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Um amor, dois amores, três amores, quatro... quantos amores cabem numa relação?

30 Nov 2020
By Mónica Bozinoski

... cinco, seis ou sete. Quem sabe oito, nove ou dez. Porque quando a pergunta é relações, a resposta óbvia não tem de ser monogamia. Porque quando a pergunta é amor, a resposta certa não tem de ser só nós dois.

... cinco, seis ou sete. Quem sabe oito, nove ou dez. Porque quando a pergunta é relações, a resposta óbvia não tem de ser monogamia. Porque quando a pergunta é amor, a resposta certa não tem de ser só nós dois.

© Rob Woodcox
© Rob Woodcox

Diz-nos quem sabe do assunto (entenda-se, o dicionário) que a palavra amor se pode definir de diversas formas. Com apenas quatro letras escrevem-se explicações como “sentimento que induz a aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente afeição ou atração; grande afeição ou afinidade forte por outra pessoa” ou “ligação afetiva com outrem, incluindo geralmente também uma ligação de cariz sexual.” Não é difícil perceber porquê: de todos os sentimentos que o ser humano consegue sentir, é possível que o amor seja um dos mais subjetivos. Consequentemente, aquilo que fazemos com ele – ou aquilo que fazemos dele – é alvo dessa mesma subjetividade. Pense um pouco. Quantas vezes ouvimos que cada casal é um casal? Que cada relação é uma relação? Que cada pessoa sente aquilo que sente? Que aquilo que nos faz sentir bem com o outro não é aquilo que faz o outro sentir-se bem connosco? Imaginamos que muitas – e imaginamos também que, no meio de todas estas coisas que ouvimos desde que o aprendemos a fazer, não esteja contemplada a noção de que o amor não é sinónimo de monogamia. Em pleno 2019 (melhor tarde que nunca?), parece estar a tornar-se cada vez mais claro que a promessa de “me and you, just us too” entre Carrie e Big não é a única forma de estabelecer um compromisso com alguém – e os ecrãs que durante tanto tempo se focaram na ideia da imutabilidade de uma relação a dois, na ideia de que a monogamia é a única forma de amar, são os mesmos que, hoje, nos mostram que não tem necessariamente de ser assim. “No pequeno ecrã, os limites relacionais menos tradicionais estão a ser cada vez mais explorados. Molly navegou pela realidade de ser uma parceira secundária na última temporada de Insecure, a Netflix tem uma série chamada Wanderlust que acompanha Toni Collete e o seu marido, Steven Mackintosh, a tentarem pilotar uma monogamia de longa-data. Em House of Cards, Robin Wright e Kevin Spacey tinham uma definição bastante fluida da monogamia e, aparentemente, ambos dormiam com o mesmo agente dos Serviços Secretos (se calhar, a verdadeira intimidade é dormir com a mesma outra pessoa).” As palavras são de Sophia Benoit no artigo How People in Open Relationships Make It Work, publicado em maio deste ano no site da GQ norte-americana – mas não é só na ficção que as relações não-monogâmicas estão a despertar a atenção de um público até então alienado.

Em 2016, um estudo publicado no Journal of Sex & Marital Theraphy concluiu que uma em cada cinco pessoas nos Estados Unidos da América envolvem-se em algum tipo de não-monogamia consensual ao longo das suas vidas. Nesse mesmo ano, um inquérito realizado pelo YouGov a 1000 adultos, também nos Estados Unidos, apurou que a relação ideal de 48% dos homens inquiridos e de 31% das mulheres inquiridas envolveria algum nível de não-monogamia. Já em 2017, a propósito do seu relatório anual de pesquisas mais populares, a Google revelou que a pergunta “O que é que significa ser poliamoroso ou estar numa relação aberta?” foi a quarta questão sobre relações mais colocada ao motor de busca. Dados mais recentes sobre o tema, reportados pela CBSN em outubro deste ano, mostram que “é estimado que 4% a 5% das pessoas que vivem nos Estados Unidos participam atualmente naquilo que é conhecido como uma não-monogamia consensual ou ética.” Estarão as pessoas mais abertas à ideia de uma relação que não passa pela monogamia – e mais propensas a compreender este modelo relacional, mesmo que não o ponham em prática? “A busca por informação e pelo conhecimento é uma coisa positiva”, diz Mónica, estudante de sexologia clínica de 24 anos, à Vogue. “Acredito que o interesse das pessoas advém de uma maior visibilidade do poliamor, o que só por si deixa as pessoas curiosas. Não sei se estes dados [relativos à lista de pesquisas mais populares da Google, em 2017] revelam que há mais pessoas a considerar viver num sistema relacional de não-monogamia consensual ou se revelam apenas que as pessoas estão mais curiosas com este tópico, mas acredito que, com as mudanças na nossa sociedade nas últimas décadas, cada vez haja mais pessoas com dificuldade em viver sobre aquele que é o guião monogâmico tradicional, por não se adaptar às necessidades e estilo de vida atuais, e isso leva a uma busca por diferentes guiões, seja em não-monogamia consensual ou alterando o guião monogâmico.”

Mónica é uma das três pessoas com quem conversámos sobre o universo das relações de não-monogamia consensual. A maioria das relações que teve até hoje, desde a primeira, foram não-monogamias consensuais. “Desde que me recordo de pensar em relações que sempre houve para mim uma separação do que é sexo, amor e compromisso, e numa fase inicial foi perceber que mi parceirx [Mónica opta, no decorrer do seu testemunho, por não referir géneros] se envolver fisicamente com outra pessoa não representava que me amasse menos. Mais tarde comecei também a perceber o significado de compromisso, e que o amor e o compromisso são coisas distintas, e que amarmos uma pessoa não significa que esta seja um bom parceiro de vida e que ser um bom parceiro de vida não depende necessariamente de amor romântico. Com o passar do tempo e das minhas experiências fui percebendo que a não-monogamia consensual fazia mais sentido para mim e dava-me mais liberdade de construir cada relação à medida, com tantas especificidades e particularidades quanto as que formam cada pessoa nela envolvida. A não-monogamia consensual é parte da minha identidade e essencial para viver em congruência com todas as minhas outras características.” Para Mónica, “a não-monogamia consensual e o poliamor significam liberdade, transparência, sinceridade, honestidade, muita comunicação e a recusa do conceito de posse associado às minhas relações. Significam estabilidade nos meus compromissos, porque amor e compromisso são duas coisas distintas e a qualquer momento posso-me fascinar por alguém que acabou de entrar na minha vida, e isso é incrivelmente bonito, e não vai pôr em causa o amor e o compromisso que tenho com x(s) parceirx(s) que escolhi para a minha vida e que fazem todo o sentido e que me fazem completamente feliz.” Para além disso, como nos conta, “a não-monogamia consensual e o poliamor também significam multiplicar, porque o amor é infinitamente multiplicável, e isso vê-se facilmente pelos filhos, pelos netos, pela família, que nos fazem multiplicar o amor constantemente, sem que sintamos que há menos amor quando há mais pessoas.”

 

A não-monogamia consensual – que, nas palavras de Heath Schechinger, psicólogo da Universidade de Berkeley, é um “termo guarda-chuva” que “descreve qualquer relação na qual os participantes explicitamente concordam em ter múltiplas relações sexuais e/ou românticas em simultâneo” – entrou também, e relativamente cedo, na vida de Rita. “Eu estou numa relação há quase seis anos. Eu e o meu namorado começámos a namorar quando tínhamos os dois 14 anos. Éramos, e continuamos a ser, de cidades diferentes; a nossa relação, desde o início, foi uma relação à distância. No entanto, por volta de um ano e meio de namoro, eu comecei a apaixonar-me por uma rapariga. Foi uma questão completamente nova para mim”, conta por telefone à Vogue. “Na realidade, no início, tive alguma dificuldade em lidar com estes sentimentos porque, ao mesmo tempo que estava a começar a gostar de alguém, não deixei de gostar do meu namorado. Falei com ele sobre o assunto, e ele disse que fazia todo o sentido que eu pudesse experienciar essa parte de mim mesma, visto que, com ele, não era algo que eu pudesse fazer – ou seja, a minha realidade de ser bissexual foi-me aberta também com o consentimento dele, e partiu um pouco daí. Ao longo dos anos fomos decidindo que a relação podia funcionar, e funcionava perfeitamente, desta forma. No início fui apenas eu, mas mais tarde ele também se sentiu à vontade para estar com outras pessoas. Agora, tantos anos depois, a nossa dinâmica é muito mais fluída.” Pergunto a Rita como é a dinâmica da sua relação, em particular. “Nós temos estipulado que somos a relação primária um do outro, e apesar de nunca ter sido algo muito dialogado entre nós, foi sempre uma certeza. Vemos um pouco esta questão como uma liberdade que damos um ao outro, mas também como uma forma de podermos ter mais experiências de vida enquanto estamos longe um do outro, enquanto a nossa relação for à distância. Este tem sido o funcionamento que faz mais sentido para nós (...). Nunca existiu a questão de alguém que tenhamos conhecido se sobrepor, ou seja, a nossa relação é primária. As pessoas de fora... depende sempre da dinâmica que nós temos com as mesmas. Já houve relações que eu tive que tinham a esfera sexual e emocional, outras não. Mas nós damos a liberdade e a abertura para que seja o que tiver de ser, desde que haja diálogo. A única regra que nós temos é: se houver intenção de estar com alguém, temos de avisar o outro antecipadamente; se não houver e simplesmente tiver acontecido, no dia seguinte, avisar o outro.”

“A NÃO-MONOGAMIA CONSENSUAL E O POLIAMOR TAMBÉM SIGNIFICAM MULTIPLICAR, PORQUE O AMOR É INFINITAMENTE MULTIPLICÁVEL, E ISSO VÊ-SE FACILMENTE PELOS FILHOS, PELOS NETOS, PELA FAMÍLIA, QUE NOS FAZEM MULTIPLICAR O AMOR CONSTANTEMENTE, SEM QUE SINTAMOS QUE HÁ MENOS AMOR QUANDO HÁ MAIS PESSOAS.”

Esta questão do diálogo é algo que Sofia refere, também, na nossa conversa por telefone. “Eu acho que há muito menos tabus”, diz sobre as relações não-monogâmicas. “Não estou a dizer que são todas assim, mas sim a falar das relações padrão e das relações que já tive, também. Sinto que há mais espaço para o diálogo. O que vejo muitas vezes de amigos meus que estão em relações monogâmicas é que há coisas que eles não contam aos parceiros deles, porque supostamente não devem contar. Por exemplo, dizer ‘acho aquela pessoa muito atraente’, ou, ‘estou a criar alguns sentimentos por aquela pessoa’. O que quero dizer com isto é que há coisas que têm de ser resolvidas através do diálogo, e eu sinto que em relações monogâmicas o diálogo é muito mais reprimido, porque há coisas sobre as quais os casais não têm de falar, que nós temos obrigatoriamente de falar. Isso resulta num acumular de sentimentos que muitas vezes não é saudável para a relação. Eu acho que nas relações poligâmicas há muito mais comunicação também pela obrigatoriedade de haver comunicação e partilha de sentimentos.” Sobre o seu caso, Sofia refere que teve relações monogâmicas até aos 16 anos, mas nunca teve uma experiência muito boa com as mesmas – depois de uma ex-namorada, que já tinha conhecimentos sobre relações abertas, a ter introduzido ao conceito, Sofia nunca mais voltou para a monogamia. Hoje, aos 19 anos, continua a ser aquilo que faz sentido para si. “A minha relação é a minha relação. Eu sou amiga de casais não-monogâmicos que têm uma relação completamente diferente. Eu só estou a fazer aquilo que funciona para mim – cada casal decide quais são os seus limites”, conta por telefone. “No meu caso, eu namoro com a Inês, e é uma relação séria. Relativamente a outros parceiros, nós não procuramos ativamente, mas as coisas acontecem. Neste momento, graças a um encontro no Tinder, conheci uma rapariga, que é a Carolina, que também está numa relação aberta. Nós andamos na mesma Universidade, e somos amigas, temos uma intimidade que aos olhos de quem é monogâmico seria considerada como uma relação, mas o sentimento que eu tenho por ela é uma amizade forte e uma intimidade, mas não é o que eu sinto pela Inês, e é por isso que eu a considero [a Carolina] a minha parceira secundária, entre aspas. Não é uma one night stand – nós passamos de facto muito tempos juntas, somos amigas. Simplesmente temos relações e partilhamos essa intimidade. Coisas de uma noite, não há problema. O único limite, entre aspas, é que eu namoro com a Inês, e ela namora comigo, e somos exclusivas nesse aspeto. Não há segundas nem terceiras namoradas, nem namorados. Não há nada disso.”

Cada casal é um casal, e cada casal estabelece os seus limites, as suas necessidades, as coisas com que se sente ou não confortável – mas o que é que um casal monogâmico teria a aprender com um casal não-monogâmico? Coloco a questão a Rita. “Para mim, acho que é a questão toda do contrato, porque acho que o contrato engloba aqui a questão toda da comunicação, da honestidade, do compromisso”, diz. “Eu interesso-me bastante por esta temática, já fui ver algumas palestras e um grande nome cá é o nome do Daniel Cardoso. Ele tem uma palestra muito interessante sobre monogamias, no plural, porque ele defende precisamente que não existe uma monogamia, tal como não existe uma poligamia, ou um poliamor. São vários, e existem várias dinâmicas dentro deles. E ele fala precisamente sobre isso; é engraçado como nós assimilamos a monogamia como uma entidade quando, na realidade, os teus limites não são os mesmos que os meus. Quando duas pessoas se juntam numa relação, e não há essa comunicação, e não há essa criação do contrato, causa bastante desentendimento e aí, sim, vem toda a questão do ciúme, da inveja, da raiva, da desconfiança, da insegurança. Eu acho que os casais monogâmicos tinham tanto a aprender com a questão toda do contrato, com o saberem  o que é que incomoda.” Na opinião de Mónica, esta questão responde-se de duas formas. “A não-monogamia consensual está muito ligada à autodescoberta e à autodeterminação, saber o que eu quero e quem sou, e saber falar sobre isso. Estes são definitivamente pontos que todos devemos levar para a nossa vida e desenvolvê-los ao longo dela.” Mónica continua: “Outro dos pontos importantes é a comunicação com transparência. Na não-monogamia consensual, não existe um guião previamente feito nem uma fórmula, o que obriga a que haja imensa conversa e transparência constantes, para que as pessoas possam construir a fórmula que resulta para aquela relação específica. Este diálogo não é mais importante nas não-monogamias consensuais e seria ótimo que as pessoas monogâmicas iniciassem também este processo de falar sobre tudo e com total honestidade com xis parceirx.” Como refere ainda Rita, “se esta realidade setornar mais familiar, só a questão de chegar um dia a casa e dizer, ‘tenho uma colega de trabalho que acho extremamente atraente’, só pôr isso em cima da mesa sem grandes consequências, já é um passo enorme. Já abre um diálogo a temas completamente diferentes, e até pode nem haver um ato a seguir – há simplesmente uma abertura entre o casal.”

TESTEMUNHO, O MEU OBJETIVO ERA PASSAR A MENSAGEM DE QUE NÃO HÁ FÓRMULAS CERTAS NEM ERRADAS, E NENHUMA RELAÇÃO É MELHOR QUE A OUTRA."

Pôr estes temas em cima da mesa também é desmistificar e desconstruir as ideias erradas sobre os mesmos – e falar abertamente sobre as noções erradas que as pessoas têm relativamente às não-monogamias consensuais. “É difícil escolher um!”, diz Mónica quando coloco a pergunta sobre o maior equívoco que as pessoas têm sobre esta orientação relacional. “Que amamos menos; que os nossos compromissos são menos sérios, válidos e não incluem perspetivas de futuro; que somos mais sexuais; que traímos as pessoas com quem temos um compromisso e que é um género de ‘traição consentida’; que não existe o conceito de traição; que não existe ciúme; que só os homens querem viver em não-monogamia consensual e que nenhuma mulher escolhe esta orientação relacional de livre vontade; que não-monogamia consensual só inclui relações abertas, em que duas pessoas estão numa relação e permitem que x parceirx se envolva sexualmente com outras pessoas. Dizerem que somos ‘poligâmicos’ quando falam de pessoas não-monogâmicas; acreditarem que ser não-monogâmico consensual significa ser ‘anti-monogamia’ e que invalidamos a monogamia; que somos mais propensos a DST e temos menos cuidados com a nossa saúde sexual; que somos psicologicamente instáveis ou menos saudáveis. Que é só uma fase e que eventualmente iremos encontrar aquela pessoa especial. Que xs nossxs parceirxs nos satisfazem menos ou nos deixam menos felizes.” A opinião é corroborada por Rita, que durante a nossa conversa refere sentir-se irritada com duas ideias. “A primeira, e essa já senti na pele, é a ideia de que nós, pessoas que têm várias relações e que podem estar abertas a relações tanto emocionais como sexuais, o que seja, que somos sexo fácil, e que somos fáceis, em todos os sentidos”, diz. “Mas acho que aquilo que mais me irrita é a maneira como os media mostram esta dinâmica, e foi por isso que eu também tive interesse em conversar com vocês, porque das poucas coisas que vejo onde se fala sobre este assunto, normalmente é sempre o homem a dar a cara, e é sempre o homem acompanhado de duas mulheres – como se a questão toda aqui fosse que isto é só uma forma de haver relações a três, e que toda a gente tem de gostar de toda a gente, e que na dinâmica sexual há sempre relações a três. Essa fetichização toda depois cola também a um mundo um pouco erótico e pornográfico, e eu não gosto disso.” Apesar de falarmos cadavez mais – mas não o suficiente – sobre modelos relacionais que transcendem os limites da monogamia, Rita refere que continua a sentir que as relações não-monogâmicas são um tabu na sociedade. “Eu acho que tenho muita sorte porque, apesar de tudo, eu e o meu namorado tomámos esta decisão quando tínhamos 14 anos. Eu nunca tive numa relação que não fosse este tipo de relação. Sempre fui muito bem-recebida – primeiro com estranheza, sempre, mas os meus amigos aceitam-me como ninguém, e a maioria das pessoas na minha vida sabe que eu tenho essa relação. Mas a minha família não sabe. Era impensável que eles compreendessem que, para além de estar numa relação à distância, poderia de vez em quando estar com alguém.” Para Sofia, este tabu é cultural, e é assim porque “nós vivemos numa sociedade que, mesmo que muitos de nós se considerem ateus, tem uma cultura judaico-cristã, onde a monogamia é muito valorizada.” “Quantas celebridades é que disseram que estiveram em relações abertas, e que se calhar estão, e que simplesmente não admitem porque é um tabu?”, questiona Sofia. “Eu tenho conhecimento de amigos meus que estão em relações abertas e muito pouca gente sabe, precisamente por ser um tabu.” Mónica leva a questão ainda mais longe. “O estado não reconhece a existência de relações não monogâmicas, logo não são previstas pelas instituições estatais. Uma pessoa casada que se tente casar com uma segunda pessoa pode enfrentar pena de prisão. Para tudo o que sejam questões fiscais ligadas a casais, não são previstos casais com mais de duas pessoas. A lei não inclui proteção laboral na eventualidade de um patrão querer despedir um funcionário por causa da sua orientação relacional. Pensem em todos os  benefícios legais que um casal monogâmico tem, a nível médico, de testamento, judicial, fiscal, laboral... todos esses benefícios são inexistentes para casais que envolvam mais que duas pessoas”, diz por e-mail. “Tudo isto sem abordar o preconceito social, que é notório, e uma das formas mais fáceis de ver isso é pela quantidade de pessoas que temos em Portugal a falar abertamente sobre isto, que são muito poucas, sendo que há bastantes pessoas a viverem num sistema de não-monogamia consensual, e isso deve-se ao facto de que falar sobre isto publicamente pode ter muitas consequências na sua vida e na de quem as rodeia.”

É uma história que vemos repetida vezes e vezes sem conta – e tal como os tabus que fomos derrubando, em sociedade, ao longo dos anos, vale a pena perguntar quando será a vez da não-monogamia consensual deixar de ser confrontada com tanta estranheza, preconceito e julgamento. “Quando eu decidi dar este testemunho, o meu objetivo era passar a mensagem de que não há fórmulas certas nem erradas, e nenhuma relação é melhor que a outra”, diz Sofia. “Embora muitas vezes tenha amigos que me dizem, 'adorava ter uma relação como a tua, é preciso tanta maturidade emocional para estar numa relação assim', não há relações melhores que outras. Tudo depende do casal, e tudo depende de comunicar e confiar, e eu não quero passar a imagem de que as relações não-monogâmicas são melhores ou superiores às relações monogâmicas. Não são. Eu acho que cada pessoa deve ter a capacidade de passar por um processo de introspeção e reflexão, e perceber o que é que funciona com ela. Eu só quero dar informação às pessoas, não quero convencê-las ou persuadi-las ou tentar trazê-las para o meu lado.” A não-monogamia consensual pode não funcionar para todos os casais. E essa linha de pensamento aplica-se, também, à monogamia. “Eu sinto que se toda a gente tivesse acesso a informação, e tivesse essa capacidade de desconstruir um bocado, se calhar existiam pessoas que não estariam tão infelizes em relações monogâmicas. E vice-versa”, refere Sofia na nossa conversa. Esta ideia, ainda que de uma forma um pouco diferente, é-me também apresentada por Rita. Durante a nossa conversa, Rita refere a obra Sex at Dawn, de Christopher Ryan e Cacilda Jethá, um livro “bastante controverso” que mostra que “a ideia do homem das cavernas e da mulher que fica na caverna enquanto o homem vai à caça não é real.” Pode ser uma noção um tanto estrangeira à história que ouvimos desde sempre – mas, como refere Heath Schechinger à Vogue Austrália, “as pessoas têm sido não-monogâmicas, e têm praticado o poliamor, desde que existem seres humanos.” À semelhança, e citado pelo Público em junho deste ano, Rui Diogo, investigador e professor na Faculdade de Medicina na Universidade de Howard, em Washington, defende que a poligamia é natural – uma ideia que apresento a Rita, que me dá a sua opinião sobre a mesma. “Eu diria que a monogamia é uma escolha. Quando as pessoas me dizem, ‘eu respeito muito a tua relação, mas eu não conseguiria para mim’, eu até agradeço, porque as pessoas estão a ser empáticas comigo, mas às vezes dá-me alguma vontade de rir. Há tantas relações que me passam pela frente, ou de amigos ou de familiares, que eu vejo claramente que funcionariam muito melhor se não houvesse este tabu todo em volta.” No final da nossa conversa, enquanto debatemos a importância de falar abertamente sobre relações não-monogâmicas, Rita refere que “é muito importante, até porque Portugal é um dos países na Europa com maior taxa de divórcio.” E continua: “Por exemplo, soube há pouco tempo do caso de um familiar de uma amiga minha. Ela trouxe-me o tema precisamente por saber que eu tenho este tipo de relação, e disse-me que tinha uns tios que se estavam a separar porque ele tinha admitido que gostava de outra pessoa. Uns tempos depois, o divórcio já tinha ocorrido, e ele apercebeu-se que, na realidade, estava muito mais feliz com a tia dessa minha amiga. Ela trouxe-me esta questão de: ‘Como assim, o que é que se passou?’. Muitas das vezes, os homens passam por esta fase em que precisam de novidade na vida deles, e como não têm as ferramentas, e como não se fala dessas questões, acabam por ir só, e depois quando finalmente o pó assenta, percebem que, na realidade, foi um caos. O livro [Sex at Dawn] acaba com uma mensagem incrível, que é: quantos mais casais é que vão ter de acabar e de se arrepender de terem acabado, para que nós tenhamos que dar a volta, e tenhamos de perceber que isto não é para toda a gente?” l

A pedido das entrevistadas, e respeitando a privacidade das mesmas, alguns nomes foram alterados.*Artigo originalmente publicado na edição Family Affairs da Vogue Portugal, de dezembro 2019.

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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