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O reality check (pertinente) de Danae Mercer

16 Sep 2020
By Mónica Bozinoski

Entre poses e ângulos, as imagens que vemos nas redes sociais são uma versão filtrada da realidade, mas há quem esteja a expô-la como ela realmente é. A Vogue conversou com Danae Mercer sobre a importância de mudar a narrativa sobre os nossos corpos e normalizar as chamadas “imperfeições.”

Entre poses e ângulos, as imagens que vemos nas redes sociais são uma versão filtrada da realidade, mas há quem esteja a expô-la como ela realmente é. A Vogue conversou com Danae Mercer sobre a importância de mudar a narrativa sobre os nossos corpos e normalizar as chamadas “imperfeições.”

English version here.

© Instagram.com/danaemercer
© Instagram.com/danaemercer

Celulite, estrias, barriga inchada, peito descaído, braços flácidos, gordura à espreita por baixo do soutien e nenhum thigh gap à vista. Podíamos continuar a enumerar todas as características “erradas” que num momento ou outro quisemos mudar na nossa aparência física, mas preferimos seguir o exemplo da jornalista, criadora de conteúdos e ativista de amor-próprio Danae Mercer e olhar para elas como aquilo que realmente são: partes verdadeiras, reais e normais dos nossos corpos. Das mensagens de aceitação aos lembretes diários de body positivity e self love, das conversas honestas sobre distúrbios alimentares e diet culture à desmistificação de que a saúde e a felicidade não são sinónimas de um determinado número na balança, do levantar da cortina que tantas vezes separa as redes sociais da realidade às fotografias e vídeos que mostram a forma como os ângulos, as poses e as luzes são usados para criar uma imagem dita “perfeita”, entrar no Instagram de Danae Mercer é entrar num mundo onde a realidade sem filtros é uma realidade de esperança, de normalização, de otimismo. Uma realidade onde a nossa aparência física é bonita, tal e qual como ela é. Uma realidade onde o nosso corpo não define quem somos. Uma realidade onde as nossas “marcas” não definem o nosso valor. O veredicto? Tal como a própria escreve numa das suas publicações, “nasceste para ser real, não para ser perfeita.” 

Como é que tudo começou? O que é que a inspirou a mostrar este lado mais cru de si mesma e, consequentemente, de muitas outras mulheres?

Comecei há pouco mais de um ano. Antes disso, os conteúdos que estava a criar para as minhas redes sociais eram conteúdos tradicionais de fitspo [abreviatura de fitness inspiration] e de viagens de luxo. Comecei a sentir-me muito desconectada porque sabia o trabalho que acontecia nos bastidores, não era quem eu sou. Estas imagens pareciam perfeitas e sem esforço, mas na realidade havia muita coisas que acontecia para que assim fosse. Nessa mesma altura descobri que existia uma artista chamada Sara Shakeel que tinha feito uma série [de imagens] de estrias com glitter. Quando vi um dos trabalhos dela, a forma como eu olhava para o meu próprio corpo mudou instantaneamente. Foi algo verdadeiramente repentino. Comecei a pensar que talvez existisse alguma coisa aqui, que talvez fosse possível ajudar-me a mim mesma e a outras mulheres a mudar a forma como olhamos para esta concha que nos envolve. 

Fale-nos da sua relação com a imagem corporal, o body positivity e o amor-próprio. Porque é que é tão importante para si?

Tive um distúrbio alimentar e passei tantos anos a odiar tanta coisa no meu corpo, ou a sentir-me desconfortável na minha própria pele, a fazer coisas como ir à praia e tapar o meu corpo ou olhar para o espelho e criticar-me de forma negativa. Penso que só nos meus trintas é que comecei a aceitar aquilo que sou, e até a celebrar aquilo que sou. Isso só aconteceu quando comecei a mudar os media que consumia, quando comecei a expor-me a corpos mais diversos, a vozes mais diversas, e a perceber que as coisas que aprendemos enquanto mulheres, todas estas coisas que são defeitos ou que estão erradas em nós, na verdade não o são. Não o são, são tão normais. Basta olharmos para a celulite, por exemplo. Mais de 80% das mulheres têm celulite. Mais de 80%. Quem é que decidiu que a celulite era uma coisa má? É por isso que é tão importante para mim fazer o que faço, partilhar a forma como me sinto em determinado dia, alguma dificuldade que esteja a experienciar ou algo que vai na minha cabeça. É muito pessoal e ajuda-me a sentir mais forte e corajosa. 

Há poucos meses partilhou um vídeo onde contava a sua experiência pessoal com distúrbios alimentares. Sente que estes ainda são um tabu na sociedade, um motivo de vergonha?

Oh, massivamente. Tenho um grupo no Facebook e muitas das mulheres que fazem parte dele partilham coisas umas com as outras que não partilhariam publicamente, e que certamente não partilhariam no Instagram. Muitas dessas partilhas são sobre distúrbios alimentares e imagem corporal. Penso que os distúrbios alimentares, e a saúde mental em geral, ainda são um grande tabu. Não falamos sobre muitos dos problemas que acontecem “aqui em cima”. Não temos problema nenhum em dizer que partimos alguma coisa ou que fomos ao médico, mas quando o tema é o nosso cérebro a coisa fica um pouco mais, “Uh, não”, como se fosse um segredo. O perigo disso é a vergonha e o secretismo destas doenças, que não só as potenciam como pioram tudo. Em contrapartida, quando as trazemos cá para fora, quando lhes apontamos um holofote, começamos a perceber que não é motivo de vergonha, que não estamos sozinhas, que temos apoio, que somos amadas, que existe ajuda. Adorava que isto fosse mais normalizado. 

Como é que podemos chegar a essa normalização?

Penso que fazer aquilo que estás a fazer agora, a fazer perguntas sobre isto, a abrir uma plataforma onde as pessoas podem falar, se se sentirem prontas para falar. A minha mãe faleceu quando eu era muito nova, tinha 19 anos, e durante muito tempo as pessoas não me faziam perguntas sobre isso. Mas eu queria falar. O que acontecia era que as pessoas não me perguntavam. De certa forma, penso que os distúrbios alimentares são um pouco assim. Tu queres partilhar, tu queres sentir-te vista, tu queres sentir-te ouvida. Penso que passa por criar espaços seguros onde as mulheres possam falar sobre isto, e penso que vai ser preciso agitar as coisas ao ponto de os professores entenderem, de os pais entenderem, porque de facto é muito comum. Não precisas de ir para o extremo das perturbações alimentares, basta olhares para as estatísticas, para o número de mulheres que já seguiram dietas, que já saltaram refeições ou que ingeriram álcool sem comer, coisas que realmente não estão bem. Porque é que normalizamos isto e não normalizamos as discussões sobre aquilo que se passa no nosso cérebro? 

Para além do conteúdo que cria no seu Instagram, a Danae é também jornalista. Sente que a perspetiva dos meios de comunicação está a mudar?

É uma boa pergunta. Definitivamente, penso que vejo uma mudança nos novos media, como nas redes sociais, no sentido em que as pessoas estão a normalizar diferentes corpos, diferentes conversas, distúrbios alimentares, saúde mental, ansiedade, conversas sobre raça. Vemos uma grande mudança aí. Com os meios de comunicação tradicionais, não sei se posso dizer que já tenha visto. Penso que é melhor agora do que há dez ou 15 anos, mas acho que vai demorar algum tempo até que aquilo que vemos nas redes sociais chegue aos meios que a pessoa comum consome. Ainda vemos os tablóides com imagens de celebridades com celulite na capa, mas não vemos o tipo de conversas genuínas e abertas sobre saúde mental.

E durante a quarentena observámos muitas mensagens tipo gatilho, desde o medo de ganhar peso à pressão de praticar mais exercício físico ou comer menos.

Sem dúvida. Assim que a pandemia e a quarentena começaram, a conversa mudou completamente, e mudou de forma tão acentuada para o tema das mulheres ganharem peso. E não sei se te recordas disto, mas no primeiro mês da quarentena existia uma série de memes a circular com “o eu pré-quarentena e o eu pós-quarentena”, sendo que o depois era sempre uma mulher mais pesada. Penso que isto é revelador do caminho que ainda temos de percorrer com esta conversa sobre peso. Apesar de estarmos a ver corpos diferentes nos media e anúncios publicitários com modelos plus-size, apesar de estarmos a ver mudanças a esse nível, no fim do dia, quando confrontados com uma pandemia, a conversa não deixou de desviar para uma crítica negativa dos corpos das mulheres. Para mim, isto só revela o trabalho que ainda precisa de ser feito. 

Falando do seu trabalho em particular: sente que as mulheres se aceitam mais a si mesmas quando a começam a seguir e a interagir com a comunidade?

Sim, acredito que sim. Penso que não é bem de mim, eu só lhes estou a dar as ferramentas e a mudar as lentes através das quais elas se vêm a si mesmas. Elas é que fazem aquele trabalho interior mais difícil. Mas sim, recebo tantas mensagens incríveis de mulheres que usaram um biquíni pela primeira vez, ou que vestiram calções pela primeira vez, ou que se olharam ao espelho. Recebo algumas mensagens de raparigas com distúrbios alimentares que me dizem coisas como, “Ok, hoje não ia comer, mas agora vou comer.” Tive esta professora que tinha uma aluna que começou a olhar para o seu corpo de forma negativa, e a professora enviou-lhe o meu perfil, e depois os alunos enviaram o meu perfil, e a professora contou que isso mudou o tom da conversa. No fim do dia, não estou a fazer nada groundbreaking, estou só a mostrar um corpo feminino como ele é. Mas a comunidade, a necessidade e o desejo disto, penso que isso é que é realmente incrível. Espero que as pessoas saiam a sentirem-se melhores consigo mesmas. 

Um dos temas que aborda é a dicotomia Instagram versus realidade, e o papel que o ângulo certo e a luz certa têm nas imagens que vemos. Pensando nas mulheres mais novas, que talvez não percebam aquilo que uma imagem dita “perfeita” esconde, tem tido a oportunidade de interagir e conversar com elas?

Sim. Muitas das mulheres que me seguem são jovens e adolescentes. Algumas são vítimas de bullying na escola, outras têm dificuldades em aceitar os seus corpos ou estão a lidar com distúrbios alimentares. Sinto-me muito grata sempre que recebo uma mensagem delas, e frequentemente é para dizer obrigada, para dizer que isto mudou aquilo ou que isto as fez sentir melhor com aquilo. É estranho falar sobre isto porque não quero que pareça um, “Oh, mudei estas vidas todas”, porque não sinto que tenha sido eu a fazer isso. Penso que estou mais a ajudá-las a perceber que elas são normais, e depois elas mudam, elas fazem o trabalho. É essa a minha esperança, espero ajudá-las a sentirem-se um pouco mais normais. 

A verdade é que somos ensinadas a ver a magreza como sinónimo de saúde e felicidade, e o oposto como falta dela. Isto é algo que a Danae também está a mudar com a sua narrativa. Como é que se libertou dessa ideia e dessa pressão?

Penso que tens toda a razão. Alimentam-nos com estas ideias desde o momento em que somos miúdas, com a ideia de que o objetivo é sermos magras, e isso é muito errado. Cada corpo é um corpo. A tua estrutura óssea vai ser diferente da minha, diferente da dele, e diferente da dela, e o nosso peso saudável também vai ser diferente. Sendo eu alguém que já levou a magreza a um extremo, posso dizer que era incrivelmente pouco saudável, o meu cabelo chegou mesmo a cair, mas estava a ser recompensada por isso. Há algo de muito errado nisto, há algo de muito errado nesse objetivo. Para mim, afastares-te desse objetivo é mudares aquilo a que aspiras. A menos que esteja a trabalhar com um médico, acredito que nenhuma mulher precisa de uma balança. Diria para te livrares dela, e diria para olhares para objetivos de saúde ao invés de somente para objetivos estéticos. Quer dizer, não há nada de errado em ter um elemento estético nos teus objetivos, não há nada de errado em querer definir o traseiro ou os abdominais, mas foca-te na saúde que está para além disso. Em correr mais rápido, em levantar mais pesos, em sentires a tua mente mais calma. Foca-te na saúde, não só na aparência, não só no físico. Para mim isso é uma transformação enorme e muda a conversa por completo. 

© Instagram.com/danaemercer
© Instagram.com/danaemercer

No que toca ao body positivity e à imagem corporal, quais são algumas das suas esperanças futuras?

Espero que as mulheres, as jovens e as adolescentes comecem a sentir-se mais normais. Penso que o amor-próprio é um grande pedido e parece um palavrão, quando olhas para o espelho e pensas, “Sim, sim. Sim, sim, sim.” Penso que olhar para o espelho e pensar, “Ok, esta sou eu. Eu aceito isto”, é um objetivo muito mais acessível, e eu adoraria isso. Ao invés de se criticarem negativamente sempre que olham para os seus próprios corpos, adoraria que as mulheres sentissem, “Ok, esta sou eu”, que sentissem esse tipo de autoaceitação. E para as gerações mais novas, espero que cresçam mais conscientes do que nós crescemos, que olhem para estas imagens e que tenham as ferramentas para perceber que nem tudo é aquilo que parece. Isso é verdade para as imagens, para os vídeos e para a forma como as pessoas apresentam as suas vidas. Espero que tenham um pouco mais de cuidado e de consciência, e que não se destruam a si mesmas por não irem ao encontro disso.

 

Entrevista originalmente publicada no Hope issue da Vogue Portugal.

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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