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Magnifying glass: a dismorfia corporal desmistificada

22 Feb 2021
By Ana Saldanha

O espelho também pode esconder uma lupa que aumenta e realça o que gostaríamos de fazer desaparecer. Para quem sofre de dismorfia corporal, o objeto não atrai Narciso, mas chama Éris, Mãe de todos os Males.

O espelho também pode esconder uma lupa que aumenta e realça o que gostaríamos de fazer desaparecer. Para quem sofre de dismorfia corporal, o objeto não atrai Narciso, mas chama Éris, Mãe de todos os Males. Click here for the english version. Há dias não. Toda a gente tem dias não. Aqueles dias em que o cabelo não está bem de maneira nenhuma, em que a roupa nos aperta ou nos engole, em que as olheiras nos dão um ar cadavérico, em que não há corretor ou base que nos salve. Dias em que fugimos do espelho porque qualquer vislumbre do nosso reflexo nos fará querer voltar para a cama até que passe. Mas e se não passar? E se todos os dias se tornarem dias não? Dias em que não queremos sair e em que o espelho se transforma num inimigo, numa lupa que amplifica o que achamos ser o defeito que desperta olhares alheios e que chama a atenção. Esta é a realidade de quem vive com dismorfia corporal, uma perturbação do espectro das perturbações obsessivo-compulsivas que consiste na “preocupação excessiva com a aparência física e no foco em imperfeições que ou não existem ou são muito ligeiras”, como explica Cristina Sousa Ferreira, psicóloga na Oficina de Psicologia. A esta preocupação excessiva junta-se ainda a crença lancinante de que essa imperfeição é notada por todos. A dismorfia corporal em nada se assemelha a um normal descontentamento com a aparência física que toda a gente já sofreu. Neste caso, a preocupação e fixação são acompanhadas por pensamentos intrusivos, comportamentos obsessivos e repetitivos que a pessoa não consegue controlar. “Causa sofrimento clinicamente significativo – tristeza, vergonha, ansiedade, depressão –, consome tempo, perturba o cumprimento das tarefas diárias e tem prejuízo no funcionamento do dia a dia e impacto no trabalho ou escola”, revela Cristina. “Esta perceção distorcida da imagem corporal leva a que, em resposta às preocupações com a aparência, surjam pensamentos perturbadores de falta de adequação, comportamentos repetitivos de verificação constante (olhar no espelho, higiene excessiva, espremer, coçar ou arranhar a pele) e atos mentais, como comparar a aparência com a de outras pessoas, que provocam vergonha, tris- teza, isolamento social e grande impacto na vida”, acrescenta. Os comportamentos obsessivos traduzem-se em verificações repetidas ao espelho para ter a certeza de que as imperfeições estão camufladas, seja com maquilhagem, roupas largas ou qualquer outra coisa que sirva para mascarar o “defeito.” "Deixar de ir à escola, de sair com amigos ou mesmo de ir trabalhar e ficar prisioneiro de um corpo que se vê como feio (...) prejudica todo o funcionamento do dia a dia." Cristina Sousa Ferreira, psicóloga  Em termos de incidência, não há um padrão fixo, mas o transtorno costuma manifestar-se na adolescência. “Dois terços dos indivíduos apresentam início do distúrbio antes dos 18 anos, no entanto pode surgir mais cedo ou até no início da vida adulta”, conta Cristina. Os sintomas são comuns entre crianças, adolescentes e adultos diagnosticados com dismorfia corporal e também existem semelhanças nos comportamentos de homens e mulheres em relação às áreas corporais não apreciadas, tipos de comportamentos repetitivos, sintomas, curso da doença e utilização de procedimentos cosméticos para a dismorfia corporal. “Os homens são mais propensos a ter preocupações genitais e as mulheres têm mais probabilidade de ter uma perturbação do comportamento alimentar comórbido”, explica Cristina. Já a dismorfia muscular – que se centra na obsessão com uma aparência extremamente musculosa, traduzindo-se em hipertrofia e, em casos mais extremos, do abuso de esteróides anabolizantes – ocorre quase exclusivamente em homens. “As preocupações podem-se concentrar em uma ou mais áreas do corpo, mas as mais comuns são a pele (acne, cicatrizes, linhas, rugas, palidez), cabelo (por exemplo, cabelo ‘ralo’ ou cabelo corporal ou facial ‘excessivo’) ou nariz (tamanho ou formato). No entanto, qualquer área do corpo pode ser o foco de preocupação (olhos, dentes, peso, estômago, seios, pernas, tamanho ou formato do rosto, lábios, queixo, sobrancelhas, órgãos genitais) e pode variar”, conta à Vogue a especialista. O diagnóstico atende a critérios como a incidência e repetição de comportamentos de verificação do “defeito” observado e a tentativa de o esconder, se essa obsessão tem consequências significativas no funcionamento social e ocupacional e se, por consequência tanto do isolamento a que a pessoa se submete como do transtorno obsessivo, acaba por ser catalisador de outros transtornos como depressão, stress, ansiedade, etc. “Deixar de ir à escola, de sair com amigos ou mesmo de ir trabalhar e ficar prisioneiro de um corpo que se vê como feio, desprezível, imperfeito, horrível, é o passo seguinte que agrava o sofrimento e prejudica todo o funcionamento do dia a dia. E este sofrimento anda de mãos dadas com a reduzida autoestima e a depressão”. Desta forma, a dismorfia corporal é, muito frequentemente, acompanhada de transtorno emocional e depressão, e um dos fatores que contribuem para que se desenvolvam outras perturbações é químico e afeta os neurotransmissores de serotonina, que é a chamada hormona da felicidade. "A preocupação com a aparência causa sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social, ocupacional e em outras áreas importantes do funcionamento." Cristina Sousa Ferreira, psicóloga  Acontece que a dismorfia tem sido ligada a uma anomalia no processamento de estímulos. “Funções anormais da serotonina e da dopamina podem estar envolvidas, como foi evidenciado pela boa resposta desses pacientes a medicações que alteram os níveis desses neurotransmissores”, relata Cristina. E acrescenta: “A depressão e sintomas depressivos são comuns em pessoas com dismorfia corporal como consequência do sofrimento e prejuízo funcional que esta perturbação causa. A preocupação com a aparência causa sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social, ocupacional e em outras áreas importantes do funcionamento. As relações sociais e a qualidade de vida são reduzidas e pode haver um impacto moderado, com o evitar de situações sociais, ou grave, com confinamento completo em casa. É comum evitar atividades sociais, relacionamentos, intimidade, havendo um claro impacto no funcionamento social. Os indivíduos podem ficar por anos presos em casa devido aos sintomas desta perturbação e sintomas mais graves estão associados a pior funcionamento e qualidade de vida. Cerca de 20% dos jovens relatam abandonar a escola por causa dos sintomas de dismorfia corporal e o transtorno está associado a altos níveis de ansiedade, ansiedade social, evitamento social, humor deprimido, e perfecionismo, baixa extroversão e baixa autoestima.” Quem sofre de dismorfia corporal vê-se preso num comportamento obsessivo focado num defeito ou falha que identifica e que acredita ser óbvio aos olhos de todos. Estas falhas não são observáveis ou, quando são, parecem insignificantes para os outros indivíduos, mas, numa tentativa de quebrar o ciclo de fixação compulsiva, há quem procure tratamentos estéticos ou cirúrgicos para resolver um problema invisível. “A maioria dos indivíduos procura tratamento cosmético para tentar melhorar os seus defeitos percebidos. O tratamento dermatológico e a cirurgia são os mais comuns, mas podem procurar de qualquer tipo. As pessoas com dismorfia corporal respondem mal a este tipo de tratamento e ficam, muitas vezes, piores, porque se sentem insatisfeitos com o resultado obtido e chegam a processar ou fazer queixa de médicos ou clínicas”, conta Cristina. E a permanência do problema, mesmo quando o suposto motivo de descontentamento é resolvido, explica-se através de estudos que associam a dismorfia corporal a uma disfunção visual. O que acontece é que o cérebro nem sempre consegue processar a alteração feita através do tratamento cirúrgico ou cosmético, ou seja, o problema permanece igual ou pior. Quanto ao diagnóstico, Cristina Sousa Ferreira esclarece que a dismorfia corporal pode passar anos sem ser detetada, por ainda ser confundida com “situações normais do desenvolvimento e da adolescência” ou “porque as pessoas se sentem constrangidas e envergonhadas por revelar os seus sintomas ou porque, de facto, acreditam que são defeituosas.” O caminho até ao psicólogo acontece, habitualmente, “quando o problema já evoluiu para perturbações ou sintomas depressivos ou ansiosos, por exemplo, referenciados por psiquiatras ou por médicos de outras especialidades que procuraram para a resolução do seu “defeito” (dermatologistas, cirurgiões estéticos, dentistas, etc.)”. Olhando para o panorama atual, será que ter mais tempo livre foi sinónimo de mais tempo para nos fixarmos na nossa imagem corporal? Cristina responde: “A insatisfação com a própria imagem é muito comum na população em geral, é potenciada pelos valores culturais e redes sociais e desempenha um papel importante num grande número de perturbações psicológicas, incluindo as alimentares, a fobia social e a dismorfia corporal... O nível de preocupação causado pela insatisfação com a imagem varia entre as pessoas, mas pode atingir um grau de tal forma elevado que faz com que estas preocupações causem interferência no funcionamento do dia a dia. Nesta pandemia fomos obrigados ao distanciamento, isolamento social e confinamento. Estas medidas foram penosas para todos nós – para quem os contactos sociais e as saídas à rua fazem parte dos hábitos e são fundamentais para o bem-estar e equilíbrio. No entanto, para pessoas com um moderado ou grande nível de preocupação com a imagem corporal, como a dismorfia corporal, estas medidas podem ter sido inicialmente protetoras. O evitar dos contactos e a limitação das saídas à rua protegem da exposição ao olhar dos outros. Não ir à escola, ao trabalho ou não estar em situações sociais evita a exposição aos outros e pode ter atenuado as preocupações excessivas com a imagem. As reuniões de trabalho são online (muitas vezes com câmaras desligadas ou a proximidade do ecrã pode ser controlada e existem programas de videoconferência que permitem melhorar a imagem), podem esconder-se partes do corpo que envergonham e escolher-se publicar as imagens que mais favorecem. E tanta comida foi partilhada retirando o foco na imagem de cada um de nós...”, explica a psicóloga. Mas se o confinamento se traduziu num abrandar da preocupação excessiva com a imagem, o regresso à vida normal pode voltar a incendiar esta perturbação, como sublinha Cristina: “Esta situação inicialmente protetora reforça a preocupação, o stress e a ansiedade em situações futuras. O alívio inicial pode manifestar-se e resultar posteriormente num sofrimento maior.”   Este artigo foi originalmente publicado no The Mirror Issue da Vogue Portugal, publicado em janeiro de 2020.

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