Beleza   Tendências  

4:20, hora de acordar

21 Feb 2020
By Mónica Bozinoski

No último ano, a indústria da Beleza parece ter descoberto uma nova estratégia de comunicação: a cultura das drogas. Mas quais são os perigos de associar palavras como erva e cocaína a cuidados de pele ou maquilhagem? A Vogue investiga.

No último ano, a indústria da Beleza parece ter descoberto uma nova estratégia de comunicação: a cultura das drogas. Mas quais são os perigos de associar palavras como erva e cocaína a cuidados de pele ou maquilhagem? A Vogue investiga. 

Estávamos no pico do verão quando, de mansinho e de surpresa, a marca Milk Makeup chegou a Portugal trazendo os seus já famosos sticks coloridos para o rosto – uns para hidratar, uns para tonificar, uns para colorir e outros para iluminar. Com a aterragem silenciosa daquele que é um dos nomes de culto na indústria da Beleza atual, chegaram também três produtos da linha Kush: uma máscara de pestanas, um gel translúcido para as sobrancelhas e um bálsamo labial, todos eles com óleo de sementes de cannabis sativa (o nome científico da planta da canábis) na lista de ingredientes.

Se tivermos em conta que 2019 foi várias vezes descrito como o ano em que a indústria da Beleza ficou “obcecada” com o CBD – ou seja, com o canabidiol, um composto nas diferentes variedades de canábis que se transformou, no passado ano, num dos ingredientes mais buzzed da Beleza –, não é surpresa que a linha Kush (sendo que kush é uma palavra usada para fazer referência a uma variedade da canábis) exista. Aliás, está longe de ser o único exemplo de como o CBD tem vindo a dominar a indústria – marcas como Kiehl’s, Herbivore Botanicals, Eos, The Inkey List ou Malin + Goetz têm produtos nos quais o derivado da canábis é o ingrediente estrela, enquanto o site CultBeauty tem uma página de tendências inteiramente dedicada à Cannabis & CBD Beauty com o desejável hashtag #CultBeautyTrendWatch. Mais do que isso, a agência de marketing digital e media Stella Rising prevê que, no espaço de dez anos, a beleza com CBD atinja os 25 mil milhões de dólares a nível global, significando que os cuidados de rosto com CBD acumulariam 15% do mercado total de skincare nessa altura. Este não é o único dado do relatório publicado pela empresa nova-iorquina para o qual vale a pena olhar: nos primeiros três meses de 2019, a quantidade de pesquisas online referentes a produtos de beleza com CBD registou um crescimento de 370%, enquanto o lançamento de cuidados de rosto com óleo de sementes de cannabis sativa cresceu de 0,02% em 2015 para 1,8% em 2018. Mas, se o ingrediente, os seus prometidos efeitos e a sua crescente popularidade na indústria parecem algo inofensivo à primeira vista, a forma como algumas marcas o comunicam é uma história totalmente diferente. 

Voltemos à Milk. Se entrar no site da marca nova-iorquina e explorar a página dedicada à máscara de pestanas Kush High Volume Mascara, os seus olhos serão certamente confrontados com alguns sinais de alerta. Comecemos pelo duplo significado que a palavra high, quando antecedida pela palavra kush, pode ter – estaremos a falar de uma máscara que dá um elevado volume às pestanas, ou de uma máscara de pestanas que nos deixa on a high (o estado em que uma pessoa fica quando consome drogas recreativas)? Depois, vem a expressão “one hit for high volume” – numa tradução livre, “uma passa para um volume elevado” – e os trocadilhos “puff puff brush” (no sentido lato, “bafo bafo pincel”) e “naturally lit” (à letra, “naturalmente aceso”), que fazem referência ao pincel e à fórmula do produto. Se há quem diga que tudo isto é uma inteligente forma de comunicar um produto com óleo de sementes de cannabis sativa para a Gen Z e os Millennials (segundo o relatório da Stella Rising, são as duas faixas mais interessadas em produtos com CBD), há quem diga que não passa de uma clara e ofensiva glamorização da cultura das drogas na indústria da Beleza. É difícil negar que os sinais desta glamorização existem.

No Instagram @milkmakeup, os produtos da linha Kush são frequentemente retratados com sombras verdes e imagens de plantas que, inevitavelmente, lembram a da canábis. Mas um dos posts que mais backlash custou à marca foi um onde se viam apenas pequenos saquinhos de plástico com a inscrição 4:20 (uma espécie de código universal que faz referência ao consumo de canábis) a vermelho. “Desiludida por ver a vossa marca a usar este tipo de imagens como forma de lucrar. Estes tipos de saquinhos são geralmente usados para drogas pesadas, não para a canábis. Já é suficientemente difícil quebrar o estigma de que a canábis não é uma droga com efeito gateway e que não está no mesmo nível que outras substâncias. Podem por favor ser um pouco mais responsáveis? Enquanto uma das primeiras empresas mainstream a usar canábis nos vossos produtos, vocês têm a oportunidade de fazer melhor.” O apelo foi feito por uma seguidora no Instagram e, um dia depois, o post em questão estava no Instagram @esteelaundry – uma comunidade anónima que está para a indústria da Beleza como o Diet Prada está para a indústria da Moda. “Sabem o que é que tem que acabar? Usar drogas para glamorizar produtos de beleza. Amirite, #Laundrites?”, escreveu o coletivo nessa mesma publicação, que compilava uma série de mensagens recebidas pela equipa Estée Laundry, com a qual a Vogue entrou em contacto para falar sobre o tema neste artigo, mas não obteve resposta até à data de publicação. “Por favor mantenham o meu anonimato. Vou falar sobre coisas um pouco intensas, mas algo me diz que preciso de dizer alguma coisa sobre este assunto. Também vos queria agradecer. Sinto-me muito parva por ter comprado aquele cooling stick azul da Milk ainda há uns dias, mas agora que vejo o quão imprudente é a marca vou devolvê-lo. 

MAS SE O CBD PARECE ALGO INOFENSIVO, A FORMA COMO ALGUMAS MARCAS DE BELEZA O COMUNICAM É UMA HISTÓRIA TOTALMENTE DIFERENTE. 

Eu cresci num lar com um pai que consumia abusivamente cocaína e álcool. Quando eu era nova (4-6 anos) encontrava saquinhos como estes no nosso sofá. A minha mãe descobriu que eu andava a encontrar estes sacos e ficou surpreendida por não encontrar restos de canábis neles. Em vez disso, encontrou resíduos de cocaína e foi assim que ela descobriu que o marido dela era toxicodependente. Fiquei profundamente incomodada quando vi esta publicidade. Eu cresci num lar destruído onde as drogas eram uma constante que arruinou a minha família (...) O facto de a Milk fazer uma publicidade como esta é altamente irresponsável e perigoso!”, podia ler-se numa das muitas mensagens recebidas pela Estée Laundry. Apesar desta publicidade problemática, a Milk está longe de ser a única marca de beleza a propagar um discurso de glamorização deste género. Como apontou Elizabeth Bennett num artigo publicado na Refinery29, “a marca de culto de bálsamos labiais Eos teve uma ação promocional para o 4/20 – um evento anual celebrado no dia 20 de abril –, com Happy Herb e Baked Brownie, duas edições limitadas e inspiradas no sabor da canábis. No início de 2019, a marca de maquilhagem Hard Candy lançou a Look Pro! Smoke Out, uma paleta com 15 tons de sombras esverdeados, cada uma delas infundida com óleo de canábis, e a Herbivore Botanicals usou um imaginário fortemente relacionado com a canábis no Instagram para promover o seu Emerald CBD Oil.”

Ainda assim, e apesar de todas elas serem altamente problemáticas, uma das mais impressionáveis é a máscara de pestanas Lash Coca!ne da alemã Svenja Walberg – numa imagem publicada no Instagram da marca vemos uma modelo segurar no produto numa mão, e numa nota de um dólar enrolada na outra, enquanto esta aponta para uma risca de pó branco na zona inferior do olho. É o tipo de comportamento que muitos intervenientes da comunidade Estée Laundry denominaram como irresponsável, desnecessário, deplorável e particularmente perigoso para as camadas mais jovens – mas não é um comportamento totalmente novo na indústria da Beleza.

“Como qualquer tendência, a glamorização das drogas por parte de marcas de beleza é uma prática que já vimos anteriormente”, defendeu Bennett no mesmo artigo da Refinery29. “A indústria da Beleza tem uma relação de longa data – ainda que seja on e off – com a cultura das drogas; o exemplo mais óbvio que me vem à cabeça é o heroin chic: o look pálido, magro e grungy tornado famoso por Kate Moss no início dos anos 90. Durante esse período, marcas em tempos indie como a Urban Decay surgiram no mercado, contribuindo para uma abordagem alternativa aos produtos das marcas de beleza clássicas.” E continua: “Esta romantização do consumo de drogas também já causou alguma controvérsia. Em 2011, um anúncio publicitário do perfume Belle d’Opium da Yves Saint Laurent foi banido no Reino Unido pela Advertising Standards Authority porque ‘as atitudes da mulher simulavam o consumo de drogas.’” Já em 2014, uma petição começada por Maurah Ruiz no Change.org exigia que a Urban Decay repensasse o nome Druggie, escolhido para um dos tons da paleta de sombras After Dark Eye Shadow. “Não sei se estão cientes disto, mas, em 2014, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças reportaram dados sobre mortes relacionadas com o consumo de drogas. Foram 47.055 mortes causadas por overdose, 18.893 por analgésicos farmacêuticos, e 10.574 por overdose de heroína. (...) Todas estas pessoas que perderam as suas batalhas contra a dependência são frequentemente referidas como druggies, e vocês escolheram dar esse nome a uma das vossas sombras de olhos.” 

Quando a cultura druggie é usada como “estratégia” para vender máscaras de rosto em stick, bálsamos labiais ou paletas de maquilhagem, é difícil virar a cara e olhar e assumir que esta glamorização não passa de um trocadilho de palavras para chamar a atenção de uma geração mais liberal do que nunca. Quando os efeitos do consumo de drogas resultam em cenários tudo menos glamorosos – da morte à criminalização, tantas vezes relacionada com questões sérias de privilégio e raça –, é difícil justificar que o mesmo continue a ser usado por uma indústria que consegue ser criativa de muitas outras formas. De uma indústria que não precisa de recorrer à tragédia e à controvérsia para prosperar. Quando os consumidores exigem respeito, sensibilidade e bom senso das marcas e dos seus produtos, talvez seja boa ideia mudar de ideias e pôr um ponto final nesta relação tóxica. 

Artigo originalmente publicado na edição de janeiro 2020 da Vogue Portugal.

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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