Palavra da Vogue  

Where is my mind?

26 Apr 2024
By PUREZA FLEMING

É uma condição que vai surgindo sorrateira e silenciosamente. Quando instalada, a doença de Alzheimer desata a roubar as memórias e a identidade de quem a enfrenta. Num turbilhão de confusão, o mundo familiar desintegra-se lentamente, deixando para trás apenas vestígios de uma vida outrora plena.

Espera um dia igual a outros tantos. A mesma cidade, a mesma rotina, o mesmo trajeto. Só que naquele dia, Fernando seguiu pela estrada errada. Aquele caminho que percorrera por anos a fio tornara-se, agora, estranho para si. Sentada ao seu lado no carro estava a mulher, Zé, que apesar de estranhar o engano, não ponderou a doença de Alzheimer — pelo menos não naquele momento. “Uma pessoa não se apercebe muito bem dos primeiros sinais… Ele [o Fernando] começou por se esquecer de coisas banais, como aquele caminho que percorria diariamente, mas eu pensei ‘a partir de uma certa idade as pessoas também se começam a esquecer de coisas’. Durante um tempo dilatado, mais de um ano, uma pessoa não se vai apercebendo. No caso do Fernando, pelo menos, aquilo [o desenvolver da doença de Alzheimer] foi muito lento no início. Aquilo deve ter começado por volta dos 66 anos.” Fernando tem, hoje, 68 anos. Diagnosticado há cerca de um ano com doença de Alzheimer, não foi no imediato que os sintomas se revelaram. “[A doença de Alzheimer] é uma doença progressiva do cérebro que inicialmente afeta a memória, e depois pode afetar outras atividades cognitivas, como a linguagem, a capacidade de raciocínio, o comportamento, entre outras”, esclarece Rui Araújo, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia. E mantém a explicação: “Inicialmente, a doença manifesta-se através de um defeito de memória, isto é, as pessoas apresentam dificuldades em reter informações novas. Podem tornar-se muito repetitivas. Mais tarde, podem surgir dificuldades em compreender situações do quotidiano, falar, exprimir-se, orientar-se no tempo e no espaço e, por fim, as dificuldades da marcha e equilíbrio.” Quando diagnosticado, Fernando começou a tomar medicação rapidamente. Mas somente — tal como ressalvou o seu médico —, para atrasar o processo. “Um atrasar muito relativo…”, como especificou Zé em conversa com a Vogue. Facto é que os sintomas da doença de Alzheimer geralmente começam de forma subtil. 

As pessoas cuja doença se desenvolve enquanto ainda estão empregadas podem não ser tão eficientes nos seus trabalhos como costumavam ser. No caso das pessoas aposentadas, e portanto menos ativas, as alterações podem não ser tão perceptíveis. O primeiro — e mais perceptível — sintoma pode-se dizer que é o esquecimento de eventos recentes, já que a formação de novas memórias é difícil. Por vezes, as pessoas podem ficar emocionalmente insensíveis, deprimidas, com muito medo ou ansiedade. Zé conta que para conseguir tirar a carta de condução ao marido foi complicado: “A médica neurologista tinha passado um papel para ele ir ao psicólogo e, então, ser-lhe retirada a carta. Mas foi muito difícil. Assim que saímos do psicólogo, entre algumas asneiras, ele disse o seguinte: ‘ele [o médico] pensa que me vai tirar a carta, isso é o que ele queria!’. Depois, lá conseguimos esconder a chave do carro, e tirámos o carro da garagem — dissemos-lhe que o carro estava no mecânico. Era a única hipótese que tínhamos de ele não descer e ir à garagem pegar no carro.” Isto, também porque Fernando chegava a sair de casa à noite. “Andava por aí, a deambular”, recorda Zé. “Cheguei a ter de ligar para a polícia para irem atrás dele. Andámos todos à procura dele. Ele conseguia sair de casa sem fazer barulho e eu não ouvia nada. Quando dava por ela, ele já estava longe. Comecei a dormir de porta trancada.” Os momentos de lucidez, para alguém diagnosticado com Alzheimer, são muito poucos. A pessoa torna-se, de certa forma, infantilizada. “É demência, mesmo”, remata Zé. “É uma doença horrorosa e irreversível. E uma vez instalada, não há mais nada a fazer.” Segundo o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia, o termo demência “aplica-se a uma situação em que a pessoa já tem deterioração cognitiva grave a ponto de precisar de ajuda de terceiros para tarefas do dia a dia. Existem vários tipos de demência. A doença de Alzheimer é a causa mais comum de demência.” A mulher de Fernando confirma: “Ele não conseguia comunicar, já não sabia quem eu era. A única pessoa que ele reconhece é o Luís, um dos seus irmãos e também o mais próximo de si. Desde pequeno que andavam sempre os dois juntos, é capaz de ser por isso…” 

Conhecido sobretudo por ter sido o primeiro autor a reconhecer como entidade patognomónica distinta a doença neurodegenerativa que hoje tem o seu nome, Alois Alzheimer foi um psiquiatra e neuropatologista alemão. Em 1901, a vida deste neurologista cruzou-se com a de Auguste Deter. Anos mais tarde, esta paciente faria com que o médico se tornasse famoso em todo o mundo. Diante dos seus olhos, o neurologista tinha um caso estranho, que nunca tinha visto antes. “A paciente está sentada na cama com o rosto desamparado. Qual é o nome dela? - Auguste. - Qual é o nome do marido? - Auguste, penso eu. Parece que ela não entendeu a pergunta.” Perda de memória e compreensão, afasia, desorientação, comportamento imprevisível, paranoia e uma acentuada incapacidade psicossocial foram alguns dos sintomas manifestados pela dona de casa alemã de 51 anos. Natural de uma pequena cidade no estado da Baviera, na Alemanha, Alois Alzheimer nasceu a 14 de junho de 1864. Iniciou os estudos médicos em Berlim, capital da Alemanha, a pedido expresso do seu pai, tabelião de profissão. Um ano depois, decidiu regressar à sua cidade natal para terminar os seus estudos na Universidade de Würzburg, em 1887. Desde então, dedicou-se à psiquiatria, à neuropatologia e ao estudo das doenças mentais. Pouco depois de se formar, aos 23 anos, foi contratado como médico particular de uma mulher que sofria de transtornos mentais. Com ela, fez uma viagem de cinco meses que lhe permitiu acompanhar de perto a evolução da doença. Depois dessa experiência, foi contratado por um Asilo Municipal para Dementes e Epilépticos da cidade alemã de Frankfurt. Lá, especializou-se na investigação dos tecidos do corpo humano e do córtex cerebral. Também conheceu o prestigiado neuropatologista Franz Nissl, com quem partilhou um laboratório, estabelecendo uma profunda amizade. Os dois pesquisadores conduziram vários estudos neuropatológicos em pacientes com transtornos mentais. No início dos anos de 1900, Alzheimer “estava obcecado com a ideia de que as doenças psiquiátricas eram como outras doenças”, disse Conrad Maurer, professor emérito de psiquiatria da Universidade Goethe em Frankfurt, à BBC. Ele pensava que “tal como havia doenças do corpo, também havia doenças do cérebro.” Segundo Maurer, o psiquiatra estava determinado a encontrar um caso para o provar. E foi então que conheceu Auguste Deter que, a partir de 1901, se tinha tornado esquecida, delirante e gritava ou chorava por horas a fio a meio da noite. Ao conhecê-la, Alzheimer disse “é este o meu caso”, contou Maurer. O neurologista manteve um histórico médico detalhado de Deter, encontrado na década de 1990 pela equipa de Maurer, então diretor do mesmo hospital psiquiátrico onde Alzheimer trabalhava. O psiquiatra tinha escrito à mão todas as suas perguntas e observações acerca da condição da paciente. “Mostro-lhe um lápis, uma caneta, uma bolsa, algumas chaves, um diário e um cigarro, e ela identifica-os corretamente”, “Quando ela tem de escrever 'Dona Auguste D.', escreve 'Dona', e aí temos de repetir as outras palavras porque ela se esquece”, “A paciente não consegue progredir na escrita e repete 'eu perdi-me.’” 

Rui Araújo avança que a doença de Alzheimer “ocorre mais frequentemente em pessoas que têm outras doenças médicas não controladas, como por exemplo, a hipertensão arterial, a diabetes mellitus, pessoas que fumam e não fazem exercício físico, por exemplo.” Contudo, assegura, não é assim tão fácil evitar que esta se manifeste: “Estima-se que até 40% dos casos de demência possam ser prevenidos pela aplicação de estilos de vida saudáveis. Ainda assim, na maioria dos casos é uma situação clínica que pode não ser possível evitar.” Com os factos, surgem as consequências: a dificuldade em conviver, cuidar, proteger alguém que se encontre nesta condição de saúde. Aquele médico explica que, inicialmente, “os doentes reconhecem os sintomas, mas com o avançar da doença a pessoa pode ficar progressivamente mais dependente, e deixa habitualmente de se reconhecer como doente.” Trata-se de uma doença que obriga a uma maior vigilância e, na maior parte das vezes, a cuidados e supervisão permanentes. “Enquanto o Fernando ainda estava ativo, esteve num centro de dia durante uns meses. Não há vagas nos lares — nem a pagar, nem sem ser a pagar. Mas lá conseguimos uma vaga no Lar de Terceira Idade do Caramulo, uma residência sénior com cuidados geriátricos para idosos de todos os níveis de dependência e necessidades”, relata Zé. Conta que a ida para o centro correu bem: “Tem lá uma funcionária que é amorosa com ele e que o acolheu muito bem. São pessoas que já sabem lidar com este tipo de pacientes… Momentos de lucidez ele já não tem. Ri-se a quem lhe diz alguma coisa com piada. Acha sempre muita graça a macacadas. Mas ele vive no mundo dele. Vive numa bolha, mas nota-se que ele está bem. Que se sente bem ali [no lar]. É algo que me deixa feliz, perceber que ele está bem.” Para o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia, “é necessário apoio, requerendo muito tempo, paciência, e também disponibilidade financeira. Muitas vezes os próprios cuidadores podem precisar de ajuda ou apoio psicológico.” Aproveito para o questionar acerca do Alzheimer precoce. Penso para mim que é das tais coisas que só acontecem nos filmes, mas sei que não é bem assim. “Existem situações raras, por exemplo geneticamente determinadas, em que a doença pode surgir em idades jovens (a partir por exemplo dos 40 e 50 anos). Mas são situações muito raras”, elucida-me. Já quem é mais propenso, apesar do fator aleatório desta condição, são as “pessoas em cujas famílias já existam casos de doença de Alzheimer que tenha surgido em idades jovens; e também pessoas com fatores de risco vasculares não controlados (por exemplo tabagismo ativo e hipertensão arterial não medicada).” A doença de Alzheimer é uma doença que afeta o paciente e impacta quem está à sua volta. Não sendo susceptível de cura na maioria dos casos, sobra apenas muito amor e muita coragem. Como escreveu Leeza Gibbons, autora de The Caregiver’s Guide to Dementia: Practical Advice for Caring for Yourself and Your Loved One, “os cuidadores de pessoas com Alzheimer são heróis.” 

Originalmente publicado no The Memories Issue, pode adquirir aqui

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