The Innocence Issue | To be continued: Kidcore: uma estranha ode à liberdade

07 Feb 2023
By Maria Inês Pinto

O fenómeno do kidcore ainda causa alguma estranheza, e é natural que assim seja. Afinal, ver adultos vestidos de forma infantil levanta inúmeras questões, especialmente para adeptos das explicações da psicologia. Contudo, acabou por se tornar uma tendência e invadiu as lojas, o feed do Instagram e, para surpresa de muitos, os nossos próprios armários. Freud teria muito a dizer sobre isto…

O fenómeno do kidcore ainda causa alguma estranheza, e é natural que assim seja. Afinal, ver adultos vestidos de forma infantil levanta inúmeras questões, especialmente para adeptos das explicações da psicologia. Contudo, acabou por se tornar uma tendência e invadiu as lojas, o feed do Instagram e, para surpresa de muitos, os nossos próprios armários. Freud teria muito a dizer sobre isto…

Talvez as precursoras do kidcore tenham sido as Gyaru girls, uma espécie de irmãs mais velhas rebeldes que não tinham medo de infringir barreiras. O estilo Gyaru teve origem no Japão, em meados dos anos 90 e rapidamente se tornou numa subcultura que dividiu a população entre o amor e o ódio, já que era radicalmente diferente do que até então se via nas ruas do país. As Gyaru girls opuseram-se ao standard nacional — pele de porcelana e cabelos escuros — e adotaram uma forma de vestir excêntrica e vistosa, usando maquilhagem carregada, pele morena e roupas que faziam os conceitos de inocente e sexy coexistir num só conjunto.

Pessoalmente, sempre me pareceu um movimento algo bizarro e que, com certeza, acarreta consigo uma forte componente psicológica. Freud pode ter teorias altamente questionáveis, mas numa coisa deve ter acertado: as experiências da infância moldam a nossa personalidade e os nossos comportamentos enquanto adultos. Seja por não termos vivido os ditos “anos mais felizes” como deveríamos, ou por este período não ter sido tão colorido ou tão cândido quanto desejado.

Foi durante a pandemia que muitos de nós, por não termos grande alternativa, começámos a enfrentar algumas feridas escondidas pelo tempo — tarefa que tínhamos evitado até então. O facto de estarmos sozinhos connosco mesmos obrigou-nos a fazer uma introspeção profunda e, em muitos casos, a praticar o que se chama agora de inner child healing. No fundo, este exercício incentiva-nos a lidar com partes da nossa infância que, indubitavelmente, nos moldaram, e que trouxeram consequências para a idade adulta, ainda que não estivéssemos completamente cientes das mesmas. 

O kidcore surgiu também durante esta altura e, por esse motivo, quiçá seja mais do que uma tendência banal ou cíclica como tantas outras. Foi aqui que abandonámos o minimalismo e, de repente, as cores gritantes, missangas e jardineiras ganharam um enorme protagonismo. Talvez isto tenha acontecido como resposta aos tempos que se viviam: os dias eram cinzentos e as perspetivas de futuro, no mínimo, incertas. De repente, o mundo tornou-se numa espécie de temida distopia e não sabíamos se algum dia a vida voltaria a ser igual. Agora o pior já passou e a Moda é só a ponta deste enorme iceberg — ainda assim, não menos importante. Isto porque a Moda sempre foi um reflexo da sociedade em que vivemos e, segundo o que a História nos tem ensinado, estaremos a atravessar uma espécie de roaring 20 's, apesar de, agora, os flapper dresses e as penas no cabelo terem sido substituídos por t-shirts com smiles e mochilas com teddy bears

Talvez o kidcore seja mais do que uma tendência banal e tenha, na verdade, um aspeto psicológico muito mais profundo do que aparenta. Quiçá esta forma de vestir (e de estar) venha como uma manifestação da necessidade de regressarmos ao passado, à infância, para trazer de volta uma felicidade que nos fugiu entre os dedos e uma alegria vibrante que terá ficado perdida algures no tempo — um tempo mais simples e mais leve. Sempre quisemos crescer e sempre nos obrigaram a fazê-lo. E agora? Agora queremos inverter as voltas ao pré-estabelecido, às expectativas que criaram para nós.

Tenho o hábito de tentar dar um significado a tudo, por acreditar (tal como Freud) no poder do subconsciente, por defender que tudo tem uma explicação, por mais abstrata que seja. Será mesmo assim? Não tenho a certeza e, provavelmente, nunca terei. Porém, há uma coisa que posso tomar como garantida: gostemos ou não, o kidcore vem trazer algo que há muito precisávamos: a possibilidade de cometer o ato rebelde de sermos exatamente quem queremos ser, rompendo com o que se espera de nós, com o que é adequado, cool, ou usável. Vivemos num mundo que nunca pára e onde a cultura do hustle é sobrevalorizada, por acreditarmos que uma postura de sacrifício e seriedade nos vai trazer os resultados que queremos alcançar. Ter a coragem de transgredir este paradigma e adotar uma atitude mais descontraída e despreocupada é, nos dias de hoje, um ato de resistência. Quem diria que, em pleno século XXI, colocar um laço no cabelo ou umas Crocs seria uma afirmação tão poderosa. Afinal, não será o kidcore a mais estranha e original ode à liberdade?

Inserido na edição The Innocence Issue, publicada em fevereiro de 2023.For the english version, click here.

Maria Inês Pinto By Maria Inês Pinto

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