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Será possível viver sem amor?

08 Feb 2021
By Pureza Fleming

“Não temos nada além do amor / Não temos antes, princípio nem fim / A alma grita e geme dentro de nós: Louco, é assim o amor / Colhe-me, colhe-me, colhe-me!” E, à boleia do desabafo do poeta persa, Rumi, propomos, então, a questão: e viver sem amar, é possível?

“Não temos nada além do amor / Não temos antes, princípio nem fim / A alma grita e geme dentro de nós: Louco, é assim o amor / Colhe-me, colhe-me, colhe-me!” E, à boleia do desabafo do poeta persa, Rumi, propomos, então, a questão: e viver sem amar, é possível? Com quatro letras apenas se escreve a palavra amor. E é das palavras pequenas, uma das maiores — senão a maior — que o mundo tem. Caso contrário, porque é que é sempre quase tudo sobre o amor? Os livros, os filmes, a arte, “aquela série nova”, as canções (as canções são sempre sobre o amor), as neuroses e as depressões, as alegrias imensas, as maiores tristezas, a vida — quem nunca “viveu para alguém“? E a morte — morre-se de amor, morre-se por amor e mata-se por amor. Tal como exprimia o grande poeta persa, Rumi (século XIII), “o amor é um mundo em si mesmo." O mexicano Octavio Paz (1914-1998), vencedor do Nobel da Literatura de 1990, argumentava, por sua vez, que "o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte [...] Para lá da felicidade ou da infelicidade, embora seja as duas coisas, o amor é intensidade; não nos oferece a eternidade mas a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço: aqui é lá,e agora é sempre. No amor tudo é dois e tudo tende a ser um.” Recentemente, numa entrevista ao jornal Público, o escritor Salman Rushdie (Bombaim, Índia, 1947), dizia: "O amor é o único assunto. Na vida humana tudo é acerca do amor ou da sua ausência.” Perguntaram a Freud, pouco antes do seu falecimento, o que era absolutamente vital para a vida das pessoas. Ele terá respondido de forma breve e simples: amar e trabalhar. “Não é possível uma sociedade sem amor. Este ocupa um lugar central na vida das pessoas. O amor é parte integrante dos projetos reflexivos de existência dos homens e das mulheres”, clarifica o sociólogo e investigador Bernardo Coelho. Psicóloga clínica e terapeuta de casal e família, Rita Fonseca de Castro acrescenta que “o que parece ser consensual é a necessidade que os seres humanos têm de estabelecer vínculos. Desde que nascemos que dependemos da relação com o outro, sendo que o nosso cérebro se desenvolve no contexto da interação com outros cérebros, os bebés precisam que os seus cuidadores se liguem a eles para que estes consigam sobreviver. Muitos anos de investigação versada na vinculação mostram o impacto que as experiências precoces têm no estabelecimento de relações em idade adulta.”

Resumidamente, "sem laços, não sobrevivemos e não é possível viver sem se experienciar amor e sentimento de pertença”, e a perda de vínculos significativos é um dos maiores fatores de risco para o desenvolvimento de quadros depressivos e ansiogénicos. Não se ter uma rede de suporte é prejudicial, tornando-nos mais vulneráveis ao aparecimento de problemas de saúde e de psicopatologias. Isso vale para qualquer um de nós. Mas, de acordo com Bernardo Coelho, o amor é uma conquista das mulheres, é uma conquista do feminismo: “A primeira vaga do feminismo tem como preocupação — além da evidente luta pelo direito ao voto — a reivindicação da centralidade do amor e da escolha amorosa. Até esta altura a conjugalidade e o casamento eram, sobretudo, percebidos como uma transação em que as mulheres eram transferidas, como objeto, da casa do pai para a casa do marido. Isto é, as mulheres eram um objeto silencioso, sem vontade e sem subjetividade, transacionado da lei do pai para a lei do marido. As mulheres silenciadas e objetificadas eram percebidas como garantia da reprodução das famílias. Do mesmo modo, a sexualidade das mulheres era entendida como reprodutiva, circunscrita a um único parceiro, e afastada do desejo e da expressão das suas vontades — tal como a conjugalidade estava afastada da ideia de escolha orientada pelo amor. A reivindicação da centralidade do amor por parte das mulheres altera este cenário: no lugar da transação há escolha, no lugar da objetificação da mulher há a sua afirmação como indivíduo desejante e com vontades a serem respeitadas, no lugar de uma sexualidade meramente reprodutiva passa a haver uma sexualidade no quadro do amor e do desejo. Logo, a centralidade do amor é algo profundamente emancipatório. O amor é uma conquista das mulheres”, remata.

Mas o que é, afinal, o amor?

A ideia de amor é algo concetual. O que eu entendo como “amor” pode ser totalmente diferente da ideia que o leitor tem relativamente a este sentimento. Quando os budistas se referem ao amor, por exemplo, o que estes querem dizer é que desejam o conforto e o bem-estar de todos os seres. Porque sim, parece ser consensual que amores há́ muitos e formas de amar ainda mais — tantas quantos os vínculos profundos, e com relevância emocional, que vamos estabelecendo ao longo da vida, seja o amor pelas figuras de referência familiar, seja o que sentimos pelos amigos próximos ou outros que façam parte da nossa rede social de suporte.

“Se considerarmos o amor romântico, aquele que nos faz ter vontade de estar em relação e de partilhar a vida com outra pessoa, também podemos considerar que este assume diferentes formas, sobretudo relacionadas com o percurso das relações amorosas”, adianta Rita Fonseca de Castro, que relembra o trabalho da antropóloga Helen Fisher, que estuda as relações amorosas há mais de 30 anos. Segundo Fisher, diferentes tipos de amor são experienciados de formas distintas, existindo três sistemas cerebrais que dão origem a três tipos de amor: luxúria ou impulso sexual – parte da atração sexual circunscreve-se à satisfação sexual, sem consideração do parceiro no futuro; paixão ou amor romântico – mais do que uma emoção, diz respeito a um movimento, dos mais poderosos que o ser humano possui, que faz querer estar em relação apenas com uma pessoa; compromisso ou apego profundo – é o que surge depois de toda a “explosão química” que os dois anteriores provocam no cérebro, referindo-se a um processo dirigido a estabelecer a relação do casal como um projeto a longo prazo. Podemos apelidá-lo de “amor maduro.”

Aquela autora gerou controvérsia ao defender que se podem sentir os três amores em simultâneo, ainda que por pessoas distintas. Para Fisher, o amor romântico “é uma das sensações mais poderosas na terra”, mas é também um vício: “Um vício maravilhoso quando tudo corre bem, e um vício horroroso quando tudo corre mal [...] É como ter alguém acampado na nossa cabeça.” O amor romântico é, contudo, um instinto básico de acasalamento. Não é um instinto sexual — o sexo leva-nos lá para fora à procura de diversidade de parceiros.

O amor romântico concentra a energia para o acasalamento e para começar o processo de acasalamento com um único indivíduo. “Diferentes amores cumprem diferentes funções e alimentam diferentes partes dos seres humanos. Não se excluem, nem se substituem uns aos outros. O amor romântico é, muitas vezes, idealizado em crenças como a da existência de uma ‘alma gémea’, existindo pessoas que vivem toda a vida sem o terem conhecido, independentemente do motivo. Nestes casos, podem existir outras formas de amor que também trazem preenchimento, como o amor pelos filhos ou pelos pais. Muitas vezes, o incondicionalismo, a estabilidade e o preenchimento que estas segundas fontes de amor contêm, podem ajudar a viver melhor com a ausência do amor romântico”, relembra Rita Fonseca de Castro. Explica que também existe quem encontre forma de colmatar a ausência do amor romântico com a capacidade de “dar amor” a outros que se encontrem em situação de vulnerabilidade e/ou de necessidade. A ausência de amor maternal é, também, passível de reparação, mediante a vivência de outras experiências emocionais significativas. “Devido a profundas transformações sociais, as pessoas têm uma maior autonomia em relação às instituições. Isto traduz- se numa maior margem de manobra individual. Ou seja, o amor, as relações amorosas e a sexualidade passam a poder ser vividas de formas múltiplas e com enorme plasticidade e variabilidade. Isto é, amor não significa necessariamente casamento. Sexualidade não acontece apenas na redoma de relações amorosas. As pessoas encontram múltiplas formas de viver o amor e até a conjugalidade. E, ao longo da vida, uma pessoa pode experimentar viver o amor de formas diferentes: casar, divorciar-se, voltar a viver em união de facto ou ter uma relação tipo living apart together”, acrescenta Bernardo Coelho.

Existirá alguém que não seja capaz de amar, de todo, como por exemplo, um psicopata? É esta questão que coloco a Rita Fonseca de Castro. “Alguém com psicopatia é capaz de sentir amor, embora expresse as suas emoções e estabeleça relações de uma forma distinta da que entendemos como ‘normal’, funcional e saudável. Se concebermos amor como um sentimento focado no outro, que procura corresponder às necessidades de outrem, não poderemos afirmar que alguém com psicopatia – sobretudo se severa – o sinta, na medida em que não se ‘dá à relação e ao outro’, tem dificuldade em estabelecer vínculos fortes e criar intimidade, sendo incapaz de sentir e de demonstrar empatia, o que leva à incapacidade de compreender o que os outros estão a sentir. [...] A tendência predominante será a de manter relações de curta duração, ao invés de investir numa relação duradoura, uma vez que agem de modo impulsivo, são emocionalmente indisponíveis, e focam-se na satisfação das suas necessidades. Alguém que tenha, por exemplo, uma perturbação de personalidade narcísica, procurará o amor como um veículo para satisfação das suas próprias necessidades, sendo a vivência do amor centrada em si, desprovida de altruísmo. Neste contexto, não cabe aquilo que designamos por amor. Existe ainda quem tenha dificuldade em sentir amor no que este tem de entrega ao outro, de exposição de fragilidades/ vulnerabilidades, por considerar a vivência do amor, no contexto de uma relação próxima, como uma situação ameaçadora. Esta perceção de ameaça pode suceder por motivos diferentes, sendo o mais frequente, a ocorrência de vivências traumáticas em idades precoces”.

Bernardo Coelho, por seu lado, relembra que, seja qual for a circunstância, o amor sempre prevalecerá: “O amor não perde importância nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário, terá cada vez mais importância. No limite, as pessoas divorciam-se, separam-se e terminam relações, não porque tenham deixado de acreditar no amor. Terminam as relações, precisamente, porque acreditam no amor, acreditam que o amor que merecem viver ainda tem de ser construído.” Feitas as contas, depreende-se que não é possível viver sem amar ou sem experienciar qualquer tipo de vínculo que mereça essa designação: “Tratar-se-á, com certeza, de uma existência com lacunas. Poderá́ considerar-se que faltou o preenchimento de uma componente importante da vida, na qual se exercitam muitas competências que não são postas em prática em nenhum outro tipo de vínculo humano. Além da singularidade do que se recebe, e das necessidades que são preenchidas, numa relação de amor recíproco”, remata Rita Fonseca de Castro. Sim, o amor é importante. E sim, amar é fundamental. Mas também requer alguma audácia. Ou, tal como sugeria Stendhal (1783-1842), “o amor é uma flor muito bonita, mas devemos ser bravos o suficiente para a colher lá no alto do precipício.”

Amar, entregar o coração de bandeja a outro ser humano, não é, de facto, para meninos. Amar é despirmo-nos por completo: de corpo, de alma e de coração. É pormos a nu a pessoa que somos — quer gostemos daquilo que vamos descobrir, quer não. Há uns tempos comentava com uma amiga precisamente esta questão: é que anos e anos de terapia não são, muitas vezes, capazes de fazer aquilo que uma relação com alguém que se ama — e tudo o que isso implica — pode fazer. Argumentava que, pelo menos no meu caso, a terapia tinha sempre funcionando como uma aula teórica da vida, enquanto a minha relação amorosa seria a aula prática. Uma relação a dois é capaz de nos colocar frente a frente com o nosso lado mais dark, pois não há nada que esteja tão ligado ao amor como a nossa vulnerabilidade, as nossas inseguranças ou as nossas fraquezas. Uma relação amorosa também o é porque nos mostra tudo aquilo que queremos (mas, principalmente, tudo aquilo que não queremos) ver, acerca de quem somos lá no mais fundo do nosso íntimo. Despidos e desnudos, o amor põe-nos cara a cara com o nosso “eu” mais profundo, e darmo-nos conta da pessoa que habita no nosso interior e dos seus issues pode não ser (na maioria das vezes não é) pera doce. Durante muitos anos defendi que estaria melhor sozinha, e que a dificuldade na entrega era uma realidade (sem ter essa consciência, claro). Hoje, entendo que uma das maiores e mais importantes razões para alguém decidir entregar-se a outro alguém (além do óbvio amor e da inevitável paixão — quando batem de verdade) é, também, a capacidade que esta partilha (para o bem e para o mal, na alegria e na tristeza) tem de nos fazer crescer e evoluir enquanto seres individuais — doa o que doer. E essa é uma das dificuldades com que nos presenteia o amor, a mesma que nos impele a desistir (ou melhor, a fugir) das relações — é que, convenhamos, ninguém quer constatar a pequena besta que também pode habitar dentro de si. Porém, assim é a vida, assim é o amor e assim é tudo aquilo que é único e singular neste complexo universo. Nunca ninguém disse que seria fácil, apenas que valeria a pena. É que aquela zona de conforto, que pode muito bem ser o estar-se sozinho e, portanto, livre de confrontos, é um lugar muito bonito (e, indiscutivelmente, plácido e pacífico), mas não há nada de muito grandioso que possa crescer a partir de lá — pelo menos no que respeita ao conhecimento do nosso mais obscuro e, na maioria das vezes, mais inacessível, eu.

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