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Ericka Hart: "Os negros são forçados a ser ativistas devido a tudo o que temos de suportar"

30 May 2019
By Patrícia Domingues

Quando Ericka Hart nasceu, nasceu ativista. Não saiu literalmente do útero com um punho em riste, mas nasceu negra, queer, sagitariana, com todas as perguntas entaladas na garganta e uma sede de perceber o mundo.

Quando Ericka Hart nasceu, nasceu ativista. Não saiu literalmente do útero com um punho em riste, mas nasceu negra, queer, sagitariana, com todas as perguntas entaladas na garganta e uma sede de perceber o mundo. Ericka nasceu ativista e só o percebeu mais tarde, com um cancro da mama bilateral e um espaço em branco no lugar de respostas. Hoje, como ativista, educadora sexual, modelo e escritora, é ela que as dá.

A história de Ericka Hart parece não ter um princípio, meio e fim, mas se acredita em coisas como destino tudo parece estar interligado. Um dia de 2014, enquanto passeava, o telefone dela tocou. Não eram boas notícias. Depois de ter perdido a mãe aos 13 anos para o cancro da mama, Ericka havia sido diagnosticada com a mesma doença e seria submetida a uma mastectomia. Tinha 28 anos. Dizem os preconceitos sociais que um peito sem mamilos é estranho — mas Ericka não sentiu essa estranheza. Adotou-a, aceitou-a e exibiu-a ao mundo num movimento de topless ativista em editoriais e festivais sem precedentes que pôs as suas mamas nas bocas do mundo. Depois de receber esta atenção, fez o que sempre esteve destinada a fazer: abriu uma conversação sobre cuidados médicos, género, sexualidade e racismo e deu provas de que ninguém tem o direito de definir a que lugares pertencemos ou não.

O spotlight parece não se cansar dela, nem tem motivos para isso. Hoje, ela usa a sua experiência como uma mulher negra queer sobrevivente, a sua plataforma com quase 200 mil seguidores (@ihartericka), a sua carreira com mais de 10 anos e o seu corpo numa batalha de resistência para denunciar a toxicidade das normas sociais e trazer luz aos assuntos que ainda não estão a ser falados — mas deviam.

Em 2014, percebeu que nem o facto de ser uma mulher negra queer, nem a sua vida sexual, eram tidos em consideração no seu tratamento ao cancro. Estamos em 2019. Alguma coisa mudou?

Não, acho que nada mudou. Também acho que o tempo não é um agente de mudança. A mudança vem com ação direta, organização, falar sobre os assuntos e desmantelar sistemas que prejudicam ou perpetuam o prejuízo nos nossos corpos. Quando as instituições médicas não honram o meu corpo porque é negro ou não fazem questões em relação à minha identidade de género e a honram, é mais um exemplo de negligência médica. Estão a olhar para o meu corpo como cancro, apenas, e não holisticamente.

Em muitas entrevistas, falou sobre o mês de outubro, o mês internacional de prevenção de cancro da mama, e a falta de representação. De que forma o cancro deveria estar a ser retratado?

Há uma relação extraordinária com o cancro e com o que a ativista deficiente Stella Young cunhou como “pornografia inspiracional”. A pornografia inspiracional acontece quando olhas para alguém com uma deficiência ou uma doença crónica e tu (uma pessoa com um corpo capaz) lhe atribuis imediatamente atributos heroicos. As pessoas que vivem com cancro não fizeram nada de especial para além de navegar pelo modelo médico de deficiência, irem a um milhão de consultas, terem cirurgia, etc. Eu acho bem que os pacientes de cancro queiram referir-se a si mesmos como heróis ou inspirações, mas quando são forçadas a isso não há grande espaço de manobra para ser de outra forma. Somos forçados 
a ser uma espécie de motivação para que os outros se amem 
a si próprios através da nossa experiência ou estarem gratos porque não têm cancro. Chamar-nos inspirações tem pouco a
 ver connosco e tudo a ver com o desconforto dos outros com
 a nossa existência. Por isso, gostava que o mês de prevenção
 do cancro da mama interrompesse esta narrativa em vez de a utilizar para recolher milhões de dólares que vão para os CEO das organizações de cancro e não para ajudar pessoas com cancro.

Descreve o seu trabalho como “ultrapassando largamente os limiares da positividade sexual”. Quais são os limiares da positividade sexual?

A positividade sexual é a ideia de
 que consideras os teus próprios pensamentos sobre sexo antes de fazeres julgamentos baseados no patriarcado supremacista branco. Consideras todos os ângulos sobre o porquê de alguém preferir algo ou uma identidade de uma forma que pode ser diferente da tua. Quando alguém diz que é “sex positive” fizeram esse trabalho de avaliar os seus valores inerentes. Além dos limiares da positividade sexual significa que avalio raça,
 classe, género e habilidade quando considero sexo e prazer.
 Acho que temos de considerar a nossa positividade tal como
 a dos outros quando pensamos em positividade sexual.


A sua vontade de que ninguém fosse deixado de fora no acesso à informação fez com que começasse a centrar
 os negros jovens queer no seu trabalho. De que forma
 a supremacia branca influencia a nossa visão de sexo
 e sexualidade?

De tantas formas! A supremacia branca
 fez-nos acreditar que os corpos negros eram naturalmente hipersexuais e dessexualizados A supremacia branca tem o
poder de dizer que corpos são desejáveis e os que não são, e os corpos negros não são considerados quando falamos de desejo sob a orientação da supremacia branca. Eles são fetichizados 
e usados, e isto tem uma ligação direta com a propriedade escrava e os seus impactos. Os corpos negros eram usados para promover o tráfico de escravos, e a violação e agressão não eram apenas comuns — eram táticas necessárias para ter uma força de trabalho/subjugação dos negros para que os brancos pudessem permanecer superiores. A forma como os negros se relacionam com as suas sexualidades é relevadora de como
 a supremacia branca tem o seu papel. Durante muito tempo
 e até agora, de certa forma, acredito que não sou atraente até 
ter feito algum tipo de trabalho para alguém. Isto levou muito trabalho até ser desaprendido e não acreditado como verdade.

Adoro a forma como olha para o conceito de amor-próprio. Fala sobre desmantelar o sistema e sobre as conversações binárias em que só podemos amar-nos ou odiar-nos. Por onde podemos começar?

Acho que podemos começar estando com os nossos corpos como eles são. Não acho que as pessoas tenham de amar os seus corpos ou achá-los bonitos. Porquê? Porque nos dizem que devemos amá-los e não odiá-los num mundo que os odeia? Porque é que o ónus está em nós para ter o trabalho de amar os nossos corpos quando recebemos mensagens adversas? Apenas está no teu corpo, é o meu conselho. Está com ele da forma que precisares, nem que seja para te ajudar a navegar neste mundo difícil. Não vou dizer que tens de amar o 
teu corpo ou que esses sentimentos não são fugazes, porque 
são. Gerir os pensamentos enraizados sobre o teu corpo é
 uma prática diária e mais difícil para uns do que para outros.

Sinto-me muitas vezes desconfortável quando descubro nova informação que expõe a forma como fui educada – mas eu sei que esse desconforto é, por si só, um privilégio. Como é viver sempre em desconforto, com o impacto físico e emocional do racismo no seu corpo?

Sinto-me sempre tensa. Fui fazer uma massagem no outro dia e a terapeuta disse-me para relaxar o meu corpo, e quando eu achei que estava relaxada, ela disse-me que não estava. Tive de conscientemente me libertar
do stress que carrego, e eu não estou sempre numa marquise de massagens, por isso o que significa quando não estou? Gostava
de não ter de descrever este sentimento ou o facto de ter impacto diretamente nas minhas células — o que significa que o corpo envelhece de forma mais rápida do que a pessoa, devido ao stress que experiencia. Alguém pode ter 34 anos, mas o seu corpo ter 65. Isto é o que acontece a muitos negros, especialmente mulheres.

Reconhecer o privilégio é apenas o início. A verdadeira conversa deve ser sobre o que fazemos em relação a isso (senão, somos todos cúmplices, certo?). Há alguma possível resposta? Acha que a resposta pode começar com uma pergunta que já fez inúmeras vezes: onde estão os negros?

Acho que os brancos sabem o que tem de ser feito em termos de justiça racial, simplesmente não o querem fazer porque a injustiça racial os beneficia. Reconhecer o privilégio está “na moda” e esse reconhecimento tem de levar as pessoas a fazer alguma coisa em relação a isso e não a usá-lo apenas como tema de conversa. As pessoas têm de usar o seu privilégio de forma a acabar com
a injustiça, reconhecendo que o seu privilégio é insuficiente.
 Se não há negros num cenário ou num escritório, os brancos deviam ir-se embora. Deviam ficar escandalizados tal como se um cão estivesse a ser torturado. O problema é que normalizamos a ideia de os negros não estarem presentes num espaço.

Fala de racismo no sistema médico, mas o racismo está 
por toda a parte. Portugal é, como os EUA, um país racista. Isto também significa que as pessoas não prestam muita atenção a este tema a não ser que se torne visível (como, por exemplo, aparecendo nas notícias). Essa é uma das razões por que põe o seu corpo no centro do seu ativismo, sabendo que dessa forma receberá atenção e que pode redirecionar tal atenção para os assuntos que realmente interessam? O que pode ser feito estruturalmente de forma a que passemos a ver-nos naturalmente uns aos outros?

Acho interessante que a experiência do racismo é que “as pessoas não prestam atenção até que esteja nas notícias” em Portugal, tendo Portugal sido um dos participantes principais no tráfico 
de escravas transatlântico. Será que os imigrantes africanos de Portugal dizem que o racismo é algo que têm o privilégio de não prestar atenção? E as pessoas do Brasil? Quando os brancos dizem que o racismo é algo que não veem porque não estão a prestar atenção — e isto não é feito de forma intencional —, mas a intenção não importa — é porque não têm de prestar atenção ao racismo. Eles beneficiam da sua existência, por isso se fosse prestar atenção e fazer alguma coisa em relação a isso, a sua experiência seria a mesma das pessoas marginalizadas? É mais fácil fechar os olhos quando não tem impacto direto em ti? Os brancos têm de usar o seu privilégio para o ‘bem’ e desenterrar as narrativas que estão escondidas de forma a que não lhes prestem atenção. Precisam de denunciar os sistemas e as instituições que os beneficiam e que os protegem e os mantêm ignorantes em relação às realidades da supremacia branca. É importante que os brancos percebam
 a forma como a supremacia branca os afeta a eles também. Não 
é uma estrutura que é sobre libertação e bondade. É cruel para todos os que têm de navegar nela, é simplesmente mais fácil para os brancos porque estão em vantagem só por serem brancos.

Outra coisa que me chamou a atenção no seu trabalho é a forma como fala da sua vulnerabilidade. Como ultrapassou as suas vulnerabilidades, transformando-as em forças?

Acho que não o fiz. Acho que ser vulnerável é a minha força, sempre fui brutalmente honesta (sou Sagitário). Acho que aquilo que as pessoas veem como vulnerabilidade é a minha honestidade, mas, de facto, ser vulnerável é, na verdade, muito duro para mim.

Num vídeo feito para a Allure, deixou uma 
mensagem poderosa sobre, por vezes, termos 
de nos desmoronar. É importante?

Claro.
 Desmoronarmo‐nos é necessário para que nos curemos.


Sente que nasceu ativista, sendo uma mulher negra 
queer?

Acho que não nasci ativista devido à minha identidade.
 Os negros são forçados a ser ativistas devido a tudo o que
temos de suportar. Não saí do útero com o meu punho no 
ar. Tive de desaprender aquilo que a sociedade me ensinava 
sobre supremacia branca, e ainda o faço. O meu trabalho 
não está terminado — nem o meu, nem o de ninguém.


Houve alguém na sua jornada que lhe tenha dito
 que o negro é bonito?

O meu pai. Os livros que li de Bell
Hooks, Toni Morrison, James Baldwin e Maya Angelou.

E quem foram as pessoas da história negra que 
inspiraram o seu trabalho? E aqueles que inspiram as gerações futuras?

Todos os que mencionei na resposta 
anterior e também Fannie Lou Hamer, Cece McDonald, Elle Hearns, Aaryn Lang, Tracie Gilbert e Cindy Lee Alves.


Sei que sempre pôs muitas questões. De onde acha que 
isso vem? Foi assim que se interessou pela educação sexual?

Oh, sim! Quando as pessoas escondem ou tornam
 a informação misteriosa, quero saber ainda mais sobre isso, e foi precisamente assim que cheguei à educação sexual.


O que aprendeu sobre sexo e prazer depois de estar 
numa batalha contra o cancro e de ver o seu corpo de 
uma forma diferente? Que conselho daria a alguém que esteja a viver um momento semelhante?

Aprendi que as instituições médicas não querem saber do sexo e do prazer, 
que apenas estão focadas numa coisa e que não me deixaram 
ser um ser em todas as dimensões. O conselho que daria a alguém diagnosticado com cancro é para ignorar todos os conselhos não solicitados que toda a gente lhes dá sobre o seu corpo e para fazerem aquilo que as faz felizes! Não precisas
 de ser a inspiração de ninguém. És perfeito tal como és.

Houve algo que disse e que me fez pensar: “a simpatia é discriminatória”. Pode explicar essa ideia?

Sentir pena de alguém só porque tem uma doença crónica ou deficiência é um terreno escorregadio para a discriminação. Como podemos criar um mundo que honre a doença crónica e a deficiência como uma parte da vida e não como uma perturbação da vida?

Li que o Ebony, o seu companheiro, está sempre a dizer para parar de medir as suas palavras e de ter medo de dizer o que a faz a si e a outras pessoas desconfortáveis. Como é que podemos todos trabalhar nesse sentido?

Confiando que aquilo que nos vem à cabeça para dizermos é o que tem de ser dito. Se sair da forma errada ou ofender alguém, pede desculpa. Mas confia no teu instinto!

“Pela primeira vez na minha vida, parecia que pertencia”, disse sobre a sua experiência como educadora sexual em África com o Peace Corps. Foi um momento marcante para si? O que aprendeu com essa experiência e agora que olha para ela com algum distanciamento?

Acho que não disse isso da minha experiência na Etiópia. Ahahah. Bom, parecia que pertencia, mas aprendi que tinha andado a romantizar África como se fosse um país e não um continente. Tive o meu coração partido múltiplas vezes enquanto vivi lá porque ainda carregava a dor de não conhecer a minha linhagem, mas de uma nova forma. Então, mais uma vez, sentia que não pertencia a lado nenhum ou que não tinha um lugar.

 

Realização: Jèss Monterde @ Bernstein & Audriulli. Modelo: Ericka Hart. Maquilhagem e cabelos: Rebecca alexander @ See Management com produtos AJ Crimson e Oribe. Assistente de fotografia: Dennis Tejero. Assistente de realização: Shoji Sano.

Artigo originalmente publicado na edição de maio 2019 da Vogue Portugal.

Patrícia Domingues By Patrícia Domingues

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