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10 things I bark about you: será passear o nosso cão a nova dating app?

03 Nov 2025
By Pedro Vasconcelos

Fotografia: Arthur Elgort/Conde Nast via Getty Images

Uma cauda a abanar e um olhar cúmplice podem ser o início de algo que nem o algoritmo mais afinado conseguiria prever.

Num jardim de qualquer cidade ao final da tarde, há uma cena que se repete com a pontualidade de um ritual. Cães a correr em círculos, donos a arrastar trelas, trocas rápidas de olhares que não se sabem ainda se são sociais, românticos ou apenas cúmplices na arte de segurar sacos biodegradáveis. “Ah que querido!” “É um menino ou uma menina?” “Que idade é que tem?” Conversas que dificilmente aconteceriam sem este intermediário peludo surgem com naturalidade. É um desfile democrático: de dálmatas atléticos a chihuahuas ansiosos, de labradores confiantes a rafeiros com mais personalidade do que pedigree. O que poderia ser apenas uma rotina higiénica é bem mais para os dotados de olhos de sociólogo. O passeio do cão não tem nada a ver com animais domésticos. É o princípio de um cortejo, o primeiro passo num ritual de acasalamento. É um dispositivo social com menos algo- ritmo e mais acaso, mas com a mesma promessa de encontros. Para os incrédulos, é só observar. Em cada encontro canino há uma conversa humana. Pergunta-se a idade do animal, comenta-se a energia ou a calma, partilham-se histórias de veterinário e dicas sobre ração. A linguagem canina serve de código, de guião social que dissolve embaraços. Aquilo que em circunstâncias normais poderia parecer intrusivo — iniciar conversa com um estranho no meio da rua — torna-se natural quando há um cão no enredo.

Não é uma tese difícil de alcançar: donos de cães têm mais probabilidade de conhecer vizinhos e formar amizades. É o chamado capital social: redes de confiança e reciprocidade que sustentam comunidades. O simples ato de circular com um cão pela vizinhança não satisfaz apenas as necessidades caninas, reforça o tecido social humano. Durante a pandemia, este efeito tornou-se ainda mais visível. Quando o contacto interpessoal passou a ser raridade, os cães tornaram-se um luxo. A trela ficou bem mais do que um acessório: era cordão umbilical com a comunidade que nos rodeava. Nunca na minha vida passeei tanto o meu cão como em 2020. Cada olhar que o meu cão me dava tornava-se pretexto. “Ah coitadinho, deves estar aflito!” E, ainda que à distância e com máscara, ao menos tinha direito a ver outra pessoa. A sociologia oferece uma leitura complementar. Mark Granovetter, nos anos 70, descreveu a importância das chamadas ligações fracas: contactos superficiais e passageiros que são cruciais para a circulação de informação e oportunidades. É exatamente esse tipo de vínculo que se cria quando dois donos de cães se encontram num jardim e trocam comentários triviais. Não são amizades íntimas, mas sim pontos de contacto que, acumulados, aumentam a sensação de pertença. Os cães, com a sua naturalidade social, multiplicam essas ligações.

A tendência já ganhou expressão digital. Existem hoje plataformas sociais dedicadas a donos de animais, como a Dogalize, que permite localizar outros “pais”, descobrir cafés pet-friendly e até agendar encontros. Tinder be damned! Funciona como uma extensão virtual daquilo que já acontece na rua. A tecnologia apenas organiza e amplifica um impulso que é, antes de tudo, físico: sair com o cão, deixar que o acaso socialize humanos através da interação com outros animais. Estes passeios rotineiros oferecem uma coreografia discreta de sedução. Não há pressão de um primeiro encontro marcado, nem a formalidade de um jantar cuidadosamente preparado. O contexto é público, quotidiano, aparentemente banal. A presença do animal serve de mediador: quando dois cães decidem brincar juntos, os donos acompanham quase por obrigação, permanecem lado a lado, trocam frases curtas que, pouco a pouco, se transformam em conversas mais longas. É uma aproximação que nasce da casualidade, mas que, pela repetição, ganha densidade. O amor aqui não é súbito, é ensaiado em fragmentos de cinco ou dez minutos, dia após dia, até que se consolida em reconhecimento.

Existe também o fascínio de observar o outro através do cão. O modo como alguém segura a trela, como se inclina para falar com o animal, como reage quando o cão se porta mal — tudo isto funciona como janela para traços de carácter que ficariam ocultos durante meses de namoro. Se uma pessoa não trata bem o seu animal de estimação então com certeza não há-de ser boa gente. Há uma intimidade peculiar em partilhar esse quotidiano canino, quase como se fosse um trailer de vida doméstica. Encontrar a mesma pessoa todos os dias, à mesma hora, no mesmo parque, cria uma sensação de destino. Na era das redes sociais e mais aplicações de namoro do que aquelas que conseguimos contar, esta é uma das poucas oportunidades para um romance verdadeiramente inesperado. É um match lento, tudo o que dar um swipe numa foto não é. Onde os algoritmos oferecem rapidez e abundância, os cães oferecem tempo e reconhecimento.

Este Tinder canino ou Hinge exterior não é só mais apelativo, garante uma taxa de sucesso bem mais interessante. Não há perfis cuidadosamente editados nem fotografias com ângulos calculados. No seu lugar, existe a possibilidade de ver o potencial parceiro em situações quotidianas nos seus momentos mais íntimos. Quando mal têm os olhos abertos, acabados de acordar, ou quando já estão de pijama e pantufas prestes a adormecer. E, ao contrário de muitos desses primeiros encontros malfadados, o tema de conversa já está escolhido. Há tanto por onde pegar no que se trata de animais que podemos saltar o “Então e o que é que estás à procura por aqui?” Além disso, dá a desculpa perfeita para fazer essas perguntas tão necessárias como awkward de forma indolor. De repente, perguntar o estado civil é natural. “Então, e o cachorro tem pai ou mãe?” “Ele fica sozinho em casa quando sais?” “Quem cuida dele quando vais de férias?” Toda uma biblioteca de conhecimento sobre a outra pessoa fica disponível através do seu animal de estimação. É uma intimidade que surge sem rótulo, sem intenção explícita. A verdade é que poucos cenários testam tanto a química como ver alguém a tentar limpar dignamente um desastre canino em plena via pública. Se há ali empatia, talvez haja futuro.

E o melhor é que não implica nenhum sacrifício. Os cães não sabem que fazem de cupidos, apenas abanam o rabo, puxam a trela e arrastam-nos para fora de casa. Se muito, agradecem o súbito interesse na sua atividade favorita. Eles só querem sair, as conversas e trocas de contacto são apenas consequências inócuas. Aliás, se nos é permitido a hipérbole, passear um cão é a rede de encontros mais antiga que existe. Para não falar que, em termos de ótica, um romance catalisado por animais de estimação é extremamente romântico. Há algo de singular em apaixonar-se no meio de um relvado urbano, com dois cães a tropeçar nas trelas enquanto os donos tentam, em vão, manter alguma compostura. É material de um filme de Nancy Meyers. Consigo ver Julia Roberts e Jake Gyllenhaal como protagonistas, um border collie mal-educado ou um pug de respiração ofegante com papéis secundários. Lentamente, os cães que brincam juntos levam a outras brincadeiras, aquelas que implicam uma porta fechada e os nossos animais de estimação confusos do lado de fora. E, no pior dos casos, mesmo que não resulte em romance, há pelo menos sempre alguma cumplicidade. Uma amizade nunca se desperdiça e, mesmo que o match romântico não seja certo, faz-se pelo menos mais um vizinho amigo. Por isso, da próxima vez que o cão puxar pela trela e implorar por um passeio, vale a pena considerar que o convite pode ir muito além de uma volta ao quarteirão. Leve os sacos biodegradáveis, claro, mas não dispense o perfume. Nunca se sabe se, entre cheiros de relva molhada e ladridos eufóricos, não estará a nascer uma história de amor.

Originalmente publicado no Animal Instinct Issue, a edição de outubro de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.

Pedro Vasconcelos By Pedro Vasconcelos
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