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Ways of seeing: o corpo como objeto

29 Mar 2022
By Ana Murcho

Onde todos veem um corpo, alguns veem um objeto.

Onde todos veem um corpo, alguns veem um objeto. 

Fotografia de Enes Güç e Evelyn Bencicova.
Fotografia de Enes Güç e Evelyn Bencicova.

"No início dos meus vinte anos, jamais me ocorreria que as mulheres que obtiveram poder à custa da sua beleza ficassem em dívida para com os homens cujo desejo lhes concedia esse poder em primeiro lugar. Esses homens eram quem tinha o controlo, não as mulheres que o mundo bajulava. Enfrentar a realidade da dinâmica em jogo teria significado admitir quão limitado era realmente o meu poder — quão limitado é o poder de qualquer mulher quando ela sobrevive e inclusivamente tem sucesso no mundo como uma coisa que deve ser tida em conta.” É assim que  Emily Ratajkowski, modelo, cuja participação no videoclipe da música Blurred Lines (2013), de Robin Thicke, a catapultou para a fama planetária, analisa a loucura que foram os seus últimos dez anos, depois de meio mundo se “apaixonar” pela mulher que sorria no ecrã, com um corpo de cortar a respiração.

“Eu não tinha qualquer poder real como a rapariga nua a dançar no seu vídeo musical. Eu não era mais do que a manequim contratada.” As confissões são retiradas do livro My Body, lançado em 2021, que serve para pôr um ponto final na ideia de que Emily é apenas um corpo — e que esse corpo, esse “objeto” à custa do qual tem enriquecido, é algo que quer reconquistar para si própria. “Senti-me objetivada e limitada pela minha posição no mundo enquanto símbolo sexual. Capitalizei o meu corpo dentro dos limites de um mundo cis-hétero, capitalista e patriarcal, um mundo em que a beleza e o sex appeal são valorizados unicamente através da satisfação do olhar masculino.” O desabafo foi recebido com aplausos, mas há quem critique a autora por se fechar em argumentos solipsistas. Uma coisa é certa: a objetificação do corpo feminino é um facto, e My Body serviu para a trazer de novo para a mesa.

As mulheres são ensinadas a aceitar que, mais cedo ou mais tarde, se devem tornar objetos passivos do olhar masculino. A que é que se deve esta objetificação do corpo feminino? Lançámos a pergunta a Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, coach e fundadora da Academia Transformar. “Felizmente este padrão de educação está em transformação. Esses ensinamentos clássicos e tradicionais vêm de doutrinas de religião e de sociedade em que a mulher deveria assumir um papel secundário na vida de uma forma geral. Deveria aceitar as escolhas da sua família, do homem com quem casaria, deveria comportar-se como lhe diziam, deveria agradar ao outro, deveria ser fértil e cuidar dos seus filhos. A objetificação do corpo feminino foi, assim, uma consequência da objetificação geral e do lugar passivo e desprovido de liberdade individual que a mulher ocupou durante muitos anos. Nas últimas décadas assistiu-se a um movimento de libertação, individualização e empoderamento feminino, em que nem a mulher enquanto pessoa, nem o seu corpo, são expectáveis de ser objetos passivos do olhar masculino.”

"A objetificação do corpo feminino foi, assim, uma consequência da objetificação geral e do lugar passivo e desprovido de liberdade individual que a mulher ocupou durante muitos anos." Filipa Jardim da Silva

Ainda assim, existe um certo constrangimento não só com o poder do corpo feminino, como relativamente à ideia de que um corpo nu, no geral, é ofensivo, ou até diabólico. “São muitos séculos de crenças limitativas e de ideias proliferadas à boleia de doutrinas religiosas, de estilos de educação e de condutas sociais, em que a exposição do corpo feminino sempre foi considerada incorreta ou inaceitável, sinal de vaidade ou de falta de pudor e credibilidade, até por parte de uma mulher. Se, por um lado, o corpo feminino sempre foi mais explorado e até apreciado de um ponto de vista artístico, também sempre foi mais sujeito a comentários, críticas e estereótipos mais acentuados. Estas heranças prevalecem até hoje. O certo e o errado, o bonito e o feio, o harmonioso e o assimétrico acompanham o olhar com que a mulher olha para o seu próprio corpo e com que a sociedade, sobretudo ocidental, olha para o corpo feminino.”

De facto, ainda não somos capazes de libertar o pensamento de julgamentos quando observamos um nu. Mais ainda se for um nu feminino. John Berger, crítico de arte, pintor, escritor e, provavelmente, um dos maiores pensadores do último século, escrevia a propósito, no seu livro Ways of Seeing: “Pintaste uma mulher nua porque gostaste de olhar para ela, puseste-lhe um espelho na mão e chamaste à pintura Vaidade, condenando assim moralmente a mulher cuja nudez tinhas retratado para teu próprio prazer.” Daí advêm sentimentos de culpa, raiva, e uma total desidentificação com o que vemos no espelho. Não podemos gostar do que vemos, nem podemos ver o que gostamos. E se sempre foi assim, o boom da tecnologia fez com que este desfasamento aumentasse. O bombardeamento constante de imagens que recebemos diariamente faz com que a ideia de corpo enquanto objeto se intensifique, ao invés de se diluir. O corpo, hoje em dia, define em grande parte a maneira como as nossas vidas “devem” ser vividas. Sem um corpo com o qual nos sentimos bem, parece que as nossas vidas não estão bem. Daí advém uma série de problemas e preocupações, quase todas ligadas à pressão para ter “o corpo certo.”

É possível vermos o nosso corpo enquanto objeto e, ainda assim, termos uma relação saudável com ele? A palavra a Filipa Jardim da Silva: “É esperado olhar para o nosso corpo como uma extensão e parte de nós. É esperado cultivarmos uma relação saudável com o nosso corpo, em que potenciamos a sua funcionalidade e estética, sem persistirmos num ideal utópico que nos faz adoecer e sem abraçarmos estereótipos datados que só nos intoxicam e limitam. O corpo é o nosso meio de transporte pela vida. É através do nosso corpo que também nos expressamos, que sentimos o toque do outro, que exploramos locais, que regulamos emoções. Daí ser tão importante aprendermos a criar uma relação de maior equilíbrio e de maior saúde com a nossa auto imagem.” 

É então sensato afirmar que o corpo é, atualmente, uma marca (um objeto, lá está), e não só por aqueles que o usam como ferramenta de trabalho (como as modelos), no sentido em que tem de se adequar a certas “regras” para que a mulher (ou o homem) seja reconhecido em sociedade? “Pessoalmente, encaro o corpo como uma componente da nossa identidade. Nesse sentido é sempre uma parte de nós, pelo que compõe sempre a nossa marca pessoal. Independentemente da nossa atividade pessoal ou faixa etária, quando nos apresentamos e movimentamos por vários meios fazemo-lo com um corpo e com uma personalidade. Parece-me, por isso, importante olharmos para cada mulher e para cada homem de forma integrada e holística, com um corpo e uma personalidade, com um comportamento verbal e não verbal, com uma forma de pensar, de sentir e de agir, com uma história e com um contexto presente, com experiências marcantes e sonhos futuros.”

Nem todas as pessoas, mais concretamente mulheres, encaram esta objetificação do corpo feminino como um problema. Veja-se o caso de ORLAN, uma das artistas francesas com maior expressão no panorama mundial. Natural de Saint-Etiénne, uma cidade a 60 km de Lyon, nasceu Mireille Suzanne Francette Porte mas decidiu mudar de nome (e registá-lo em caps lock) porque não queria “voltar às fileiras” nem ser “posta de novo na fila”, como contou numa entrevista. Aos 74 anos, continua a usar o corpo como suporte para o seu trabalho — nem que para isso tenha de o contorcer em poses pouco favorecedoras, como fez em Body-Sculptures ou arrastar-se pelo chão em espaços públicos famosos para contar quantos “corpos medem”, como aconteceu em MesuRAGES.

"Parece-me, por isso, importante olharmos para cada mulher e para cada homem de forma integrada e holística, com um corpo e uma personalidade, com um comportamento verbal e não verbal, com uma forma de pensar, de sentir e de agir, com uma história e com um contexto presente, com experiências marcantes e sonhos futuros." Filipa Jardim da Silva

Numa conversa com o site Artnet News, ORLAN explicou os motivos por detrás das suas escolhas pouco convencionais: “Trabalhar com o meu corpo foi um gesto político. Foi um ato para a mulher que eu era/sou/serei, e todas as mulheres, para reclamar a sua liberdade, que lhes foi negada”. Apesar disso, ou por causa disso, reconhece que algumas das suas peças — caso de Vierge blanche sortant du noir — causam polémica porque a sociedade ainda não está preparada para pensar as mulheres (e os seus corpos) como seres totalmente emancipados. A obra em questão relembra a euforia quase sexual de Ecstasy of Saint Teresa, de Bernini, e convida o espectador a pensar nas mulheres como seres complexos, não julgados por uma estrita dicotomia virgem/ prostituta. “Estes dois estereótipos são difíceis de escapar quando se é mulher. É sobre a importância do e, e não ou.” Para ORLAN, as suas performances são uma forma de reclamar um lugar no mundo e, acima de tudo, tentativas de alcançar a última fronteira da arte, que é também a primeira: o próprio corpo. Ao alterar o significado do corpo enquanto objeto — com a ajuda de técnicas cirúrgicas, de que não abdica — a artista realiza um novo tipo de ready-made, que é o seu autorretrato.

Sendo impossível definir o corpo em toda a sua extensão, qual é o seu significado dentro de um contexto social? “É uma componente de identidade, é meio de transporte de/pela vida, é meio de comunicação com os outros e é meio de exploração do mundo, é estética e é funcionalidade, é beleza e é força, é saúde. Quando aprendemos a conhecer mais o nosso corpo e a respeitá-lo, por consequência estamos a conhecermo-nos melhor enquanto pessoas e a respeitarmo-nos mais de forma global. Quando o fazemos somos mais capazes de fazer isso também com os outros. Precisamos de aprender a viver em paz com o nosso corpo real, sem pressões esmagadoras de um corpo ideal. Caso contrário, a vida passa-nos ao lado, ficamos fechados dentro de nós mesmos em lutas internas inglórias. E quando se luta connosco nunca se ganha, independentemente do que se conquista pelo caminho.”

É pouco provável que Emily Ratajkowski leia estas linhas, mas, caso aconteça, que fique claro que, para nós, não é qualquer um que tem tomates para partilhar com milhões de pessoas a angústia que acarreta ser um símbolo sexual — mesmo se a frase parecer, por si, contraditória. É que nem todos os livros têm de dar respostas, por vezes o melhor é sugerir novas perguntas para velhas questões. Será o corpo um objeto? Provavelmente, sim. O que podemos fazer com essa informação que nos torne, a todos, mais fortes?

Ficha ténica:Texto: Ana MurchoFotografia: Enes Güç (https://enesguc.com/ e https://www.instagram.com/enesguc/)Fotografia: Evelyn Bencicova (https://www.instagram.com/evelyn_bencicova/)

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