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Feeling down? Surf's up.

15 Oct 2020
By Sara Andrade

Diz que os efeitos da depressão podem ser atenuados sempre que apanha uma onda. A Vogue foi investigar esta ideia de que os blues podem ser combatidos surfando o “azul”.

Diz que os efeitos da depressão podem ser atenuados sempre que apanha uma onda. A Vogue foi investigar esta ideia de que os blues podem ser combatidos surfando o “azul”. 

“Vitamin Sea.” O wordplay que brinca com a fonética inglesa de C e Sea sugere que o mar traz algum tipo de benefício vitaminado para o nosso corpo – e a sua veracidade vai mais além da sua força enquanto hashtag de Instagram ou mantra num board do Pinterest. Se já alguma vez se pôs em pé numa onda, sabe que o rush is real. Se só observou da linha de praia, deve ter pelo menos usufruído do efeito relaxante da maresia. Estamos certos ou estamos certos? É que os benefícios da natureza nos níveis de ansiedade do ser humano não deveriam carecer de fundamento científico – em termos empíricos, parecem ser notórios –, mas a Ciência tratou, de facto, de argumentar que o seu fator calmante (da natureza em geral e do oceano em particular) não é apenas fruto da nossa imaginação. Se a isso aliarmos as vantagens do exercício físico e mais além que a modalidade de surf encerra, teremos aqui algum arcabouço – suportado com a ajuda de alguns especialistas – para falar sobre esta noção de “curing the blues with blue”. Mas vamos por partes – tal como as emoções vêm em ondas, entrar pelo efeito terapêutico do surf também implica um set de parágrafos.

Antes de falar sobre a terapia, importa falar sobre estes blues que aqui se abordam na sua vertente simbólica de tristeza, depressão, ansiedade – estados de espírito que parecem ser uma das principais maleitas do século XXI. Só que não são apenas estados de espírito, são também estados de corpo. E perceber a influência do mundo natural sobre este conjunto de diagnósticos implica realizar também que a depressão não é exclusivamente do foro psicológico, mas tem ainda um fator biológico associado: “Classicamente, a depressão era classificada em endógena/biológica ou exógena/reativa. A depressão endógena corresponderia à depressão originada por fatores biológicos, ao passo que a depressão exógena seria precipitada por fatores externos, como eventos de vida adversos. Na verdade, fará mais sentido considerar a depressão como uma interação entre os fatores biológicos (incluindo os fatores genéticos e fisiológicos) e os fatores ambientais (por exemplo, a vivência de eventos traumáticos, o contexto familiar e social, etc.) do que na dicotomia biológica/reativa. Dito isto, há de facto um aumento de risco de depressão (duas a quatro vezes maior) em pessoas com familiares de primeiro grau com depressão e a herdabilidade da depressão está estimada em 40%, sobretudo relacionada com a transmissão de traços de personalidade que conferem maior risco para o desenvolvimento da doença.” Não podíamos ter pedido explicação mais detalhada que esta do médico-psiquiatra João Fernandes, que não perde tempo a ressalvar ainda que “uma pessoa não herda a depressão, herda um conjunto de genes que conferem maior ou menor suscetibilidade para a doença. Sabendo que existem fatores ambientais que podem condicionar o aparecimento e a evolução da depressão, a capacidade de modificar esses fatores pode ser relevante para evitar ou melhorar o curso da depressão. Da mesma maneira que a evicção/controlo destes fatores poderá atenuar a expressão da depressão, uma maior presença ou relevância dos mesmos constituirá um fator de agravamento da depressão.” Joana Canha, psicóloga clínica, elabora também sobre o tema: “O biológico e o psicológico andam de mãos dadas e não é possível separar um do outro. Doenças de cariz biológico têm efeitos no nosso estado emocional e doenças do foro psicológico têm efeitos no corpo. No entanto, a depressão tem uma origem psicológica, ainda que não seja possível (nem desejável) deixar de considerar a hereditariedade genética. Há ainda a “hereditariedade psicológica” que está relacionada com o que é transmitido emocionalmente, sem nos apercebermos. O próprio meio/relações onde o ser humano está inserido pode exponenciar/agravar ou espoletar a depressão.” Mente sã em corpo são. Tendo a depressão (também) um cariz biológico, então, é possível considerar os efeitos do ambiente natural não só na mente, mas também no corpo?

“Alguns estudos relacionam a exposição a espaços verdes (locais ricos em vegetação, parques) e azuis (mar, rios e lagos) com uma melhor saúde mental”, começa por nos dizer o psiquiatra. “Num desses estudos, realizado em idosos, observou-se que aqueles que viviam mais perto da costa e aqueles que tinham maior visibilidade do mar tinham menor risco de depressão do que os que viviam longe ou com menor visibilidade. Curiosamente, quando se combinaram os dois fatores, apenas a visibilidade do mar se continuou a associar significativamente ao risco de depressão, mas não a distância em relação à costa. Os mediadores da associação entre exposição a espaços azuis e saúde mental parecem ser a maior atividade física praticada por quem frequenta estes espaços (por exemplo, praticando natação, caminhando na praia), a promoção de interações sociais que contribuem para um sentimento de pertença e coesão social, e o efeito retemperador dos espaços azuis (ou seja, o grau em que o ambiente ajuda a pessoa a recuperar do stress diário, sentir-se relaxada ou evitar o aborrecimento). Sugere-se também que os efeitos benéficos da água poderão relacionar-se com os estímulos sensoriais únicos que proporciona, como o som relaxante das ondas ou o cheiro da água do mar.” “Vários estudos têm mostrado que a proximidade ou afastamento do mar têm efeitos no estado de espírito”, concorda Joana Canha. “Ir para perto do mar/praia é algo descrito como importante por inúmeras pessoas quando precisam de estar mais consigo mesmas e até parece ter um efeito relaxante e renovação de algo. É muito frequente o mar ter um efeito relaxante, onde o tempo abranda e há um sentimento revigorante.” Este efeito calmante da natureza sobre o ser humano não é apenas um feeling, tem um nome: biofilia.

“Algumas das associações estabelecidas a este nível ancoram-se numa teoria da psico-evolução denominada biofilia, que atribui aos humanos uma tendência inata para procurarem ligações com a natureza e outras formas de vida”, explica o psiquiatra, referindo novamente a teoria, quando questionado se é isso que justifica esta atração lúdica que parecemos ter pelo mar. Ainda que a teoria da biofilia não singularize o oceano na sua abordagem ao efeito positivo da natureza no ser humano, esta massa de água tem outras características que incrementam o seu benefício. O mar enquanto um sítio de cura – com funções e aplicações terapêuticas – não é recente. Por exemplo, no final do século XVI, médicos ingleses começaram a prescrever água fria – e mais tarde, água fria do mar – para ajudar a “acordar” o corpo, ou pelo menos provocar um choque que aniquilasse a melancolia, histeria e outras maleitas da época. Em meados do século XVIII, os médicos europeus aconselhavam dias de praia e não tardou a que spas e resorts com vista para o mar começassem a aparecer. “Intuitivamente, existe uma tradição de médicos recomendarem aos seus pacientes passeios junto ao mar e banhos no mar para aliviarem várias condições de saúde”, refere curiosamente João Varela, biólogo marinho. “Existe também a tradição de considerar que certas águas são superiores no tratamento de doenças que outras. Por exemplo, para o tratamento da psoríase são recomendados banhos em águas ricas em sais (Mar Morto), ou com uma composição rica em sais (Lagoa Azul, na Islândia). Aparentemente, existem alguns estudos que indicam que isso poderá ter um efeito positivo e que não é indiferente a composição de sais que existem dentro de um corpo aquático.” Com efeito, em meados do século XX, o Journal of the American Medical Association promovia o tríptico “mar, sol e ar livre” para uma série de doenças. Ao longo de séculos, os médicos recomendaram sessões balneares aos seus pacientes, pelo efeito relaxante, já supracitado, no cérebro. Porque é que isto acontece especificamente perto da costa? Porque a rebentação das ondas e o movimento de águas (como em cascatas, por exemplo), liberta iões com carga negativa que espoletam a libertação de químicos de bem-estar no corpo e alteram as ondas cerebrais, aumentando o fluxo de oxigénio para o cérebro e promovendo a clareza e energia mentais. Os iões negativos são uma espécie de antidepressivos da natureza, desencadeando a libertação de serotonina e endorfinas, esses neurotransmissores de felicidade que aliviam o stress e nos fazem sentir bem. Mais ou menos como acontece com o exercício físico. Então, o surf, encaixando neste último e sendo feito na água, duplica este efeito de bem-estar marítimo?

“A prática de exercício físico tem efeitos positivos na saúde física e mental do ser humano. A nível biológico, a serotonina (a chamada hormona da felicidade) é responsável pela sensação de bem-estar que acontece após o exercício físico. É uma prática que permite trabalhar todo o corpo, muito completa em vários sentidos. Mas, centrando-nos a nível emocional, o exercício físico permite libertar stress acumulado e permite um foco. O surf é uma modalidade por excelência neste aspeto”, confirma a psicóloga. “Existe muita evidência sobre os benefícios da atividade física para a saúde mental e, em particular, acerca do papel do exercício físico na redução da incidência e dos sintomas de depressão”, corrobora o médico-psiquiatra. “Assim, parece-me plausível considerar que a prática de uma atividade física como o surf, num contexto protetor, como o mar, possa associar-se a efeitos benéficos para a saúde mental, incluindo na prevenção e recuperação de quadros depressivos. A evidência que suporta esta perceção mostra que a prática de atividades físicas no exterior versus interior tem maiores efeitos no stress, raiva e depressão e que a prática de atividades físicas na presença de água (versus sem água) poderá gerar maiores melhorias nos sintomas associados à depressão.” Com efeito, um estudo da Marinha dos Estados Unidos da América iniciado em 2013 tem vindo a estudar os efeitos da prática do surf em perturbações de stress pós-traumático, por exemplo, depois de registarem um incremento de 65% nos diagnósticos de perturbações de saúde mental em militares no ativo, entre 2001 e 2011. De acordo com a pesquisa, que analisou questionários realizados a militares antes, durante e depois de um programa de surf uma vez por semana ao longo de um mês e meio, os resultados preliminares mostraram logo que a modalidade levou a uma diminuição de insónia e sentimentos de ansiedade, bem como atenuou a visão negativista da vida e outros sintomas da depressão. João Fernandes acrescenta ainda que “o espírito comunitário que muitas vezes se desenvolve entre praticantes de surf, promovendo a interação e a coesão social, poderá também funcionar como um fator protetor da depressão.”

De facto, o surf tem uma série de valências ao nível do paralelismo com a vida social e não só. António Pedro de Sá Leal, ligado ao surf há mais de 20 anos, enquanto surfista, instrutor e autor de dois livros sobre a prática, Portugal Surf Guide e Surfing -The Next Step (e ainda um recém-lançado romance, Salvadores), fundou a Associação Surf Social Wave enquanto projeto que tira proveito destes benefícios da modalidade para uma aplicação real no quotidiano: “O surf tem-me trazido felicidade todos os dias e o desafio era levar essa possibilidade a outras pessoas”, introduz. “Tem algumas características incríveis que podemos passar para a nossa vida profissional, pessoal e social, nomeadamente o termos de ser resilientes porque nem sempre o mar nos traz o que desejamos, temos de trabalhar a nossa capacidade de prevalecer perante as adversidades sobretudo quando, enquanto surfistas, vamos para o mar e simplesmente não conseguimos apanhar uma onda de jeito, ou mesmo trabalhar a plasticidade cerebral quando nos confrontamos com decisões de segundos quando vamos na onda ou enfrentamos diferentes condições sempre que remamos para o mar. Estes e outros softskills são algo que os surfistas adquirem naturalmente e que considerei poder passar, através deste projeto, para a vida profissional, pessoal e social dos outros (…) um projeto que vai já para a 7.ª edição do Programa Cascais Surf para a Empregabilidade.” Skills que não se esgotam na praticabilidade do dia a dia: “Quando vais surfar, o teu mood, mesmo que o surf não seja brilhante, muda”, continua o surfista e empreendedor. “Estares no meio do mar, em contacto com a natureza, é por si só um elemento de ativação positiva. Ao longo dos anos em que dei aulas de surf, a crianças e adultos, obtive inúmeros feedbacks sobre a maneira positiva como aquela aula de surf foi life changing na vida de determinada pessoa. Posso falar-te de uma participante do nosso primeiro programa, em 2017, que vinha de uma situação complexa e que entrou para a aula com cara de quem acha que vai ‘morrer’ na primeira onda. O momento era claramente de tensão e apreensão. Quando se colocou de pé pensei para mim que era uma ótima primeira onda. Quando regressou para ao pé de mim, o rosto tinha-se iluminado e percebi naquele momento que algo tinha mudado naquela pessoa. Tenho muitas outras histórias semelhantes, mas creio que nenhuma tão forte como esta. Esta pessoa hoje está bem e continua a surfar, encontrou emprego num sítio que gosta e é uma pessoa diferente. Arrisco-me a dizer mais feliz.” Essa participante é Ana Sofia Costa e o emprego num sítio que gosta é a própria Associação Surf Social Wave: “Eu estava mesmo diagnosticada. Estava numa fase de depressão e de ansiedade demarcadas e descontroladas. […] Durante os períodos mais profundos, sentia grande apatia, desmotivação, indiferença, fobia social, perdi um bocado a minha autonomia. Deixei de conseguir sair à rua sozinha, tinha medo de estar sozinha em casa, deixei de conseguir andar de carro sozinha… E isso sempre acompanhado pelo desânimo, sentir que nada me fazia sentido…”, contextualiza. “Quando eu entrei no programa, em 2017, estava num período difícil. Eu comecei a fazer psicoterapia em 2016, a ser acompanhada por uma psicóloga e psiquiatra, também, e ainda fiz medicação durante um mês. Fui trabalhando em vários sítios e entre empregos, tinha períodos em que ficava mais fechada em casa – na verdade a minha falta de trabalho não era tanto por não conseguir arranjá-lo, mas por não conseguir sair de casa para ir à procura. Num desses momentos, fui convocada pelo IEFP para ir assistir a uma apresentação sobre um curso e foi aí que tomei contacto com a Associação Surf Social Wave e com o António [Pedro de Sá Leal]. Estava super nervosa, atrasada, não conseguia estacionar o carro, já estava a chorar com os nervos e quando ouvi a apresentação, senti esperança. E sentir isso, naqueles dias em que a minha cabeça só estava carregada de pensamentos negativos, sentir curiosidade pelo surf, foi o suficiente para querer ir fazer o curso. E era o que eu precisava, eu naquele momento só precisava de sair de casa, e foi muito difícil porque eu sentia muita ansiedade por ter de estar com outras pessoas, então começar a estar fechada numa sala com outras pessoas… Para além do isolamento social, era muito difícil para mim comunicar com os outros, algo que tem a ver com a minha tendência para pensar muito, pensava demasiado sobre aquilo que ia dizer ou o que é que ia ser percebido pelos outros, e isso criava esse medo, essa ansiedade…”

A prática do surf, aliada às sessões de grupo dentro do percurso de psicoterapia que iniciara em 2016, veio ajudar a fazer um shift no mood da jovem, sublinhando que tudo, incluindo as sessões, contribuiu para essa melhoria: “Eu procurei ajuda e tudo foi importante. E o surf foi fundamental. Mesmo. Na minha primeira aula, eu estava em pânico de entrar em pânico. Uma das coisas que acontecia nos meus ataques de ansiedade era escalar para ataques de pânico. O António diz que estavam 50 cm de onda, mas na minha cabeça estava tipo um metro e meio… E eu estava com tanto medo, tão assustada, também depressiva, todo aquele estado e mistura de emoções negativas e, ao mesmo tempo, um bocadinho entusiasmada porque ia fazer uma coisa nova. E o António percebeu, porque a minha cara estava estampada de pânico, a pensar ‘Ai meu deus, eu vou morrer’. E ele agarrou a minha mão e disse-me, ‘Está tudo bem, tem calma’, e agarrou na prancha e empurrou-a numa onda e… eu pus-me em pé. E fui a deslizar durante uns segundos… E o tempo estava cinzento, mas naquele momento, eu garanto-te que na minha cabeça, o céu abriu e o sol brilhou, senti adrenalina, logicamente, e senti alegria, genuinamente alegria, uma coisa que não sentia há muito tempo. E fiquei de tal modo emocionada que me lembro de olhar para a areia e tentar conter as lágrimas, e quando voltei para ao pé do António, estava a sorrir.” O que é que pode ter contribuído para isso? “Vários fatores. Um deles, sem dúvida, o da conquista, mas também porque o surf te ajuda a relativizar o medo. Quando estás a fazer surf, podes estar em situações de perigo. Quando pensas que estás num mar revolto e depois vais para um autocarro, percebes que a noção de perigo é diferente. O surf também tem esta coisa de: tu estás no momento. O teu cérebro pára. Então, naquele momento, pela primeira vez em dias, em semanas, talvez até meses, o meu cérebro parou. E quando estava na água, eu só estava ali. E isso é um alívio, é como respirar. Este foi um momento decisivo.”

Este efeito do surf no cérebro tem tanto de biológico quanto de psicológico: fazer exercício ao ar livre traz mais benefícios para a saúde mental do que a prática do mesmo em qualquer outro sítio, uma premissa válida para o surf, uma modalidade que interage tanto com o corpo como com a mente – o surf, enquanto workout, liberta um cocktail de hormonas de bem-estar para o cérebro, entre elas a adrenalina (aguça o instinto de sobrevivência, incrementando o nível cardíaco, a respiração e o fluxo sanguíneo, ajudando-nos a lidar com situações stressantes), a serotonina (a hormona da felicidade – quando incrementada, reduz o stress e aumenta a confiança), endorfinas (analgésicos naturais do corpo, mascaram o desconforto e a dor e ajudam a ultrapassar situações difíceis, ao mesmo tempo que a sua libertação está relacionada com o estado de euforia) e dopamina (que ativa o lado de prazer e recompensa do cérebro, que nos faz sempre querer voltar para mais). Tchim-tchim, certo? “Podemos sair de uma sessão de surf absolutamente extasiados porque apanhamos a onda da nossa vida, mas também saímos frustrados quando as sessões não correm como desejamos. Fisiologicamente, penso que está ligado com a produção de endorfinas, que resultam de fazermos surf, responsáveis por bloquear a dor e controlar as emoções – devem-se a elas as sensações de prazer associadas à comida, às relações sexuais e ao exercício físico. Psicologicamente, o surf obriga-te a confrontares-te com os teus medos, sendo que quando superas os mesmos, digamos porque surfaste uma onda maior, a sensação de superação é incrível; por outro lado, o surf é uma daquelas atividades em que mesmo que não consigas à primeira, sentes que é possível e por isso voltas sempre até conseguires”, remata Sá Leal.

Outra razão para brindar é a capacidade de estar no momento, estar “in the zone”. Numa altura em que se veneram os detoxes digitais, entrar na água é a aplicação prática dessa teoria. Ali, não há espaço para atualizações de estado ou filtros, e a única story que pode fazer é a da sua mente, que não se consegue desviar do momento presente: “O praticante de surf está focado em ‘apanhar a onda’ que leva a um prazer imediato, quando conseguido. Isto traz a possibilidade de o ‘tempo parar’, não haver horas e a capacidade de concentração aumenta; ali o foco é desfrutar, deixar-se ir – algo muito difícil de conseguir até no dia a dia”, explica Joana Canha. O que não quer dizer que a modalidade confira alguma espécie de imunidade depressiva aos seus praticantes, ressalva a psicóloga, mas pode ser uma ajuda: “Os surfistas também podem sofrer de depressão, mas conseguiram uma maneira bastante inteligente de lidar com a mesma e diminuir o impacto que tem na sua vida. Desenvolvem, de uma maneira muito natural a capacidade de ‘desligar’, evitando o pensamento em círculo (aquele que nunca pára e não permite ter descanso) e conseguem focar-se em mais do que a tristeza e desespero, algo difícil na depressão. Não é uma terapia per se no sentido que não procura a resolução do que levou à depressão (por exemplo), mas atenua os sintomas e permite viver um dia a dia diferente; é frequente o sentimento de terem um escape.” Não é à toa que um pouco por todo o mundo têm surgido projetos que usam o surf como terapia: a International Surf Therapy Organization (ISTO) agrega dezenas de organizações um pouco por todo o mundo que usam o surf como ferramenta terapêutica, e o objetivo é encorajar os profissionais de saúde a prescreverem a Terapia do Surf como uma medida de cuidado de saúde, construindo, em última instância, um currículo aceite nos programas universitários – como uma licenciatura em Terapia de Surf, por exemplo. Em Portugal, a Wave by Wave, entre outras, faz a sua parte para tal. Os fundadores José Ferreira, vice-campeão nacional de surf e com 15 anos de experiência em competição da modalidade, e Ema Shaw Evangelista, psicóloga clínica apaixonada pelo poder transformador do surf, coordenaram, em 2016, o primeiro projeto piloto português em intervenção baseada no surf com populações de risco. Denominado Surf Salva Camp, ao longo de três meses, na Praia de Carcavelos, foram acompanhados 48 jovens institucionalizados da Região de Lisboa e “os resultados permitiram concluir que utilizar o surf como instrumento de intervenção psicoterapêutica pode ser benéfico para o estilo de vida saudável, bem-estar e competências pessoais e sociais em jovens inseridos em contextos de vulnerabilidade psicossocial. Deste estudo resultou a primeira publicação científica em Portugal na área do surf therapy”, diz a Associação, uma vertente que exploramos mais a fundo aqui.

E se dúvidas houvesse sobre a praticabilidade verdadeira do surf enquanto terapia, Ana Sofia Costa dissipa-as: “Não tenho dúvidas nenhumas de que o surf e a continuação da prática me ajudou de forma sistemática. Houve momentos em que parecia que as minhas emoções estavam completamente descontroladas, que eu sentia muito, e tudo, ao mesmo tempo; e havia outros momentos em que parecia que não sentia nada, que às vezes até eram os mais dolorosos. No surf, consegues perceber o que é que estás a sentir. Sentes medo, sentes alegria, sentes frustração… E acho que me ajudou a compreender as minhas emoções e a desbloqueá-las. Eu acho que foi muito terapêutico para mim.” “O surf tem várias características, mas tem também um efeito desbloqueador de emoções que é uma ferramenta poderosa em direção à transformação e à perceção que temos de nós próprios e do nosso potencial”, ratifica António. “Quando te reconheces com as tuas qualidades e defeitos, tornas-te mais disponível para perseguir os teus sonhos. O que fazemos no Programa Surf para a Empregabilidade é incubar e acelerar o processo de procura de sonhos dos nossos participantes.” “Foi um ano de evolução”, relembra Ana. “Não foi de um dia para o outro, foi um ano, e para mim foi muito bom ter sido longo. Uma das coisas que aprendi nas sessões de grupo, também importantes, foi a deixar de usar a palavra doença, porque eu não sou a doença; eu não tenho depressão, eu tenho fragilidades, dificuldades para melhorar e ultrapassar, esse mindset também foi importante. Mas não tenho dúvidas que o surf continua hoje a ser muito importante, para mim. E eu também aprendi, ao começar a fazer surf, que a minha saúde mental e a minha saúde física, e a minha saúde no geral, estão interligadas. E que é um trabalho diário mantê-las. Hoje não sinto esse peso tão grande de ser um trabalho diário, eu já faço as coisas com muito mais facilidade, mas continua a ser um trabalho diário. Se eu ficar muito tempo sem fazer exercício, isso vai afetar efetivamente o meu humor e o meu bem-estar. E perceber isso, perceber que está tudo interligado, também foi, em si, uma grande aprendizagem.” “Penso que é o contacto com a natureza que potencia olhares para o teu interior”, acrescenta António Pedro. “Além, claro, da sensação incrível que é descer uma onda e navegar ao longo da sua parede. Ficas muito tempo com essa sensação de prazer em ti. O mar é o sítio onde sou feliz, que me ensina, me dá prazer e me coloca no meu lugar no planeta.” Joana Canha adiciona aqui uma nova camada de perceção: “Antes do nascimento, estamos em água, passamos nove meses lá. Esse é a nossa primeira casa, o nosso habitat natural no ‘início’. É algo para o qual somos naturalmente atraídos.”

Apesar de todas as benesses que o surf e o mar podem trazer ao estado de espírito de uma pessoa, e a sua influência positiva em estados de depressão, ele não é uma cura. Aliás, falar sobre o poder do oceano e da prática da modalidade não é mais do que listar os seus potenciais efeitos sobre o ser humano, mas todos os seres humanos são diferentes e o surf e o mar não são milagrosos nem o único fator na atenuação de estados de ansiedade. Tudo contribui, nomeadamente o acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Se há algo que estas linhas não querem passar é a validação da premissa de que um surfista não sofre de depressão, até porque a história tem mostrado casos inesperados da doença em praticantes de surf, como a tentativa de suicídio do campeão Sunny Garcia (50 anos), em 2019, ou dos casos mais dramáticos Jean da Silva, o surfista brasileiro que tirou a própria vida em 2017 (tinha apenas 32 anos), ou, mais recentemente, em junho deste ano, o caso do ator Pedro Lima, também ele um amante de ondas. Tinha 49 anos. Mas a não-infalibilidade da modalidade (e do mar) não lhe retira o manifesto poder revitalizante – aliás, há inclusivamente um projeto europeu intitulado Blue Health que tem levado a cabo estudos e pesquisas sobre a forma como os espaços “azuis”, leia-se com proximidade à água, afetam o bem-estar da população. A curiosidade não é à toa: o surf pode não ser a cura da depressão, mas mesmo no caso daqueles que tiraram a própria vida, só os próprios poderiam afirmar quantas vezes é que superaram mais um dia graças a uma surfada matinal. A prova dos nove é experimentar por si próprio: quando fizer o seu primeiro take off, vai passar a querer incorporar a prática como uma espécie de terapia regular. Nem que tenha de se levantar de madrugada. Como eu fiz às 06h30 da manhã, depois de terminar este texto às 03h. Para voltar a olhar para estas linhas com o azul-tranquilidade que merecem – e não o azul-ansiedade. 

*Artigo originalmente publicado na edição Into the Blue da Vogue Portugal, de outubro 2020.For the english version, see here.

Sara Andrade By Sara Andrade

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