Beleza   Tendências  

Território neutro: a questão do body neutrality

28 May 2020
By Andreia Pedro

No campo de batalha da aceitação corporal surgem novas fronteiras. Depois do body positvity, o body neutrality é o novo movimento que vai além do corpo para que possamos fazer as pazes com ele. Mas será esta a solução?

No campo de batalha da aceitação corporal surgem novas fronteiras. Depois do body positvity, o body neutrality é o novo movimento que vai além do corpo para que possamos fazer as pazes com ele. Mas será esta a solução? 

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Ama o seu corpo? Para grande parte das pessoas a resposta não é fácil ou literal. A nossa relação com o nosso corpo é complexa e torna-se difícil resumi-la a uma resposta simplesmente afirmativa ou negativa. Cada vez mais conceitos começam a surgir para definir a forma como podemos ver o nosso corpo e viver em paz com ele. Mas, e se a solução for retirar a atenção que damos ao nosso corpo e nos focarmos para além dele? Esta é uma das premissas do body neutrality, o conceito de neutralidade corporal que tem vindo a ganhar força nos últimos anos e que oferece uma alternativa à tão conhecida body positivity, que preconiza a ideia de que devemos amar o nosso corpo, tal como ele é. Para Anuschka Rees, obrigarmo-nos a amar a nossa aparência é um reflexo da sociedade em que vivemos. “Eu descreveria a minha relação com o meu corpo como apreciativa e saudável, mas nunca diria que ‘amo’ certas partes do meu corpo – aliás, sou bastante contra a crença de que uma imagem corporal saudável significa ‘amar’ a nossa aparência. Eu não ‘adoro’ as minhas coxas ou as minhas mamas mais do que os meus pulmões ou o meu sentido de equilíbrio. A ideia de que nos devemos esforçar para ‘amar’ a nossa aparência é só mais um produto de como sobrevalorizamos a beleza enquanto sociedade”. "Sou bastante contra a crença de que uma imagem corporal saudável significa ‘amar’ a nossa aparência." Anuschka Rees Formada em psicologia, a alemã decidiu escrever o seu mais recente livro, Beyond Beautiful, como uma forma de autoterapia depois de ter passado grande parte da casa dos vinte em dieta após dieta, fanática por beleza e a comparar-se com outras pessoas no Instagram. O livro é um guia prático para ser feliz e confiante num mundo obcecado com a imagem. “Tudo na nossa cultura sugere que o valor de uma mulher depende da sua aparência. Este facto associado a ideais de beleza irrealistas equivale a que muitas mulheres se sintam inseguras acerca da sua aparência e convencidas de que as suas vidas poderiam ser melhores se elas fossem mais bonitas”. Para a autora, o facto de serem as mulheres quem mais sofre com problemas de aceitação corporal acarreta grandes consequências sociais. “Conversei com mais de 600 mulheres para o livro, além de muitos especialistas de diferentes áreas e uma das principais lições que aprendi é que a imagem corporal está longe de ser uma questão trivial – é uma questão feminista. Sim, cada vez mais homens também têm problemas de imagem corporal mas, no todo, as mulheres ainda lutam muito mais com a sua aparência e isso tem consequências bem reais que contribuem bastante para as desigualdades de género. Por exemplo, estudos demonstram que é menos provável que as raparigas levantem a mão na sala de aula quando se sentem inseguras em relação à sua aparência. As mulheres são menos propensas a pedir um aumento no trabalho”. “A neutralidade corporal é um movimento social cujo objetivo é reduzir o grande significado que é dado à atratividade física na nossa sociedade." Anuschka Rees À Vogue Portugal, Anuschka explica que “a neutralidade corporal é um movimento social cujo objetivo é reduzir o grande significado que é dado à atratividade física na nossa sociedade. Vai para além da positividade corporal porque não só contraria os ideais de beleza do nosso tempo, mas também todos os aspetos da sociedade que continuam a promover a beleza como essencial, como algo a alcançar, e a aparência de uma pessoa como indicativa do seu valor”. Para a alemã, reduzir a neutralidade corporal à simples ideia de nos sentirmos neutros em relação ao nosso corpo é uma visão redutora e errada do movimento. “O objetivo do body neutrality não é sentirmo-nos ‘neutros’ em relação à nossa aparência. Iremos sempre gostar de algumas partes do nosso corpo mais do que de outras; em alguns dias, semanas ou anos, vais achar-te mais atraente, noutros nem tanto. O objetivo da neutralidade corporal é o de neutralizar o impacto que a forma como pensas acerca da tua aparência tem na tua vida, no teu bem-estar e nas tuas decisões”. Também Sara Taveira, psicóloga clínica na Oficina da Psicologia, afirma que a neutralidade corporal vai muito além da nossa aparência. “Neutralidade corporal é um movimento de auto-aceitação corporal, de valorização da nossa diversidade enquanto indivíduos, onde a aparência não é sinónimo do nosso valor pessoal, mas apenas um fator pequeno, que até é muito influenciado por modas, tendências e sociedades. A nossa beleza e valor pessoal passam a estar ramificados por vários componentes de nós mesmos e não apenas pela parte externa, designadamente pela aparência. Este movimento vem tirar o foco do corpo, o lema é ‘desfocar’ para outras áreas de valorização pessoal, numa perspetiva mais maleável da nossa autoestima, e não tão rígida e extremista de ‘amo ou odeio’”. Do ponto de vista da saúde mental, a neutralidade corporal traz vários benefícios, com alguns especialistas a defenderem que esta pode ser mais benéfica do que a positividade corporal. Sara Taveira clarifica. “Não sei se é mais fácil ou difícil, pois tudo isto é subjetivo e muito individual. O que a investigação nos tem mostrado nos últimos anos é que, sem dúvida, a aceitação é o primeiro passo para a mudança, que o desfocar cognitivo nos permite uma reflexão mais compreensiva de todos os componentes. É como apreciar um quadro a 30 centímetros de distância do mesmo ou a dois metros. E que padrões mais maleáveis e plásticos de nos vermos a nós mes- mos, aos outros, e ao mundo que nos rodeia, parecem trazer mais bem-estar e saúde psicológica”. Mas por onde começar? Para quem quer praticar neutralidade corporal, a psicóloga explica que o primeiro passo é perceber como é que normalmente encaramos o nosso corpo. “Acima de tudo é preciso ganharmos consciência destes processos e automatismos em nós, dos sentimentos e pensamentos associados às nossas vivências, neste caso especificamente às nossas vivências com o nosso corpo. Ganhando esta consciência, obrigando-nos a parar o nosso ‘piloto automático psicológico’, podemos então identificar quando estamos a ser críticos connosco mesmos, categorizar essa crítica, desfocar-nos da mesma e substituí-la por pensamentos mais adaptáveis sobre nós mesmos.” Em termos objetivos, outra maneira de colocar a neutralidade corporal em prática é ao avaliar os motivos por detrás da nossa alimentação e da prática de exercício físico. “Uma forma muito concreta é, por exemplo, praticar desporto ou comer de forma saudável pelo prazer que isso nos dá, pelo facto de nos fazer sentir bem, ao invés de ‘porque temos de o fazer’ ou com um foco excessivo na perda de peso ou body sculpture. E muito menos fazer exercício a contar calorias, mas sim adotar uma atitude de apreciar apenas o presente, o aqui e agora.”  Mente sã - em qualquer corpo Foi exatamente para mudar a forma como muitas mulheres veem o exercício físico que Tally Rye lançou o seu livro Train Happy, um guia de exercício intuitivo para todos os corpos. “Senti que havia uma grande conversa que precisava de acontecer no mundo do fitness. Tantas pessoas com quem eu tinha interagido, eu incluída, tinham caído em muitas armadilhas na sua jornada de fitness e eu queria ajudá-las a evitar isso mesmo. Durante muito tempo, eu associei ser saudável a perder peso e então mudava a forma como eu comia e fazia exercício para poder emagrecer. Isto tornou-se obsessivo e insustentável e, o que eu não estava a perceber, era que saúde não é sinónimo de abdominais. A saúde é multifacetada e o exercício é só uma parte de um grande puzzle.” Para a personal trainer inglesa, ser saudável ou fit não se encaixa num modelo único. “Significa trabalhar com o nosso corpo para nos sentirmos o melhor que conseguimos. Isto será algo único para cada indivíduo, especialmente para pessoas com deficiência, doenças crónicas e com diagnósticos de saúde mental que muitas vezes não se enquadram nos padrões de ‘saúde’ que veem. Penso que o mais importante é usar o self-care para fazer o que é melhor para ti, sendo a nossa saúde mental a prioridade.”        Ver esta publicação no Instagram Don’t mind me, just holding the FIRST COPY OF MY BOOK ?. ⁣ A book which I cannot wait to be out there in the world. ⁣ ⁣ The more I talk to you guys and the more I observe in the fitness industry I realise how complicated and conflicted we are about exercise and how much this message is NEEDED. ⁣ ⁣ Diet culture didn’t just eff up our relationship with food, it messed up our intuition when it came to working out too. ⁣ ⁣ The goal of this book is to help you to get movement and fitness back on your *own* terms in a way that serves you and your body. ⁣ ⁣ Bring on January 9th!! (And Feb 4th in the US).⁣ ⁣ You can pre-order on amazon via the link in my bio. Or simply saving it to your wish list is a massive help too ☺️. ⁣ ⁣ Thank you so so much for all your support so far. Couldn’t have done this without you! ⁣ ⁣ #TrainHappy #intuitivemovement #joyfulmovement #intuitiveeating #healthfirstfitness #personaltrainer #fitness #antidiet #dietculturedropout Uma publicação partilhada por Tally Rye (@tallyrye) a 1 de Nov, 2019 às 4:59 PDT   Nas redes sociais, Tally fala de forma honesta da sua jornada de aceitação pessoal e defende uma abordagem individual e intuitiva. “Penso que vivemos numa sociedade que objetifica os corpos, especialmente os das mulheres. Isto deve-se muito ao patriarcado e aos padrões corporais e de beleza que este promove. Tudo isto só tem vindo a ser exacerbado pelas redes sociais, que cada vez mais são obcecadas com a imagem. Agora, não temos só celebridades para nos compararmos, agora temos influencers ou até mesmo os nossos amigos.” Para a britânica, neutralidade corporal não tem a ver com a forma como classificamos o nosso corpo, mas sim com a importância que lhe damos. “Não tem a ver com amar ou odiar o nosso corpo, mas sim com encontrar um ponto ideal onde tu o aceitas, respeitas, mas não é algo em que estejas a pensar o tempo todo. É compreender que o meu corpo é só a concha em que eu habito e que a parte mais importante de mim é como eu sou por dentro e como eu escolho mostrar isso ao mundo”. "Penso que vivemos numa sociedade que objetifica os corpos, especialmente os das mulheres." Tally Rye Tally acredita que a neutralidade corporal pode ser uma alternativa mais realista à narrativa positiva preconizada pelo movimento body positive. “Penso que, para quem já detestou o seu corpo e lutou contra ele durante muito tempo, a ideia de, de repente, acordar e amar o seu corpo possa ser completamente irrealista. Em vez disso, a neutralidade corporal ajuda a tirar o foco do nosso corpo e chegar a um ponto de aceitação para que possamos usar essa energia e espaço mental para buscar outras coisas pelas quais sejamos realmente apaixonados”. Positividade, com conta peso e medida O movimento body positive começou nos Estados Unidos durante os anos 60 para mostrar as barreiras que as pessoas gordas enfrentavam, rejeitando a cultura das dietas e das cirurgias de emagrecimento e reivindicando direitos para quem tinha excesso de peso. Segundo a revista Time, a palavra “gorda” foi, na altura, reapropriada pelas mulheres do movimento para passar a ser usada como uma descrição e não como uma forma de insulto. Anos mais tarde, o conceito ganhou nova força por via das redes sociais, com muitas mulheres a usarem-no para definir a sua relação com o seu corpo. A partir daí, não demorou muito até que as marcas começassem a usar a positividade corporal a seu favor. Stephanie Yeboah é uma ativista pela fat acceptance, um conceito que promove a aceitação da gordura. “A fat acceptance é o movimento social que pretende mudar as ideias antigordura nas atitudes sociais ao sensibilizar para os obstáculos que as pessoas gordas enfrentam. Não só de um ponto de vista estético, mas também legal, médico, económico e social”, explica.  A blogger de lifestyle e Moda adotou o termo depois de sentir que o movimento de body positivity já não fazia sentido para si, pois já não se via representada nele. “Antes de o movimento ter sido adquirido por marcas e pelos media, a positividade corporal era um espaço seguro para mulheres gordas celebrarem os seus corpos, partilharem as suas histórias e celebra- rem a singularidade da sua aparência. O movimento foi inicialmente criado por mulheres gordas, negras e de origem judaica, mas agora o movimento generalizou-se e ficou saturado para além do ponto de retorno. O movimento agora existe predominantemente como um sítio para corpos privilegiados, onde constantemente se marginaliza e ignora os corpos que fundaram o movimento. O movimento de body positivity criou todo um novo padrão de beleza que é predominantemente branco, com barriguinha, rabo com curvas, cintura pequena e ancas largas. Agora, o movimento celebra mulheres gordas, mas ainda assim com tamanhos pequenos que ainda apresentam sex appeal para as massas, ao oposto de comemorar pessoas mais gordas que são muitas vezes marginalizadas e desprezadas pela nossa sociedade.”          Ver esta publicação no Instagram Make self love a part of your lifestyle. It’s one of the most difficult things we can do due to the amount of NOISE thrown at us via the media, but once you get there...man oh man. It’s such a wonderful feeling. You just...stop caring. Stop living for others. Stop trying to live up to something that isn’t attainable. Just try it. Photo - @fordtography MUA - @the_brooksbrother Uma publicação partilhada por Stephanie Yeboah (@stephanieyeboah) a 16 de Mai, 2020 às 12:48 PDT   Em relação à neutralidade corporal, Stephanie considera que é um bom movimento, apesar de não fazer parte do mesmo. “Na teoria, o body neutrality seria um excelente modelo, visto que se baseia em vermos o nosso corpo como um veículo e uma entidade que serve para nos manter vivos, sem adicionar nenhum tipo de sentimento positivo ou negativo. Isto seria o conceito ideal para seguir na nossa vida quotidiana. No entanto, a neutralidade corporal não pode resultar enquanto ainda existir gordofobia, o ódio à gordura. Se não existisse esse ódio, talvez as pessoas se sentissem mais seguras em relação ao seu corpo, e não haveria necessidade de positividade forçada porque não veríamos o nosso corpo como ferramenta de ódio.” Stephanie considera que a neutralidade corporal depende muito do tipo de corpo em que vivemos. “Penso que o body neutrality é mais fácil de adotar para pessoas que vivem num corpo que é socialmente aceite. Se viveres num corpo que ainda é sujeito a ódio, discriminação e negatividade, aí já se torna mais difícil.” Deixar as etiquetas de lado

Para a modelo e influencer portuguesa Catarina Corujo, tentar definir a aceitação corporal de diversas formas pode ser contraproducente. “Sinceramente... quando começam a existir muitos conceitos à volta do mesmo, voltamos a cometer o erro de categorizar as pessoas. Na teoria, [o body neutrality] é um ótimo conceito, no sentido em que reconhece não só o positivo como também o negativo que consideramos existir, ou seja, está tudo bem se não gostas da tua coxa como ela é, simplesmente não te condenes por isso. Este conceito surgiu por uma necessidade de aliviar uma pressão de estar sempre otimista com o corpo que temos. Isto é de longe a realidade: nem a pessoa mais positiva está sempre otimista! E está tudo bem se não gostas de algo em ti, está tudo bem aceitar isso e abraçar a tua individualidade como também está tudo bem se quiseres mudar. Para mim, é isto. Respeitar quem somos, almejar quem queremos ser... por nós, e não por pressão externa.” Catarina é uma das principais vozes para a aceitação corporal em Portugal. Descreve a aceitação do seu corpo como a “montanha russa” da sua vida. “Eu sofro de vertigens, mas tem sido a viagem mais louca e inconstante que já fiz, sem dúvida alguma.”

 

 

Na sua conta de Instagram, inspira os seus quase 29 mil seguidores a aceitaram-se tal como são, algo que a faz sentir-se grata e feliz. “Este processo é uma batalha conjunta, sou muito transparente nas coisas boas, mas também no menos bom e gosto de ter pessoas por perto que se identifiquem com aquilo que eu estou a passar e que me possam ajudar a ser a minha melhor versão – e não, não almejo ser uma pessoa perfeita, apenas a dar o melhor que conseguir. É muito fácil falar em massagens e maquilhagem, mas não é assim tão fácil falar do peso que é tirar o corpo da cama num dia mau, o esforço que é contrariar um pensamento cruel sobre ti mesma, o quanto tu te tens que contrariar para te permitires ser vulnerável contigo mes- ma. Não é assim tão fácil encarar-me no espelho e dizer-me que sou suficiente, que sou bonita, que tenho valor. Não é fácil parar o meu pensamento e ficar a sós com os meus pensamentos mais negros. O amor-próprio é mais do que banhos de espuma, é confrontação, é conforto, apoio... É um resgate a nós mesmas.”

Entre a positividade e a neutralidade, Catarina prefere deixar os conceitos de lado e olhar para a mensagem que considera mais importante. “Na prática, prefiro abster-me de categorias e dizer em voz alta: tu és quem tu quiseres ser, defeitos e qualidades incluídas – e isso é e será sempre... lindo. Eu nunca senti a pressão do otimismo constante associado ao conceito do body positivity, mas senti a pressão de ter de respeitar um padrão 86-60-86 durante anos e doeu o suficiente o peso do estigma, do estereótipo, das categorias. Já chega. Sejamos livres.”

Read the english version here.

Artigo originalmente publicado na edição de abril de 2020 da Vogue Portugal.

Andreia Pedro By Andreia Pedro

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