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Porque é que não há espelhos na cozinho?

19 Feb 2021
By Nuno Miguel Dias

Aposto que não é a primeira vez que o verão escrito: “Somos o que comemos”. Porque é capaz de ser verdade. E fora da nossa esfera pessoal, há um mundo inteiro. Nesse, o que cada cultura come, e todas as tradições em torno do ato de comer, refletem-na. É por causa de todos estes reflexos que a cozinha é a única divisão da casa onde ninguém pendura um espelho? Não há estudos sobre isso? Seria pertinente!

Aposto que não é a primeira vez que o verão escrito: “Somos o que comemos”. Porque é capaz de ser verdade. E fora da nossa esfera pessoal, há um mundo inteiro. Nesse, o que cada cultura come, e todas as tradições em torno do ato de comer, refletem-na. É por causa de todos estes reflexos que a cozinha é a única divisão da casa onde ninguém pendura um espelho? Não há estudos sobre isso? Seria pertinente! 

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Nunca mais nos sai da cabeça, aquela noite em que fomos convidados para um repasto na casa de uns amigos. Como em quase todas as outras casas de quase todos os outros amigos, somos sempre convidados a deixar os casacos sobre a cama do quarto de casal. Só que, desta feita, há um pequeno detalhe naquele aposento. O pensamento que nos invade é óbvio: “Que devassos, estes impúdicos e obscenos libertinos”, e passam-nos irremediavelmente pela cabeça implacáveis imagens de uma vida em privado que nunca ousámos supor. Heroicas Caixas Fechadas (uttana sampuna), vigorosos Florescimentos (utphallaka), atléticos Lótus (padmasana), robustos Rainhas do Céu (indranika) e mais um inúmero rol de posições do Kama Sutra do marotíssimo Vatsyayana que, ainda hoje, 18 séculos depois, fascina. Tudo por causa de um gigantesco espelho no teto. E julgávamos nós ser já sobejamente despudorados quando optámos por um roupeiro espelhado ao lado da cama, para que que pudéssemos admirar, no seu reflexo, toda a arte da nossa própria cópula, pelo menos em dias bons, que é quando vamos jantar fora, ao teatro e assim. Por certo, em nada disto pensa quem pendura espelhos no exterior da casa, preocupado que está, com essa opção decorativa, em afastar maus-olhados e invejas. Depois, há, claro, o espelho da casa de banho, cujas dimensões variam entre o reflexo da nossa modéstia e o gigantesco fausto de grandeza. Ainda haverá quem o coloque no corredor, no closet, até há aquele que alguém levou um dia para o sótão e ainda lá está, coberto de pó, para servir de inspiração a um qualquer filme de terror série B. “Mas que raio tem isto a ver com o tema gourmet?”, perguntará, por esta altura, quem ler este texto. Tudo. Pelo menos se alguém conseguir explicar por que raio é que a cozinha é a única divisão da casa onde ninguém vê necessidade, decorativa ou funcional, de colocar um espelho. Sendo na cozinha que se desenvolve uma das bases mais importantes da nossa vida, é natural que ninguém quisesse levar espelhos para aquela divisão. Até porque já existem, em torno dos tachos, superstições sobejas. Que vão muito além da comida em si, como as 12 passas comidas às 12 badaladas, o vinho derramado sobre o qual não se chora, a mesa onde não se sentam 13 pessoas, o bocado de bolo de casamento que deve ser guardado no congelador ou o pão que não pode estar invertido (a minha avó dar-me-ia imediatamente uma palmada na mão exclamando “não ganhei esse pão de rabo para o ar”). 

Todas as horas são boas para um pequeno exercício de nostalgia. E está na hora. Já tardava. Até porque estamos mais ou menos na altura em que a recordação sobre a qual escreverei divide os ainda jovens, que não fazem a mais pálida ideia, e os “entradotes”, como eu, a quem os olhos brilharão. Querem ver? Feira Popular de Lisboa… Viram? Lagriminhas nos olhos não vale, ok? Nasceu em Palhavã, onde hoje se encontra a Fundação Calouste Gulbenkian, no dia dez de junho de 1943, por sugestão de Leitão de Barros a João Pereira da Rosa, diretor do jornal O Século. Seria a forma de financiar a Colónia Balnear desse jornal (nascida em 1927), que proporcionava às crianças mais desfavorecidas dos bairros lisboetas (e eram tantas, nesse tempo), umas férias de sonho. Muitos dos avós e pais de quem neste momento está a ler este texto fizeram juras de amor junto do Lago dos Namorados (se o pai ou avô tivessem sido suficientemente discretos ao andar no Rotor, também conhecido como Cyclotron, famoso e muito concorrido por jovens mancebos porque levantava as saias das meninas), andaram naqueles carrinhos de choque, no comboio fantasma, nos carrocéis, na montanha-russa e na grande roda, viram a sina lida nos astrólogos e assistiram, de coração apertado, ao desempenho de Henrique Amaral, um adolescente que havia de levar o seu Poço da Morte, já com família formada, para a nova localização da Feira, em 1961, e lá estaria até ao seu encerramento, em 2003. Continuou a levar o seu espetáculo por Portugal inteiro até completar 90 anos, mas foi ali, em Entrecampos, que me fascinou. Mas não era só ele. À exceção do bando de chatos que, da entrada até à Bailarina (esse centrífugo carrocel, em frente à barraquinha com o letreiro Vinhos da Mêda), uma rua de restaurantes (o Oh Hipóloto ainda seria a escolha da minha turma na universidade para jantares que acabavam sempre com batalhas de batatas fritas), tentavam convencer toda a gente de que as suas sardinhas eram as melhores (tradição retomada na Rua das Portas de Santo Antão e que dura até hoje), e do pavilhão dos móveis onde os meus pais teimavam sempre entrar, a Feira Popular de Lisboa era muito mais que um sonho de criança. Padronizava Portugal. Não havia “betinhos” nem “chungas”. Não havia “aquela malta da província e as suas feiras de agosto para acolher emigrantes de regresso em agosto”. Normalizava a diversão e equiparava Lisboa, a capital, sem tiques de superioridade, a todos, de todos os quadrantes. Na minha casa, havia um boião onde, quando possível, eram depositados os escudos que, no verão seguinte, dariam muitas voltinhas em muitos carrocéis e no malfadado comboio fantasma. A barrigada de riso garantida estava n’A Casa dos Espelhos, diminuto espaço onde os nossos reflexos e os dos outros, ora côncavos ora convexos ora ambos, tiravam o fôlego. Esta distorção das nossas formas ocorre, hoje mais que nunca, em relação aos nossos hábitos alimentares. Só que não tem piada nenhuma. Mais do que a eventual inveja que as novas gerações podiam ter da minha por nunca terem visto a Feira Popular de Lisboa, deveriam tê-la em relação à paz de espírito, ausência de culpa e preocupação zero com que se comia, no final da noite e antes de se sair do recinto, uma fartura ou mesmo um courato no pão.

O fast food português é o frango assado. Ou foi, durante muitos anos. Porque, entretanto, a globalização foi a pior coisa que aconteceu. Em termos alimentares, aos portugueses. Somos o quarto país mais obeso da Europa. Como é que aqui chegámos? Com muita mastigação de produtos errados. Seria injusto culpar exclusivamente as grandes cadeias de fast food. Se enveredássemos por esse caminho, teríamos de acabar a vilipendiar quem troca uma travessa de carapaus grelhados num restaurante de bairro por um empanturranço épico de sushi num all you can eat gerido por chineses, onde o salmão de aquacultura é rei e senhor. “No meu tempo”, a minha mãe ia buscar frango assado à churrasqueira quando o rei fazia anos. Justificava-o com uma frase simples: “Não se pode comer muito disto porque estes frangos são de aviário”, dita enquanto trincava mais uma batata frita Pala Pala, a única marca de chips tuga, que também era vendida na praia pelo mesmo senhor que tinha Epá, Perna de Pau, Super Maxi e, claro, língua da sogra. Hoje é praticamente impossível adquirir, numa grande cidade ou mesmo vila de média dimensão, um frango criado num outro lugar que não seja um aviário. Compreendo, hoje, como chegámos até este Estado das Coisas. Por experiência própria. Criança na década de 80, fui bombardeado com um imaginário alimentar que vinha de Hollywood e era tão díspar do nosso como fascinante. No início de ET, O Extraterrestre, Elliot deixa cair uma caixa de pizza que intentava alimentar os amigos do irmão enquanto jogavam poker. Hoje, pensamos “eh pá está-me mesmo a apetecer uma pizza” e ligamos para uma das dezenas de números de telefone disponíveis para esse fim. Mas eu não podia! E queria tanto. Pizza? Onde? Num outro filme qualquer, outro ator qualquer dá uma dentada num suculento hambúrguer… Ao que saberia tal coisa? Eu não sabia. Mas confesso que sonhava tanto com aquilo que me lembro muito bem da primeira dentada, no Sandwich Bar na Costa de Caparica, a primeira hamburgueria de Portugal. Nos snack-bars havia hot dogs, sim, com o vulgaríssimo nome de cachorros, mas eram ridículos: duas salsichas de lata cortadas longitudinalmente, fritas e dispostas num papo-seco. Foram precisos muitos anos para ultrapassar o fascínio que o marketing exerce sobre uma criança, para perceber então que nada ultrapassa uma bifana de tasco. Se é para cometer excessos, que venha um pratinho de dobrada com feijão branco, um chouriço assado no porco de barro com um fundinho de bagaço de segunda, uma entremeada, uma salada de orelha, um choco frito. Mas, lá está, assumamo-lo como um excesso. Só quando o rei faz anos. E empurremo-lo a tinto que isso dos refrigerantes faz arrotar.

Sabem o que é um cozido de grão alentejano? Eu explico. É bom. E saudável. Porque leva grão-de-bico, abóbora, cenoura e muita, mas mesmo muita hortelã. Só que também leva frango, vitela, borrego e porco no geral. Em particular, orelha, focinho, entremeada, chispe, moira (chouriço “preto”) e linguiça (chouriço “branco”). O que faz disto saudável? Não é o conteúdo, por certo. É a forma. É um manjar farto. Logo, por tradição, é confecionado em dia de festa. Que é como quem diz, pouquíssimas vezes ao ano. Para juntar toda a família. E, aquando do seu consumo, o meu avô personificava aquilo que, só muitos anos depois, viria a ser considerado um pilar da denominada dieta mediterrânica, património imaterial da humanidade. A primeira coisa a fazer era, claro, encher um copo de vinho tinto. Depois “migava” pão para o fundo de uma “almoçadeira” (prato de sopa). Tirava só o caldo do cozido com um “caço” (concha) e espalhava-o sobre o pão. Já nós, os convivas, nos enchíamos de tudo quanto era carnes gordas quando ele, consumidas que estavam as “sopinhas”, ia “à pesca” de um pedacinho de linguiça que depositava por cima de um naco de pão e ia cortando com a navalhinha, à vez. Era isto o seu almoço. O que interessava ali era, claro, o sabor, que para ser tomado não necessita de grandes quantidades. Mas também o cenário. Era uma família inteira em roda de uma mesa enorme, ele visivelmente embevecido por nos ter ali, um sorriso largo quando eu e a minha irmã, nascidos já em Lisboa e sem raízes visíveis que nos prendessem à terra (Santa Luzia, Ourique), nos tratávamos por “manos.” Isto pautou a minha vida e agora, que outras coisas me toldam a memória, encaro-o como algo a que temos de regressar. Se já não pudermos espelhar a nossa cultura, que se ocidentalizou irremediavelmente, espelhemos, ao menos, as nossas origens. Procuremo-las. E quando as encontrarmos, façamos delas lei. 

Na cultura portuguesa, e até à chegada desta era do desperdício desenfreado, a sopa era, na verdade, a refeição em si. O “conduto”, comummente conhecido como o prato que se segue à sopa, nem sempre existia. No Alentejo, região que sempre foi mais castigada pela fome, a definição é outra: “algo que se come com pão”. Normalmente, um pouco de um dos enchidos dependurados na lareira da cozinha. Ou um naco de carne de porco que, depois da matança, era depositada num alguidar de barro e coberta de “banha de cor” (tempero de massa de pimentão) para que assim se conservasse durante todo o ano. E um país historicamente alimentado a sopa é, necessariamente, um país humilde na sua génese. Alguns dirão que somos mais que apenas despojados, singelos e sóbrios. Que somos por vezes submissos e servis. Não. Ou não por muito tempo. Uma coisa é ter carências, outra é ser medíocre. E é aí que entra a magia da nossa gastronomia. Conseguimos, com tão pouco, ter a cozinha mais rica e saborosa do mundo. Nunca nos deu a pompa dos franceses, a opulência das especiarias indianas, o desmoderado manancial de massas dos italianos, a louca busca por proteína.

Este artigo foi originalmente publicado na edição de janeiro/fevereio de 2021 da Vogue Portugal.

Nuno Miguel Dias By Nuno Miguel Dias

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