Arts & Crafts Issue
O retorno ao fazer manual está a redefinir a Moda, não como produto, mas como ponto de encontro.
Num destes dias fui a uma conversa na Sarabande Foundation. A fundação, iniciada por ordem póstuma de Lee Alexander McQueen, é um confessionário onde todos os segredos da indústria são sabidos. Quando foi anunciado que Francesco Risso, diretor criativo da minha adorada Marni estaria presente para uma talk, não hesitei. O designer começou a sua conversa com uma declaração que rapidamente se provou verdade. “Não dou palestras, isto não é uma conversa minha, é nossa.” Para quebrar o gelo, Risso criou um poema coletivo, pedindo a cada um dos convidados que contribuísse na primeira frase que nos vinha à cabeça quando pensávamos na palavra “nightfall.” E, ainda que a atividade nos tenha comido 15 minutos dos 45 adjudicados para o evento, a ideia é perfeitamente simbólica da filosofia do designer italiano. Ao longo da sua conversa com Tim Blanks no palco improvisado, Risso deixou claro uma ideia concreta: o processo criativo é um método interativo, uma linguagem comum. Ao falar sobre as suas coleções, Risso referiu-se repetidamente à importância de colaborar com pintores, escultores, artesãos e artistas cuja prática se baseia no fazer, não no delegar. Conhecido pelos seus vestidos pintados à mão, o designer falou dos desafios iniciais, quando lhe foi protestada a viabilidade comercial das suas ideias. A solução para os problemas que lhe foram apresentados foi, mais uma vez, comunidade. Este reuniu à sua volta uma comunidade de artesãos, pessoas capazes de executar uma visão que não era apenas de Risso, mas de todos os responsáveis por pintar nem que seja uma alça de um vestido. Esta ideia materializa-se muito para além dos limites da marca italiana. Há algo inegavelmente transformador na ideia de criar através das nossas próprias mãos. Numa era em que a velocidade da produção industrial domina quase todos os aspetos da nossa vida voltar ao gesto manual, ao tempo demorado da criação, pode ser mais do que um ato artístico — pode ser um ato de resistência. Ou, mais ainda, pode ser o início de uma comunidade.
Para o último desfile da Marni, Risso colaboraram com dois artistas, Olalu Slawn e Soldier Boyfriend. O mais fascinante não foi o resultado, mas o caminho. Risso descreveu como a presença daqueles artistas transformou o estúdio, como a troca de ideias tangíveis acabou por redefinir não só a estética da coleção, mas a dinâmica da própria equipa. De repente, o atelier deixou de ser um espaço hierárquico e passou a ser um lugar de partilha. É esta partilha, esta comunidade formada em torno do gesto de fazer, que é tão mais revolucionária para a Moda do que qualquer tendência. Esta não é, de todo, uma ideia nova. Na história da Moda, os grandes momentos de viragem foram muitas vezes tecidos a partir da colaboração entre mãos de costureiras, modelistas, bordadeiras, sapateiros, etc. A indústria nasceu de pequenas comunidades criativas dentro dos ateliers parisienses do século XIX. Cada peça era o resultado do trabalho conjunto de dezenas de pessoas: o petit mains, os alfaiates, os tintureiros, os aprendizes. E por mais que os nomes nas etiquetas fossem os de um só criador —Worth, Poiret, Chanel —, a verdade é que a magia estava no coletivo. Durante décadas, o atelier era um microcosmo social. Um espaço de trabalho onde se aprendia, se criava e se partilhava. Muitos destes artesãos passavam anos juntos, criavam laços familiares, transmitiam saberes, inventavam linguagens. A oralidade do ofício e a partilha física do processo criativo tornavam o fazer quase num ritual comunitário. Mas com a globalização e a industrialização da produção, esses laços começaram a dissolver-se. A terceirização das mãos tornou-as invisíveis. A criação passou a ser atribuída a diretores criativos, enquanto as equipas que de facto materializam as peças desapareceram do discurso da Moda. O foco mudou: deixou-se de valorizar o processo e passou-se a idolatrar apenas o produto final. O gesto foi substituído pela imagem.
Durante a maioria deste século e a segunda metade do anterior, o savoir-faire manual foi relegado para segundo plano em nome da eficiência. À medida que a moda se digitalizava— nas passerelles, no design e, sobretudo, na produção — o gesto físico tornou-se obsoleto. A costura era substituída por software, o bordado pelo digital, o toque por renderizadores 3D. O entusiasmo do see now, buy now, fomentou uma cultura que se entusiasma com o produto, não o processo que o criava. Chegamos agora a um ponto de viragem. A saturação digital começa a pesar em todos. Já ninguém consegue ouvir falar de inteligência artificial. Os meus ouvidos desligam-se automaticamente assim que conversas de Chat GPT circulam no ar. A tecnologia já não é sexy. Ninguém quer saber quão bem-acabada uma peça é. Quando tudo é perfeito, nada o é. Começamos, lentamente, a valorizar os fundamentos históricos da Moda. O toque humano é cobiçado. Este retorno não é apenas nostálgico ou simbólico, é uma resposta prática a um mundo que nos isola. Perante uma crise ambiental e a desumanização do trabalho, o gesto manual torna-se uma forma de resistência, de reconexão. Marcas como a Bode, fundada por Emily Adams Bode nos Estados Unidos, foram pioneiras neste movimento. A marca começou por usar tecidos vintage reaproveitados — colchas antigas, toalhas bordadas, guardanapos esquecidos — para fazer peças únicas, profundamente enraizadas no gesto e na história. Cada camisa ou casaco era feito como se fosse um arquivo: um gesto de preservação, de respeito, de continuidade. Ainda no continente americano, Collina Strada, o projeto criativo de Hillary Taymour, adota uma abordagem quase performativa ao gesto. Nos bastidores dos seus desfiles, tintas são derramadas à mão O manual não é apenas um método, mas um manifesto. Ao partilhar o processo nas redes sociais, a marca convida o público a participar. Se o assunto é artesanato, não há como deixar de mencionar Loewe, que sob a direção de Jonathan Anderson, reinventou o gesto manual como a mais elevada expressão de luxo. Coleções centradas na técnica do macramé, cerâmica e tecelagem foram exaltadas não apenas pela sua beleza, mas pela sua complexidade e singularidade de aquilo que só a mão humana consegue fazer.
Facilitado por nomes como Anderson, a cultura mudou. Este renascimento do gesto vem acompanhado de uma mudança no discurso: falar de artesanato deixou de ser sinónimo de DIY. Tornou-se uma linguagem estética e ética com legitimidade própria. “Feito à mão” já não significa apenas exclusividade, mas sim cuidado pessoal, uma relação com um humano e não uma máquina. Escolho, se calhar egoistamente, pensar nesta recente revalorização do trabalho manual como uma necessidade, não apenas um capricho. As novas gerações, tanto de criadores como de consumidores, procuram na Moda algo que os reconecte ao mundo real. Na nossa sociedade progressivamente virtual e volátil, o trabalho manual oferece-nos uma segunda opção: é tátil, lento, íntimo. É um antídoto contra o abisso online. Na era do fast fashion e da produção algorítmica, o verdadeiro luxo pode ser este: a garantia de atenção e imperfeição que só nós temos. Mais do que exclusividade, o futuro do luxo parece estar a inclinar-se para a intimidade, para a permanência, para a comunidade. Fazer não é só construir uma peça. É construir um espaço onde se pode estar com os outros, aprender com eles, criar algo maior do que nós. Na Marni, essa ideia tomou forma entre tecidos e pincéis. Mas pode nascer em qualquer lado. Basta um gesto. E outro. E mais um. Até que o fazer já não seja só criação, mas uma relação. O que me parece mais urgente, neste regresso ao artesanal, não é tanto a estética, mas o espaço que este modo de criação fomenta. Um espaço de encontro. Numa indústria que tantas vezes isola o criador na torre de marfim do génio, o fazer com outros devolve humanidade ao processo. Fazer à mão é um ato de certa forma emocional. A partilha de algo que foi produzido por outro não é banal, não é automatizado. Lembra-nos que alguém esteve ali, com tempo e intenção, a dar forma ao invisível. Talvez por isso o gesto seja, agora, mais relevante do que nunca. Porque nos lembra que fazer não é só produzir: é partilhar. E, nesse gesto partilhado, há comunidade.
Publicado originalmente na The Arts & Crafts Issue, de maio 2025. Mais conteúdo na edição em print.
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08 May 2025