Curiosidades   Palavra da Vogue  

Do not disturb: o silêncio como ato de resistência

03 Dec 2025
By Pedro Vasconcelos

Alejandra Velasco fotografada por Juankr e com styling de Caterina Ospina para o The Revolution Issue da Vogue Portugal, publicado em abril de 2023.

Entre notificações, opiniões alheias e ruído digital, redescobrir o silêncio é um gesto radical, um luxo raro.

Comecei a notar em mim uma tendência perturbadora. Mais do que música, passei a encher todos os meus segundos com vozes — podcasts, vídeos, reels, TikToks, youtubers a explicar o mundo em vinte minutos. Se a música ainda inspira o pensamento, a conversa alheia mata-o. Percebi que já não caminhava em silêncio, já não cozinhava em silêncio, já não me deslocava sem companhia sonora. Era como se o ruído tivesse substituído o oxigénio: precisava dele para existir. E um dia, sem planear, desliguei tudo. Foi apenas um gesto, um deslize quase, mas o silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Não pelo que faltava — mas pelo que finalmente se ouvia. Houve um desconforto inicial, como se algo em mim tivesse ficado nu. Descobri que o silêncio é, antes de mais, um espelho. Há nele uma honestidade que nenhuma voz externa permite. Obriga-nos a escutar o que normalmente abafamos com distrações. Percebi, nesse instante, que o meu consumo de ruído era, afinal, uma forma elegante de fuga: uma anestesia auditiva para não lidar com o próprio pensamento. O silêncio não é ausência de som, é ausência de necessidade. E essa ausência é um luxo raro. Vivemos na era do reply instantâneo, do “visto às 10h34”, da urgência como vício. A rapidez deixou de ser eficiência e passou a ser uma espécie de moral contemporânea: quem não reage logo, falha, quem não responde, ofende. O mundo é um fórum permanente onde o valor de uma ideia se mede pela velocidade com que é dita. Há uma moral contemporânea da pressa: estar sempre em emissão é sinal de pertença. E, no entanto, há algo profundamente emancipador em não reagir, em simplesmente deixar o mundo falar e escolher não participar. O silêncio, nesse contexto, é subversão, um pequeno ato de resistência contra a lógica do imediatismo.

As razões para evitarmos o silêncio são-me dolorosamente óbvias, são as consequências que senti assim que desliguei os sons que me enchiam a cabeça todo o dia. O ruído é uma espécie de vício coletivo. Tornou-se a anestesia universal para a ansiedade. Ligamos vozes para não pensar, fazemos scroll para não sentir, reagimos para não parar. Mas o silêncio exige que o movimento se detenha e, ao parar, confrontamo-nos com aquilo que realmente somos. É por isso que o evitamos. O silêncio é exigente, obriga à lucidez. É mais fácil manter o volume alto do que suportar a clareza que o silêncio traz. Aos poucos, comecei a praticar o silêncio como se fosse um exercício. Primeiro no caminho para o ginásio, depois das refeições, depois nas conversas em que já não sentia vontade de acrescentar nada. Descobri que o silêncio não é vazio, é forma. Assim como na música o espaço entre as notas cria a harmonia, na vida o espaço entre as reações cria o equilíbrio. O silêncio é o respiro que dá sentido à palavra. A propósito de fundamentar estas minhas descobertas metafísicas, deparei-me com a peça 4’33”, do compositor clássico John Cage. A peça, que tem a duração de quatro minutos e trinta e três segundos, é nada mais que silêncio. Há algo de tão artístico no silêncio.

Há quem me acuse de pensar demasiado sobre tais questões. Não nego a validade destas críticas. As tempestades manifestam-se nos meus copos de água antes de sequer poder dar um golo. Mas, mesmo com a noção de que enveredo por caminhos complicados, vou em frente. Comecei a pensar no silêncio como luxo. Não como luxo no seu termo de Moda, ou até mesmo económico, em que este se equipara a quantias elevadas, mas como luxo enquanto ausente de tais limitações monetárias. Durante décadas, associamos o luxo ao excesso. Hoje, o verdadeiro luxo é o espaço: o intervalo, o tempo sem interrupções, a previsibilidade num mundo que se alimenta do caos. O luxo emocional é a serenidade. Não é poder comprar, mas poder desligar. É o privilégio de não precisar de estar sempre a provar que se está vivo. Tocamos nesta previsibilidade. Numa era em que o vício de dopamina já não é sequer um problema, apenas mais uma piada apocalíptica do estado em que chegámos, a previsibilidade é cada vez mais interessante. A calma, que antes via como tédio, é agora o último sinal de sofisticação. O equilíbrio, que parecia morno, revela-se revolucionário. Vivemos tempos tão excitados que o simples ato de estar tranquilo tornou-se um gesto político. A serenidade é uma forma de poder. Saber que o dia seguinte será igual ao de hoje (e que isso não é prisão, mas liberdade) é uma espécie de luxo emocional que o mundo moderno tenta constantemente desvalorizar. Mas quem conhece o silêncio sabe: o drama é um vício, e o desinteresse, uma forma de maturidade.

Descobri que o silêncio não é vazio, é forma. Assim como na música o espaço entre as notas cria a harmonia, na vida o espaço entre as reações cria o equilíbrio. O silêncio é o respiro que dá sentido à palavra.

Chegar aos meus 26 anos permitiu-me uma maturidade emocional que pensava impossível. Se antes perseguia todas as noites, todos os prazeres que poderia alcançar, agora vejo-me a ignorar este instinto. O desinteresse deixa de ser frieza e torna-se autoconhecimento. Há uma altura na vida em que se percebe que já não é necessário defender todas as ideias, nem participar em todas as conversas, nem responder a todas as provocações. E que a paz interior vale mais do que a vitória numa discussão. A maturidade é o momento em que deixamos de precisar de intensidade para nos sentirmos vivos. Que libertação imensa há em não ter histórias para contar. Lembro-me de observar um grupo de amigos num jantar recente: todos a falar em cima uns dos outros, gargalhadas altas, interrupções constantes, o ritual moderno de competir por atenção. Não o digo de forma derrogatória, amo os meus amigos e o caos que a sua companhia me traz, mas, a propósito deste artigo, decidi ausentar-me da participação e, enquanto observador, notei algo engraçado. Havia algo quase coreográfico naquele ruído, uma espécie de dança sonora onde o silêncio era proibido. E percebi que, em muitos contextos, calar-se é quase uma forma de desaparecimento. Mas há uma beleza em desaparecer. Há uma elegância em estar presente sem precisar de ocupar espaço. Quando me calei, quando me contentei em observar, tornei-me invisível naquela mesa. Até mesmo o ato de participação passiva é revolucionário.

Num mundo que lucra com a nossa inquietação, que nos convida a consumir, a comprar como alternativa a estarmos calmos, parar é mais necessário do que alguma vez foi. As indústrias dependem das nossas ansiedades: precisam que desejemos mais, que compremos mais, que sejamos mais. O silêncio é perigoso porque quebra o ciclo. É uma recusa à lógica do estímulo constante. E há ainda o tédio, essa palavra que o século XXI transformou em ofensa. Tornámo-nos tão dependentes do estímulo que já não sabemos o que fazer com o tempo morto. Mas o tédio é fértil. É nele que o pensamento amadurece, que as ideias ganham forma, que a mente se repara. Quando não há drama, há espaço para respirar. E talvez seja isso que mais falta nos faz: o espaço. Na era das redes sociais, acreditamos que o estatuto se mede em visibilidade. Hoje, os verdadeiros privilegiados são os que podem desaparecer. Os que não precisam de publicar, de justificar, de explicar. O silêncio é o novo símbolo de poder. Quem pode calar é quem já conquistou o essencial. Há uma força enorme em não precisar de dizer nada. É uma forma de presença mais sólida, mais segura. A certa altura, o silêncio deixou de ser apenas ausência de ruído e tornou-se linguagem. Um modo de estar no mundo. Comecei a perceber que a vida ganha outra textura quando se retira o som de fundo. As cores parecem mais nítidas, o tempo desacelera, os gestos ganham intenção. Há beleza em não preencher tudo. Há paz em não reagir a tudo. Há elegância em deixar o mundo correr sem necessidade de o acompanhar.

Penso, às vezes, no que aconteceria se o mundo inteiro se calasse por um instante. Tivemos um amuse bouche dessa possibilidade em 2020, mas claro que não intencionalmente. Aqui refiro-me a um silêncio que não é sinal de colapso, mas de escolha. Nenhum som de notificações, nenhum motor, nenhum scroll nervoso, apenas a pausa sincronizada de milhões de pessoas a não fazer nada. O silêncio coletivo como um reset global. Talvez o tempo voltasse a andar no seu ritmo natural. Talvez descobríssemos que o mundo não precisa de tanto movimento para continuar a girar, que a vida não se desmorona quando deixamos de a narrar. Imagino esse segundo suspenso, como se se desligassem todas as luzes no meio da noite. Até em Lisboa, as estrelas mais ténues seriam visíveis, até a respiração alheia se tornaria aparente. O silêncio não é o oposto do viver, mas o seu sinónimo. 

Originalmente publicado no The Art of Living, a edição de novembro de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.

Pedro Vasconcelos By Pedro Vasconcelos
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