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Qual é o papel das revistas de Moda?

02 Sep 2020
By Ana Murcho

Durante décadas as revistas de Moda sempre foram as ovelhas negras do jornalismo, mas o paradigma está a mudar. Debruçámo-nos sobre a temática.

The eye has to travel...the mind has to wonder. Não é apenas o olhar que tem de ser alimentado. A mente também deve ser estimulada. As revistas de Moda, muitas vezes rotuladas de forma simplista e redutora, assumem um papel cada vez mais relevante no contexto dos media tradicionais, pois tanto apontam o caminho para o sonho como instigam ao pensamento crítico. Nas suas páginas, as coisas belas não perderam espaço, apenas o passaram a partilhar com temas urgentes, porque o mundo, também ele, se tornou inadiável. 

Ginny Cavanaugh, 1950. © Al Barry/ Getty Images
Ginny Cavanaugh, 1950. © Al Barry/ Getty Images

Nunca foram apenas veículos baços de ostentação feminina. Podem até ter começado por ser folhetins de tendências, pequenos periódicos ilustrados com as notícias do que de melhor se fazia numa ou noutra época, mas sempre foram mais além da simples representação supérflua dos desejos do (aparente) sexo fraco. Venderam sonhos da mesma forma que venderam mudanças. Espalharam novas modas da mesma forma que espalharam novas vozes. Celebraram pequenos luxos da mesma forma que celebraram grandes revoluções. As revistas de Moda, que o mundo associa como sendo algo “delas”, feito “por elas”, unicamente “para elas”, são na verdade muito mais do que isso. Elas captam o espírito do seu tempo, como o fazem todas as coisas que conseguem sentir o pulso do momento, entender os ventos de mudança e perseguir, sem medo, os caminhos que se abrem a cada novo dia.

As revistas de Moda, que o mundo associa – erradamente – a meia dúzia de páginas mensais onde editoriais sem história, protagonizados por modelos sem alma, se intercalam com anúncios de milhares de euros e textos que se confundem com press releases, são na verdade muito mais do que isso. Elas rasgam convenções, correm riscos (necessários e desnecessários), assumem para si o papel de portadoras de notícias e de criadoras de conteúdos, lançam debates que tanto podem ser políticos, religiosos, ou totalmente fúteis. As revistas de Moda, ou pelo menos as melhores revistas de Moda, são assim. Não há tema que lhes escape, porque o seu espectro, o seu tema, é o mundo. É assim desde 1672, ano em que Jean Donneau de Visé fundou Le Mercure Galant, a primeira “revista feminina de informação e cultura”.

Está longe de ser a pergunta de um milhão de dólares, o planeta tem coisas mais importantes com que se preocupar, mas não deixa de ser uma questão curiosa. “What’s the Point of a Fashion Magazine Now?”, atirava em abril passado o The New York Times, numa clara alusão ao aparente choque frontal com a realidade que, de um dia para o outro, parece ter entrado pelas redações de todas as revistas de Moda adentro – como se vivessem alheadas do mundo e da vida, reféns de uma qualquer luxúria invisível e desprovidas de qualquer sentido de tato. Na entrada que acompanhava o longo texto podia ler-se: “Glossy magazines sell fantasy. Now they have to reckon with reality. It’s complicated.” Por outras palavras, estas publicações vendem fantasia, e agora (e o agora, sublinhe-se, é a chamada “nova normalidade”, fruto do surto da Covid-19), têm de se confrontar com o mundo tal como ele é, sem artifícios – e isso não é pera doce. O jornal continuava a sua análise com um apanhado das capas que melhor souberam adequar-se aos tempos de pandemia (entre outras, podemos encontrar a edição de abril da Vogue Portugal, Freedom on Hold), aparentemente porque tiveram um ataque de sensatez e souberam lidar com uma situação crítica de forma adulta (como os seus colegas crescidos, as news magazines e os jornais diários, por exemplo) ou então porque não tiveram outra solução a não ser apanhar o comboio das homenagens aos “heróis” da epidemia e fizeram headlines que se tornaram virais.

Mas será que foi mesmo assim? Será que foi o novo coronavírus que transformou, da noite para o dia, as revistas de Moda em “revistas sérias”? A dada altura, o jornal escreve: “As revistas de Moda são veículos para fantasias de luxo. Elas vendem aos leitores sonhos consumistas, imprimindo imagens brilhantes de supermodelos e estrelas por entre anúncios de relógios de 5 mil dólares e hidratantes de 250 dólares. A pandemia e o lockdown [provocados] pelo novo coronavírus atrapalharam esses sonhos. Como resultado, as revistas de Moda viram descarrilar tanto a sua produção como o seu objetivo.” Querido The New York Times, a longa história das “glossy magazines” mostra que o grosso das suas páginas depende, e contém, muito mais do que estás a querer pintar.

Podemos andar para trás e para a frente na longa enciclopédia que conta a história da revista que tem em mãos – o primeiro número da Vogue foi editado em 1892, nos Estados Unidos, depois seguiram-se as edições inglesa (1916) e francesa (1920) – que, em qualquer momento, encontramos provas de que esta não é, nem nunca foi, apenas uma publicação dedicada à Moda. O século XX começa com as mais incríveis colaborações artísticas (nomes como Salvador Dalí, Joan Miró, Edward Steichen, Horst P. Horst ou Irving Penn foram recorrentes por aqui) e seguiu com Alfred Hitchcock, Federico Fellini, Nelson Mandela, Orson Welles, Dalai Lama, Marc Chagall ou David Hockney – todos editores convidados. A lente, e o génio, de Andy Warhol, Guy Bourdin, Peter Lindbergh, Martin Parr ou Tim Walker têm sido um alento constante para os nossos olhos, os olhos Vogue, tal como a magia das palavras de Joan Didion, Patti Smith, Harper Lee, Dorothy Parker, Gloria Steinem ou Margaret Atwood – esses portentos literários que desafiam as convenções do que é ou não possível escrever tendo nascido mulher.

A resposta certa: é possível escrever tudo. A tudo isto, juntem-se as entrevistas e os perfis mais cobiçados, de Hillary Clinton a Karl Lagerfeld, os editoriais mais fora da caixa (como Water & Oil, publicado na edição de setembro de 2010 da Vogue Itália, que remete para a tragédia ambiental que assolou o Golfo do México em abril daquele ano, quando a explosão de um navio causou um dos maiores vazamentos de petróleo de todos os tempos) e as capas mais inesperadas – aqui podíamos até insistir na edição de abril da Vogue Portugal, Freedom on Hold, mas preferimos recuar até outubro de 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminou e a Vogue britânica lançou uma capa pioneira, carregada de simbolismo, que apresentava apenas um céu azul claro sob o lema Peace and Reconstruction.

"Oferecer algum escapismo e glamour ainda é importante, mas agora fico menos paranóica em conseguir aquela celebridade para aquela capa ou um produto exclusivo.” Laura Brown

E se durante muito tempo se associou futilidade e escapismo (também necessários, há que assumi-lo) às tais “glossy magazines” que o The New York Times agora referencia, há muito tempo que vários intervenientes por detrás das mesmas têm demonstrado uma constante preocupação em seguir uma linha editorial que seja coerente com o papel informativo, e educacional, que todos os media devem ter. É o caso de Laura Brown, diretora da revista In Style desde 2016. Ao jornal americano, afirmou que parte da sua função é saber tomar o pulso de cada situação. Não mês a mês, mas minuto a minuto. “Agora precisamos de ler as coisas não apenas todos os dias, mas a cada hora, a cada minuto, registando apetites e ansiedades que estão constantemente a mudar. Oferecer algum escapismo e glamour ainda é importante, mas agora fico menos paranóica em conseguir aquela celebridade para aquela capa ou um produto exclusivo.” E não é só porque o mundo parou e deixou de ser possível fotografar em lugares exóticos com samples dos designers mais conhecidos.

Há dezenas de indie magazines, como são conhecidas, normalmente publicadas duas vezes por ano, que apostam em conteúdos que nada têm a ver com tendências, trending topics ou vontades expressas de anunciantes. Por serem editadas por pequenos grupos empresariais, não têm os constrangimentos que por vezes assolam os títulos mais conhecidos – os temas são decididos in house, o número de páginas dedicado a cada artigo pode ser tão grande quanto a vontade do seu autor – e isso confere-lhes uma liberdade que as coloca no topo da tabela das revistas de Moda, como uma espécie de bíblia, pela qual os seus leitores religiosamente anseiam. Mesmo não sendo essa a sua quota de mercado, esse é o espírito da Vogue Portugal. Ser uma revista que faça a diferença, e que não se esgote no mês em que é publicada. Da sustentabilidade aos assuntos de género, do racismo às questões do envelhecimento, do feminismo aos dilemas com o (nosso) corpo, do amor pelo cinema, pela arte, pela vida, à união com o próximo, com a família, com o planeta, tudo cabe numa publicação onde o último ponto final só se põe no começo da edição seguinte. Sem tabus.

“A irrelevância das notícias impressas numa publicação sazonal permitiu que as revistas de Moda se transformassem em algo diferente", in I-D.

Uma coisa é certa. O modelo antigo, que empurrava as revistas de Moda para uma prateleira altiva dos quiosques, onde ficavam duas semanas em destaque – até alguém se lembrar que não valia apena insistir naquela notoriedade excessiva – está desatualizado. Em 2016, a versão online da i-D escrevia: “A irrelevância das notícias impressas numa publicação sazonal permitiu que as revistas de Moda se transformassem em algo diferente. Um item de luxo ideal para a relação paradoxal da Moda entre a permanência e a transitoriedade; descartável, sempre em mudança, desatualizado rapidamente; ainda assim, no seu melhor, uma revista de Moda é uma relíquia ou uma cápsula do tempo, uma janela para um mundo num determinado momento, não apenas o mundo da Moda, mas música, cultura, arte, vida, tudo... É um lugar para os melhores escritores, fotógrafos e artistas se expressarem; uma boa revista é algo para estimar, passar tempo com e absorver, à qual voltar uma e outra vez e não algo para enfiar na reciclagem.”

A publicação de uma revista de Moda, hoje em dia, requer pensar o seu propósito – e isso requer pensar o seu conteúdo. E isso significa reinventar-se constantemente, adotar novos nomes, pensar fora da caixa (idealmente, mandar a caixa fora), tratar todos os assuntos como sendo possíveis, como sendo seus, e arriscar, arriscar, arriscar.

Respondendo ao The New York Times, e a quem ainda tiver dúvidas, o papel de uma revista de moda, hoje, é esquecer que é uma revista de Moda. E, a partir de uma página em branco, fazer magia com essa realidade aparentemente intransigente com que todos nos confrontamos minuto a minuto. Só isso ficará para a eternidade. Só isso ficará na memória dos que nos lerem quando nada disto (nem estas linhas) fizer sentido. 

Ana Murcho By Ana Murcho

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