mesma informação que temos hoje em dia. Trabalhemos para consertar os erros do passado, inventemos novas princesas, novos dragões, para que as crianças do futuro cresçam num mundo onde o porto-seguro da imaginação dos contos de fadas não seja outro perpetuador de exclusão.
Artigo originalmente publicado no The Fairytale Issue da Vogue Portugal, publicado em maio de 2022 e disponível aqui.
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