Feeling down? Surf's up.
Ouro sobre azul
Curiosidades 23. 10. 2020
LSD, psilocibina, ecstasy, ayahuasca. Das happy trips do passado à saúde mental do presente, poderão os psicadélicos ser o futuro da terapia?
Em 1967, John, Paul, George e Ringo deram ao mundo aquilo que o mundo acreditou ser uma ode a um psicadélico quase tão famoso como uma certa banda de Liverpool. A teoria revelou-se uma das maiores conspirações sobre uma das maiores obras-primas dos Beatles: Lucy In The Sky With Diamonds só podia ser uma inteligente, mas não suficientemente subtil, abreviatura de LSD. Possível? Sim. Real? Nem por isso. “Eu juro a Deus, ou juro a Mao, ou a qualquer pessoa de quem tu gostes, que eu não fazia ideia de que se lia LSD”, disse John Lennon à Rolling Stone em 1970. Entrevista após entrevista, o músico via-se obrigado a clarificar que Lucy não era uma acid song. “O meu filho chegou a casa com um desenho e mostrou-me esta mulher com um aspeto estranho a voar. Eu disse, ‘O que é?’, e ele respondeu, ‘É a Lucy no céu com diamantes’, e eu pensei, ‘Isto é lindo’. Escrevi logo a música. Depois do álbum ter saído, alguém reparou que as letras soletravam LSD e eu não fazia ideia disso... Mas ninguém acredita em mim.”
Não é de estranhar que a narrativa não tenha sido convincente para um público que, como escrevia a Rolling Stone, se limitava a revirar os olhos: do LSD à psilocibina (um composto alucinogénio encontrado nos chamados “cogumelos mágicos”), os psicadélicos são frequentemente associados a hippies e raves, ao mítico Woodstock e a trips tão intensas, místicas, e inexplicáveis, que são capazes de desbloquear a criatividade até então vedada, revelar horizontes até então desconhecidos, e despertar sentidos até então reprimidos. Quem já embarcou nesta “viagem” sabe o quão impressionante pode ser. Em 2008, 36 voluntários saudáveis participaram num estudo conduzido pela Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos da América, onde ingeriram uma dose de psilocibina. Depois dessa sessão, 80% dos participantes classificaram a experiência como estando entre as cinco mais significativas da sua vida, a nível pessoal e espiritual; e metade dos voluntários consideraram a experiência como a mais marcante das suas vidas até então. Um ano depois deste estudo ter sido conduzido, os resultados foram confirmados e igualmente validados através de entrevistas a amigos e familiares dos voluntários.
But that was then and this is now: cinquenta anos depois do “LSD” dos Beatles ter andado nas bocas do mundo, e apesar de continuarem a ser sinónimos de uma experiência transcendente, os psicadélicos começam a ser vistos como algo que a ciência pode explicar. Ou, melhor, voltam a ser vistos como algo que a ciência pode explicar. “A meio do século XX, duas novas moléculas incomuns, compostos orgânicos com uma impressionante semelhança, explodiram no Ocidente. Com o tempo, estas moléculas iriam mudar o curso da história social, política e cultural, bem como as histórias pessoais de milhares de pessoas que eventualmente as introduziram nos seus cérebros.” É com esta constatação sobre o LSD e a psilocibina que o jornalista e escritor Michael Pollan dá o pontapé de saída para How To Change Your Mind, um livro de 2018 que relata a história um tanto desconhecida dos psicadélicos, desde a descoberta acidental do LSD à criminalização destas substâncias, passando pelo seu reaparecimento no século XXI e pelas próprias experiências do autor com este tipo de drogas.
Para Pollan, e como o próprio escreve num artigo publicado no The New York Times, “a terapia psicadélica, seja para o tratamento de problemas psicológicos ou como forma de facilitar a autoexploração e o crescimento espiritual, está a passar por um renascimento na América”, renascimento esse que acontece tanto em ambientes underground como em instituições como a John Hopkins, a Universidade de Nova Iorque e a Universidade da Califórnia, onde uma série de estudos com psicadélicos têm produzido resultados promissores. “Eu chamo-lhe um renascimento porque grande parte do trabalho representa um revivalismo da pesquisa feita entre os anos 50 e 60, quando as drogas psicadélicas como o LSD e a psilocibina eram intimamente estudadas e respeitadas por muitos na comunidade da saúde mental como avanços na psicofarmacologia.”
Na verdade, como refere, estas duas substâncias eram mesmo consideradas “drogas milagrosas” pelo estabelecimento psiquiátrico daquela altura. “Antes de 1965, existiam mais de mil estudos sobre psicadélicos publicados, envolvendo perto de 40 mil voluntários, e seis conferências internacionais dedicadas a estas drogas. Os psiquiatras usavam pequenas doses de LSD para ajudar os seus pacientes a aceder a material reprimido (depois de 60 sessões, Cary Grant famosamente declarou que tinha “renascido”); outros terapeutas administravam quantidades maiores das chamadas doses psicadélicas para tratar alcoolismo, depressão, distúrbios de personalidade, medo e ansiedade de pacientes com doenças terminais que confrontam a sua mortalidade.”
Em meados dos anos 60, quando o psicólogo, professor de Harvard e evangelista psicadélico Timothy Leary declarou que estava na altura de “turn on, tune in, drop out”, as substâncias até então vistas como “drogas milagrosas” transformaram-se no pior pesadelo dos EUA. “As drogas caíram nos braços ansiosos de uma contracultura em ascensão, influenciando tudo desde os estilos de música e roupa aos culturais e, como muitos pensavam, inspirou o questionamento da autoridade dos adultos que marcou o ‘generation gap’. Em 1971, o presidente Nixon chamou Leary, que naquela atura tinha sido afastado da vida académica e perseguido pela lei, como ‘o homem mais perigoso na América’”, explica Pollan. “Nesse mesmo ano, o Controlled Substances Act foi concretizado; este classificava o LSD e a psilocibina como drogas Schedule 1, o que significava que tinham um grande potencial para o abuso e nenhum uso médico aceite; possuir ou vender tornou-se um crime federal. O financiamento para a investigação desapareceu, e a prática legal da terapia psicadélica viu o seu fim.”
É difícil prever o que poderia ter acontecido se a história dos psicadélicos tivesse tomado um rumo diferente, mas não é de todo insensato pensar que a ciência e a medicina, bem como a sociedade em geral, ficaram a perder de certa forma. “Acho que foi uma pena que a anterior geração de investigadores de drogas psicadélicas tenha sido abruptamente travada, porque estavam prestes a fazer descobertas muito importantes”, defende Charles Grob, investigador e professor de psiquiatria na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que ocupa parte do seu tempo a estudar um potencial modelo de tratamento com drogas alucinogénias para curar doenças psiquiátricas ou curar dependências, no documentário Have a Good Trip: Adventures in Psychedelics, estreado na Netflix em maio deste ano. “Estavam a desenvolver novos modelos de tratamento que ainda hoje achamos que devíamos explorar, porque podem trazer muita promessa e esperança a pessoas que sofrem de doenças para as quais a psiquiatria convencional poderá não ter grandes soluções.”
Do potencial à estigmatização, a promessa dos psicadélicos acabou por ser arquivada, permanecendo nas sombras durante as quatro décadas que se seguiram à sua criminalização – mas como um caso que nunca foi resolvido, estas substâncias não foram esquecidas. “No início dos anos 90, bem fora do campo de visão da maioria de nós, um pequeno grupo de cientistas, psicoterapeutas e chamados psiconautas, com a crença de que algo precioso tinha sido perdido, tanto para a ciência como para a cultura, resolveram recuperá-lo”, escreve Pollan no seu livro de 2018. “Hoje, depois de várias décadas de supressão e negligência, os psicadélicos estão a renascer. Uma nova geração de cientistas, muitos deles inspirados pelas suas próprias experiências dos compostos, está a testar o seu potencial para tratar doenças mentais como depressão, ansiedade, trauma e adição. Outros cientistas estão a usar os psicadélicos em conjunto com novas ferramentas de imagiologia cerebral para explorar as ligações entre o cérebro e a mente, com a esperança de revelar alguns dos mistérios da consciência.”
Esta nova geração, como a define Pollan, tem vindo a explorar o quão promissora a terapia assistida com psicadélicos pode vir a ser. Em dezembro de 2016, a Universidade John Hopkins publicava os resultados de um outro estudo com psilocibina, desta vez com 51 doentes com cancro potencialmente terminal. O objetivo da equipa era reduzir a depressão e ansiedade que habitualmente se associam ao risco de morte, e os resultados mostraram que a maioria dos participantes experienciou uma redução significativa na depressão e ansiedade, e uma melhoria na qualidade de vida. Passados seis meses, as alterações ainda se faziam sentir – cerca de 80% dos participantes continuava a mostrar diminuições do estado depressivo e da ansiedade, e acrescentava melhorias nas suas atitudes acerca da vida e de si próprios, no humor, nos relacionamentos e na espiritualidade à sua experiência com aquela droga. Ainda que promissor, este ensaio não era um caso isolado.
Em 2011, e novamente em 2016, dois estudos conduzidos pela Universidade da Califórnia e pela Universidade de Nova Iorque, respetivamente, mostravam resultados semelhantes: quando usada para tratar depressão e ansiedade em doentes com cancro, a psicoterapia assistida com psilocibina era não só eficaz, mas também segura. Para além do seu potencial na ansiedade subsequente a diagnóstico de cancro, o uso da psilocibina tem vindo a ser testado em áreas como a dependência de tabaco e álcool, a perturbação obsessivo-compulsiva e a depressão severa/resistente a tratamento – nesta última, e como se observou num outro estudo no Brasil, a utilização da bebida ayahuasca resultou em reduções significativas nos sintomas de depressão em 35 participantes.
Aos poucos, o tabu também parece estar a desconstruir-se. “As pessoas estão à procura de significado, propósito, crescimento pessoal, desenvolvimento, mindfulness e expansão, e também há um enorme desejo de curar”, explicou uma investigadora da MAPS (Associação Multidisciplinar de Estudos Psicadélicos) quando questionada sobre o porquê do mainstream precisar destas substâncias, pelo site Vice. “Com os psicadélicos, às vezes conseguimos pedir emprestada a coragem para olhar para partes de nós mesmos que não queremos considerar porque não são bonitas. Os psicadélicos também nos podem inspirar a personificar o amor e a celebrar. Os seres humanos precisam de celebração.”
De The Healing Trip, o primeiro episódio da série The Goop Lab que se estreou na Netflix em janeiro deste ano, e que acompanha quatro membros da equipa do império de lifestyle e wellness de Gwyneth Paltrow numa experiência terapêutica com “cogumelos mágicos” na Jamaica – apesar destas substâncias serem ilegais em muitos pontos do globo, é de notar que existem alguns centros para a cura psicadélica, a terapia e a exploração, em locais como Costa Rica, México, Peru e Amesterdão, que permitem ter a experiência num ambiente terapêutico – ao microdosing com LSD em Silicon Valley, usado como hack para horas a fio de concentração ininterrupta, melhoria na produtividade e uma maior sensação de bem-estar – ainda que as microdoses tenham tido um hype considerável, e como alertou o Imperial College no verão do ano passado, não existe ainda evidência científica que sustente os efeitos relatados –, o mundo parece cada vez mais disposto a “confiar, deixar ir e ser aberto” (em inglês, “trust, let go, and be open”, um mantra usado pelos investigadores neste tipo de terapia).
Ainda assim, é importante não esquecer que falamos de drogas em muitos casos ilegais, e cujo “consumo” deve ser feito em ambientes específicos, controlados e guiados. “O papel do guia é crucial. As pessoas que estão sob a influência de psicadélicos são extremamente sugestíveis – ‘pensa nos placebos em rocket boosters’, disse-me um investigador da Hopkins –, com a experiência psicadélica profundamente afetada pelo ‘set’ e pelo ‘setting’ – isto é, pelos ambientes internos e externos do voluntário”, explica Pollan no mesmo artigo do The New York Times. “Por esse motivo, as sessões de tratamento acontecem tipicamente num quarto confortável e sempre na presença de guias treinados. Os guias preparam os voluntários para a viagem que vai acontecer, ajudam-nos a ‘integrar’ a experiência, ou a fazer sentido dela, e a colocá-la a bom uso na mudança das suas vidas.” Este é o tipo de resposta que os investigadores anseiam ver num futuro que pode ser mais próximo do que distante.
Neste momento, e depois de ter recebido a designação de breakthrough therapy pelo FDA em 2017, a terapia com MDMA para stresse pós-traumático da MAPS encontra-se na fase 3 dos ensaios clínicos nos EUA, Canadá e Israel, que deverá estar concluída em 2021, e a iniciar a fase 2 na Europa. A expectativa da associação é que o FDA aprove a psicoterapia assistida com MDMA como tratamento prescrito em 2022. Em 2018 foi a vez da COMPASS Pathways, que recebeu a designação de terapia inovadora pelo FDA para a terapia com psilocibina no tratamento de depressão resistente nesse mesmo ano. Atualmente na fase 2, este estudo está a ser conduzido em várias partes da América do Norte e da Europa – Portugal, mais precisamente o Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa, está no mapa destes ensaios clínicos.
Outro nome que não fica fora do baralho é o de Robin Carhart-Harris, líder do Center for Psychedelic Research (o primeiro do seu género, fundado em abril de 2019) do Imperial College, em Londres. Em fevereiro do ano passado, o investigador, que tem dedicado 15 anos do seu trabalho a estudar a forma como drogas como LSD, psilocibina, DMT e MDMA funcionam no cérebro, marcava presença no Fórum Económico Mundial, em Davos, para discutir o potencial destas drogas em contextos de depressão, adição e ansiedade em doentes terminais. Intrigado, o mundo continuou a ouvir.
Em junho deste ano, Carhart-Harris assinava o artigo “We can no longer ignore the potential of psychedelic drugs to treat depression”, publicado no site do The Guardian. “Passou-se algum tempo desde que vimos uma inovação nos cuidados de saúde mental, e a terapia psicadélica funciona de uma forma muito diferente dos tratamentos atuais. Os tratamentos médicos convencionais têm dominado a psiquiatria durante séculos, e apesar de muitas pessoas preferirem a psicoterapia, esta é mais cara, de difícil acesso e discutivelmente não mais eficaz do que as drogas”, defendia. Apesar de todo o progresso, o investigador insistia que o estigma associado às doenças mentais e aos psicadélicos precisa de ser desmantelado – e que melhor momento para isso do que este? “Dois silver linings desta pandemia são o facto de ter convidado uma consciência expandida – e das pessoas terem desacelerado. Muitos terão olhado para a sua respiração, contemplado a sua impermanência e a dos outros, e sentido gratidão pelo cuidado, pelo amor e pela vida. Se a terapia psicadélica cumprir o seu potencial, irá fornecer as mesmas lições essenciais. Caberá a cada um de nós decidir até que ponto estamos dispostos a ouvir.”
Artigo originalmente publicado na edição de julho/agosto de 2020 da Vogue Portugal.
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