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Quando ele era ela, quando ela era ele

02 Jun 2020
By Diego Armés

Há quem tenha um corpo de sonho e há quem sonhe com ter outro corpo.

Há quem tenha um corpo de sonho e há quem sonhe com ter outro corpo. Também há quem se sinta estranho no corpo com que nasce e há até quem se sinta feliz, apesar da estranheza. E existe um ser extraordinário que é Paulo e que também é Paulinha, uma musa em corpo de homem, um misto de realidade crua e cruel com fantasia hedonista. Fotografia de Frederico Martins. Realização de Nelly Gonçalves. 

"Eles pararam o carro à minha beira e queriam à força que eu entrasse”, conta Paulinha com a sua indisfarçável pronúncia de São João da Madeira e a sua voz masculina disfarçada, tornada aguda, feita feminina e recheada de trejeitos. “Eu estava a dar um dos meus passeios e eles vinham para me fazer mal”, continua, não especificando o que é “fazer mal”. “Por sorte, um senhor, que era meu vizinho, ia a passar de carro, viu que estavam a ser brutos comigo e estacionou. Foi à bagageira e tirou de lá um daqueles bastões para se jogar aquilo”, tenta explicar – era um taco de baseball, percebi depois, e ela, com embaraço infantil, deu mais explicações: “é que eu odeio desporto, não percebo nada, futebol então, ui... detesto aquilo”, afirma, antes de confessar, “mas sou benfiquista”. Estávamos no ponto em que o vizinho tinha estacionado e tirado o bastão do porta-bagagens. “Chegou ao pé deles e disse ‘Que estais a fazer? Largai o rapaz’, e deu-lhes tantas, mas tantas, uma coça tão grande que eles fugiram, desapareceram, nunca mais os vi.”

“Paulinha”, Paulo Santos, natural de São João da Madeira, residente na vizinha Arrifana, idade definível mas imprecisa (cruzando dados e histórias, terá entre os quarenta e muitos e os cinquenta e poucos, isso pouco interessa, não se pergunta a idade a uma senhora), sexo masculino, espírito de mulher, mas não de uma mulher qualquer. O corrupio de carros que havia e que ainda há à sua porta – dirá que são os amigos que a vêm trazer ou que a vêm buscar (mais adiante na conversa, irá especificar: "não são namorados, são amigos coloridos") levou a que a mãe lhe dissesse um dia “ai, Paulo, ainda bem que não nasceste mulher, que tu ias ser a maior ‘rotona’ da Arrifana, uma autêntica cadela escachada”, conta com alegria pueril, rindo-se muito em seguida e revelando na gargalhada uma ou duas falhas na dentição. Sabe-se hoje que a intenção daquele grupo de homens era sequestrar Paulinha para abusar dela. Os elementos do grupo acabaram por ser apanhados e detidos algum tempo depois, quando a Polícia Judiciária montou uma cilada aos agressores, que violaram entretanto várias pessoas, incluindo casais. “A um rapaz, levaram-no para um descampado, bateram-lhe com um pau e depois enfiaram-lhe o pau por trás, rebentaram-no todo”, conta Paulinha, com clara consciência de que terá escapado,  com alguma sorte, a uma história com desfecho idêntico.

Preâmbulo

Foi Frederico Martins, o fotógrafo que assina o shooting deste artigo, quem descobriu a história de Paulinha. “Estas histórias estão, normalmente, associadas a pessoas que frequentam outros meios, algumas delas tornaram-se famosas, são figuras mais ou menos públicas, mas o Paulo é um anónimo de uma aldeia”, acabará por me contar. Contraponho que já tive conhecimento de várias narrativas parecidas em contextos semelhantes – no momento dessa conversa eu ainda não tinha conhecido Paulinha e, por isso, agora emendo: nenhuma outra história tinha a exuberância desta.

Frederico, que cresceu em São João da Madeira, conhece Paulinha desde que se lembra de si mesmo, “era miúdo já ele andava” – as referências a Paulinha acontecem tanto no feminino como no masculino ainda que vindas da mesma pessoa e posso garantir que isso é perfeitamente normal – “para cima e para baixo, sempre a caminhar na beira da estrada”. Paulinha haverá de confirmar orgulhosamente este seu hábito, diz que gosta muito, que a faz sentir bem, que a deixa feliz. “É uma figura da terra”, explica Frederico, “toda a gente a conhece, toda a gente a trata por Paulinha”. “Havia quem pensasse que era um maluquinho – por se vestir assim e por se comportar desta maneira –, mas a verdade é que sempre foi um trabalhador exemplar, nunca deu problemas a ninguém.” O fascínio de Frederico pela figura de Paulinha tem tanto de lógico quanto de justo: “é uma mulher num corpo de um homem.” “Outros, no seu lugar, teriam pegado na trouxa e ido viver para outro sítio, para uma cidade grande, mas a Paulinha não: ficou aqui na aldeia, até hoje, e ainda vive com os pais. Deve ter perto de 50 anos, passou muito, aturou muito, sofreu, mas nunca saiu daqui, da sua terra. Uma vez, disse-me ‘eu bem sei que as pessoas da Arrifana preferiam que eu me fosse embora daqui, mas eu daqui não saio, é a minha terra’.” 

Uma questão de respeito

O episódio relatado no início, em que um grupo de homens tentou sequestrar Paulinha para abusar dela, não foi um caso isolado na vida desta peculiar mulher que é, oficialmente, um homem. Foram muitas as vezes em que lhe faltaram ao respeito, que a desconsideraram, que abusaram dela, nem que tenha sido psicologicamente. A sua diferença manifestou-se logo cedo, era Paulo ainda miúdo. “A minha mãe levou-me ao médico e ele chamou-a de parte e disse-lhe assim ‘o seu filho é diferente’, e ela assim ‘diferente como?’.” Se tentarmos imaginar um tempo razoavelmente distante, mais de 40 anos atrás, não é difícil compreender que, embora se percebesse que Paulo era diferente, para as pessoas, mesmo para aquelas que tinhamestudado, não era fácil identificar a situação. Dificilmente um médico ou um psicólogo se chegaria ao ouvido da mulher do sacristão – o pai de Paulinha foi sacristão – para lhe dizer “o seu filho é transexual”.

Na escola, gozavam com Paulo, Paulinho, na altura, pois era um menino. Só que parecia uma menina, então chamavam-lhe outros nomes, chingavam-no. Provavelmente, batiam-lhe. Paulinha não menciona essa passagem, quando o tema é violência e as perguntas apertam o cerco, desvia a conversa como se fosse uma criança a mudar de assunto – dir-se-ia que se distrai propositadamente. Vamos com ela, ouçamos o que tem para dizer, trata-se de uma conversa entre adultos, não de um interrogatório. Diz que em casa se dava muito mal com o pai, um homem conservador que não aceitava a condição incomum e a quem os comentários jocosos de uma população que se reservava o direito de encontrar em Paulinha uma definição possível para a palavra “bizarro”. Olhando para o contexto e para a cronologia, nada nesta situação era fácil, quer para o pequeno Paulo, quer para a sua família, ainda para mais sendo esta conservadora e religiosa. Mas isso não significa que o tenham deixado só. Se os pais de Paulinha lhe confessaram muitas vezes o desgosto pela sua maneira ímpar, a verdade é que acabaram sempre por defendê-la, dentro do que lhes foi possível, dos males de um mundo pequeno e, por conseguinte, cruel.

A mãe várias vezes se indignou em público, conta Paulinha. “As pessoas metiam-se comigo e gozavam-me, chamavam-me amélinha e paulinha e ela virava-se, gritava ‘mas o que é isso, que nomes vêm a ser esses? O nome dele é Paulo e é um rapaz’.” As irmãs de Paulo sempre o defenderam, desde que ele era pequenino e até se ter afirmado definitivamente como Paulinha, já crescida. “Uma vez, numa discoteca, a minha irmã pegou-se com um rapaz, quase lhe bateu, porque ele estava a olhar para mim com ar gozão.” Não descreve nem acrescenta mais adjetivos a essa maneira de olhar. Se a infância foi difícil, a adolescência não trouxe melhorias. “Eu vestia as roupas que a minha mãe me comprava, porque tinha de me vestir normalmente para poder ir trabalhar.” Conta que estudou até à 3.ª classe e que, então, ficou exclusivamente a trabalhar – não é fácil perceber se trabalhava já antes dessa idade, mas não é ilegítimo presumir que o fazia. “Mas, depois, chegava a casa, ia ao armário da minha irmã mais nova e tirava-lhe saias e blusas. Saía à noite às escondidas toda vestida de mulher. Às vezes, uma das minhas irmãs apanhava-me e fazia queixas à minha mãe, ‘mãe, o Paulinho ontem levou as minhas roupas’”, conta Paulinha, deixando o final em aberto, suspenso num sorriso que também tem mágoa.

Paulo Santos trabalhou desde tenra idade naquilo em que a maioria das pessoas da zona trabalha, na indústria do calçado. Explica que é assistente na linha de produção. Pergunto-lhe o que faz ao certo, tenta ser detalhado na descrição: recebe o sapato assim, faz assado, manda para ali, que é onde cosem isto e moldam aquilo, devolvem-lhe, ele retoca mais assim, faz mais assado, devolve à linha. Trabalhou nove anos numa fábrica, 22 anos noutra e agora já lá vão três anos nesta. Sempre foi um trabalhador exemplar, nunca foi de faltar, “cheguei a ir trabalhar com febre, cheio de gripe”, revela. Numa outra passagem, vai mais longe e diz que não foi raro ir trabalhar de direta. “Mas isso foi há muito tempo, levava a vida de outra maneira, agora não era capaz.” Conta ainda que deixou de beber já lá vão 11 anos. Nas fábricas por onde passou, encontrou boa gente, mas também se cruzou com más pessoas, com colegas malcriados, com chefes abusivos, verdadeiros fanfarrões e engraçadotes maldosos. “Uma vez, quase abri a cabeça a um.” Sou apanhado de surpresa pela revelação, preciso de detalhes. “Eu já lhe tinha dito que não lhe admitia que ele me metesse a mão cá atrás, mas ele não ligava. Foi até um dia eu perder a cabeça, estava com uma forma [de sapato] na mão, empurrei-o, fui direito a ele e, se não me parassem, eu abria-lhe a cabeça, ai abria! E disse-lhe ‘eu posso ser despedido, mas abro-te a cabeça’.” De uma outra vez, um colega cortou-lhe o cabelo com uma faca, “na brincadeira”, refere Paulinha. As lágrimas vêm-lhe aos olhos quando conta o episódio. Não é fraqueza, é indignação. “O meu chefe quis saber o que se passava e eu contei-lhe, então o meu colega disse que eu me estava a fazer a ele, que lhe tinha dado o meu número de telefone para combinarmos um encontro. Tudo mentira. Nunca fiz nada no trabalho, pela minha saúde.” O chefe acreditou no colega e repreendeu Paulo Santos, que Paulinha é só daquela porta para fora. Homem ou mulher, pouco importa no momento em que uma pessoa é ofendida, ultrajada. 

Só lhe falta ser mulher

Há um lado de Paulinha profundamente enternecedor. Há pessoas a quem se lhes lê o coração – é esse o caso, mas é ainda mais do que isso. A sua ingenuidade numa matéria tão complexa como esta, a do seu sexo e do seu género, é praticamente infantil. Por exemplo, para Paulinha, que se sente mulher num corpo de homem, quando se envolve sexualmente com outro homem (garante-me que nunca se envolveu com mulheres; conta-me que já a embebedaram para tentar, mas que “nada, não se levantava nada”, e ri-se e tapa a boca com a mão, como fazem as crianças quando dizem uma palavra proibida), descreve a situação com um singelo “eu faço de mulher”. Porquê? “Porque não me sinto homem e, por isso, não faço de homem.” A palavra “transgénero” não lhe diz nada e lida melhor com o termo “paneleiro” – “porque é o que eu, de certa maneira, sou, não é? As pessoas chamam-me isso e eu pouco me rala” – do que com o mais complicado e eventualmente sofisticado “homossexual”, que diz com dificuldade e um certo pudor, como se não fosse uma palavra dela.

Paulinha já foi casada. Foi casar a Espanha “com papéis e tudo”. Vestiu-se de mulher para a ocasião, “eu era a mulher e ele era o meu homem”. “Até fui de mamas postiças, tinha um decote até aqui” e aponta com o dedo antes de entrar num dos seus inúmeros lugares fantasiosos – por vezes é difícil perceber onde acaba o mundo real, cheio de factos, e começa o seu mundo de fábulas, repleto de coisas que ela imagina – e acrescentar que “o padre olhava para mim e eu dizia-lhe ‘são postiças, não são minhas’”. Os pais não foram ao casamento, foram só as irmãs, “essas vão comigo até ao fim do mundo”, garante. O pai nunca iria, os tios e tias bem tentaram persuadi-lo, mas era impossível, era inconcebível. O casamento não durou muito, acaba por concluir. Viveram pouco mais de dois anos num apartamento em São João da Madeira. Quando se separaram, Paulinha voltou para os pais e eles receberam-na.

Paulinha foi ao casamento de uma das irmãs vestida de mulher. “O que eu me arrependi, que fui de saltos altos e ao fim de um tempo já tinha umas dores, ui, tive de tirar a fita dos sapatos e palmilhar.” A mãe não aprovou, o pai nem a olhou. “A minha mãe disse ‘Paulinho, porque é que te vestiste assim?’, e eu respondi-lhe ‘ó mãe, então se me visto assim todos os dias’, e ela disse ‘mas hoje não é todos os dias, é o casamento da tua irmã’” e sorri. Conta que as tias e as primas adoraram. Paulinha já tem sobrinhas, uma delas crescida. “É minha afilhada”, diz, “mas eu sou padrinho dela e isso não está bem”.

A sobrinha diz que, quando se casar, quer que Paulinha seja madrinha de casamento, não padrinho. “Ela brinca comigo, mas também está a falar a sério.” Aproveito para lhe perguntar o que já devia ter perguntado há muito: porque não mudou de sexo? Explica que esteve para o fazer, que chegou a tomar hormonas, mas que depois falou com outras pessoas, amigos e amigas, alguns que tinham feito a operação, outros que não. “Uma delas perguntou-me ‘vais mudar de sexo para quê?’ e eu disse-lhe que queria ser mulher.” A amiga explicou-lhe que não iria ser mulher mesmo de verdade porque não iria menstruar, não poderia ter filhos, por aí fora. “Perguntou-me se eu queria fazer a operação só para ter aqui um buraco e eu então não quis.” Então e se essa operação tivesse sido feita logo cedo, há muito tempo? Hesita, não tem certezas. “Eu sou feliz como sou, assim”, responde de um modo desconcertante e firme. Não diz que não teria feito, caso a oportunidade tivesse surgido, mas também não diz que a faria. Aceitemos o seu mistério, mas não sem querer saber como seria se fosse mulher, não apenas na alma e nos impulsos, mas também no corpo e no sexo. “Se eu fosse mulher, não tinha só um homem, não me casava. Tinha homens só para gozar.” Também diz que gostava de ser modelo e os seus olhos brilham quando fala da sessão fotográfica que protagonizou para a Vogue no dia anterior – “ainda tenho a maquilhagem, não quis tirar porque gostei muito”. 

Alegação final

Paulinha trabalhou na noite, no Porto. Não é fácil perguntar a uma pessoa, sem a ofender ou melindrar, se ela se prostitui ou já se prostituiu, mas a conversa fluiu naturalmente até ao ponto inevitável: já ou não? “Nunca”, garante. “Mas não tenho nada contra e tenho amigos e amigas que o fazem. Só que só o fazem porque precisam. Eu não preciso, eu tenho trabalho, eu ganho dinheiro.” Já ganhou mais, quando também fazia shows de travesti, diz que em maisdo que uma casa. Terá sido precisamente uma amiga prostituta quem a apresentou ao primeiro patrão. Hoje em dia, está parada, não faz esse tipo de performances. Não esclarece se vai ou não voltar.

Aproveita para voltar atrás, às prostitutas, para afirmar: “eu não discrimino ninguém.” “Certa vez, fui a um restaurante, assim como este, onde eu ia todos os fins-de-semana. Uma amiga minha, que é prostituta, ia comigo. Sentámo-nos e ficámos à espera e à espera e à espera, ninguém nos atendia. Chamei o gerente, ‘ó senhor fulano de tal, o que é que se passa, não nos atende?’ e ele diz-me assim ‘ó Paulinha, tu és cliente, mas a tua amiga... tens de compreender, não podemos aceitar aqui pessoas assim’. Eu enervei-me e disse-lhe ‘se não nos atender às duas, eu saio por aquela porta e nunca mais ponho cá os pés, perde uma cliente’. Eu entro em todo o lado com quem eu quiser, as pessoas são todas iguais, seja uma prostituta, ou seja quem for.” Foram atendidas.

 

 

Ficha Técnica

Cabelos: Rui RochaMaquilhagem: Patrícia LimaManicure: Carina ReisProdução: Diogo Oliveira @Lalaland StudiosRetouch: Lalaland StudiosAssistente de fotografia. Pedro Sá @Lalaland StudiosAssistente de realização: Maria Falé e Eduarda Pedro 

Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal

Editorial originalmente publicado na edição de Janeiro de 2020 da Vogue Portugal

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