Moda   Tendências  

E viveram felizes para (quase) sempre

09 Mar 2020
By Mathilde Misciagna

A arte do restauro usada para prolongar a longevidade dos nossos bens mais queridos é tão velha quanto nós. Quando estes tinham valor, cuidávamos deles até se desintegrarem completamente. Hoje em dia isso raramente acontece. Está na altura de catapultarmos para o futuro a sabedoria do passado.

A arte do restauro usada para prolongar a longevidade dos nossos bens mais queridos é tão velha quanto nós. Quando estes tinham valor, cuidávamos deles até se desintegrarem completamente. Hoje em dia isso raramente acontece. Está na altura de catapultarmos para o futuro a sabedoria do passado.

ⓒ Getty Images
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Era uma vez uma terra longínqua, mas familiar, onde as roupas e acessórios viviam para sempre. Talvez não para sempre, porque a vida não é um conto de fadas, mas por muito tempo.

Toda a gente que presta um mínimo de atenção ao que se passa no mundo está preocupado com as alterações climáticas. É a crise existencial do nosso tempo, que nos obriga a repensar a relação que temos com tudo à nossa volta - desde a forma como nos deslocamos, ao que comemos, passando obviamente pelo que vestimos. É claro que mudanças significativas têm que acontecer para criar um amanhã mais sustentável mas, no que diz respeito à Moda, delinear esse amanhã permanece alvo de grande debate.

Nos anos 60, uma pessoa comum comprava menos de 25 peças por ano e, no entanto, gastava 10% do seu salário anual em roupa. Hoje, a quantidade aumentou para cerca de 75 peças, porém o valor pago por elas corresponde a apenas 3,5% do salário anual. Compramos muito mais por muito menos dinheiro e a diferença, muitas vezes, é paga pelo ambiente. Desde o excesso de roupa que é queimada ou deitada fora depois de cada estação (a Agência de Proteção Ambiental Americana estima que 11,2 milhões de têxteis acabem em aterros todos os anos) até à quantidade de recursos não renováveis e emissões de gases que estão envolvidos em todas as fases da sua produção, o modelo de fast fashion criado pelo Homem está a virar-se contra o seu criador. Este modelo, ao comprimir os ciclos de produção e fabricando designs que refletem a última tendência, permitiu aos compradores expandir os seus guarda-roupas e, ao mesmo tempo, atualizá-los rapidamente. Em quase todas as categorias de vestuário, os consumidores mantêm consigo peças cerca da metade do tempo relativamente há 15 anos atrás e, numa produção anual global de 100 biliões de peças, descartamos cerca de 78%. Algumas estimativas sugerem até que tratamos as roupas de preço baixo quase como se fossem descartáveis, livrando-nos delas depois de apenas sete ou oito utilizações - e às vezes nenhuma.

Sustentabilidade ou responsabilidade? 

Considerando que só recentemente estamos a compreender as verdadeiras implicações do nosso vício em comprar, e que parece ter sido ontem que começámos a considerar métodos, formas de pensar e tecnologias que sejam capazes de operar mudanças estruturais na nossa forma de consumir todo o tipo de objetos, temos infelizmente que assumir o facto de que quase tudo o que deitámos fora até hoje ainda existe algures no nosso planeta. Posto isto, e uma vez que o nosso próprio guarda-roupa faz parte da cadeia de suprimentos (contrariamente ao que queremos acreditar), melhorar a forma como compramos, preservamos e dispomos dos nossos objetos - nomeadamente no que ao setor da Moda diz respeito - é da responsabilidade de todos. As iniquidades da Moda, que são muitas, não podem fazer-nos sentir impotentes. Aumentar o tempo de vida da nossa roupa de um para dois anos reduz a sua pegada ambiental em cerca de 24% e todos sabemos que esta pode ter um futuro ainda mais longo, basta nós deixarmos. Obviamente escolher ficar com roupas e acessórios significa ter que os restaurar, como se de uma peça de arte se tratasse, porque é normal e inevitável que o uso os danifique gradualmente. Sustentabilidade é uma palavra que já foi usada (muitas vezes irrefletidamente, e até com alguma desonestidade, por vários agentes da indústria) até à exaustão. Apesar de ser necessária, devemos focar-nos antes no conceito de responsabilidade. Sustentabilidade implica fazer tudo perfeito e, em vez disso, devemos começar um processo de olhar para a Moda com responsabilidade. Nesta mudança de paradigma jaz a resolução para uma série de problemas. 

A revolução passa pelo restauro 

ⓒ Getty Images
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Enquanto sociedade, não foi há muito tempo que restaurar roupa era um hábito enraizado, bem como ser capaz de costurar um botão ou subir uma bainha. Tornámo-nos menos inclinados a usufruir do que já temos ou a “reparar” (o chamado make do and mend) porque a fast fashion tornou a roupa tão acessível que não há, aparentemente, incentivo para o fazer. E mais, com a aceleração das tendências - se antes havia apenas duas estações, outono/inverno e primavera/verão, agora existe também resort, cruise e pre-fall - os consumidores estão permanentemente a ser seduzidos a comprar coisas novas. Mas para uma indústria que está sempre focada no futuro, será olhar para o passado a melhor forma de progredir quando se fala de sustentabilidade? Num mundo em que estamos sempre prontos para consumir mais e mais, é importante reconhecer aquilo que já temos. Restaurar ou readaptar roupas pode ajudar a diminuir o desperdício e, ao mesmo tempo, a dar uma nova vida ao que já vestimos e amámos. A sociedade está paralisada numa economia linear, onde as coisas são produzidas, usadas e deitadas fora, mas à medida que nos interessamos mais pelos efeitos nefastos da fast fashion e começamos a compreender a sua verdadeira magnitude a longo prazo, a importância de cuidar das nossas roupas como um antídoto para tudo isto é imperativa.

Tom Of Holland e o mending activism

Os chamados mending activists desafiam o consumo passivo através do restauro - tornando-se numa forma de se envolver, de resistência e de partilha. Reparar torna-se num ato físico, político e social. Para eles, os objetos não foram apenas reparados, reformados e reprojetados, dando-nos também a oportunidade de considerar o seu valor como possuidores de uma nova beleza, novas histórias para contar, desempenho e propósito - o que não deixa de ser uma forma bastante romântica de pôr as coisas. Um destes mending activists é Tom of Holland que para além de ter criado o visible mending program (em que as costuras se tornam uma nova caraterística da peça) também já exibiu as suas peças em diversas exposições, nomeadamente no Camberwell College of Arts, no incrível Department of Repair. “Sou criativo desde que me lembro, estava sempre a desenhar, a pintar, a construir com Legos… Acho que é de família, pois o meu pai tem um arrumo com todas as ferramentas de bricolage e estava sempre a consertar coisas”, explica à Vogue. “A minha primeira memória relacionada com tecidos não é muito clara, mas sempre gostei de bordados e costumava fazer panos em crochê para os meus avós. Isso tornou-se lentamente num interesse em fazer roupas e depois em repará-las. Mesmo na adolescência, já reparava peças usando a técnica visível - escondendo manchas com bordados ou missangas. Agora reparo roupas por comissão e costuro à mão as minhas próprias roupas.” 

Cada vez que restauramos uma peça, estamos a renovar o nosso compromisso com ela, a nutrir-lhe uma ligação emocional, a colocar-lhe uma marca muito nossa. Com este sentido de pertença, sentimos uma certa responsabilidade em usá-la. Privilegiados como somos, obviamente não precisamos de remendar nada como necessidade básica de nos mantermos vestidos. Longe disso. Por vezes até faz mais sentido, do ponto de vista económico, comprar um algo novo para substituir, em vez de pagar para ser restaurado localmente por profissionais. Então qual é o incentivo para restaurar, hoje, e o que é que torna a roupa digna de tal investimento? Nós. Roupa é só roupa, acessórios são só acessórios, até os colocarmos num contexto de significado. E as “coisas” tornam-se depois muito mais do que isso: são agora compromisso, conforto e constituem uma ligação à nossa história pessoal e à jornada através do slow fashion. Para Tom, toda a gente tem roupas de dia-a-dia, por isso “existe um ganho maior quando se repara as roupas comuns, e não as mais especiais. Essa é provavelmente a maior mudança de mentalidade necessária.” Acrescenta ainda que “conhecimento é o começo da mudança. Acredito que educar as pessoas, sem confronto, sobre os problemas em torno da indústria do vestuário pode levar a mudanças duradouras.”

Trazer de volta a cultura do restauro 

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A tendência para a moda sustentável encabeçada por designers e exemplos positivos como Emily Bode ou Bethany Williams [finalistas do Prémio LVMH] pode estar no início, mas, de facto, há uma velha guarda de marcas para quem oferecer reparações e estender o tempo de uso dos seus produtos não é novidade. Porém, até no setor do luxo, onde se poderia pensar que gastar uma pequena fortuna garantiria toda uma vida de uso, as reparações depois da garantia de um ou dois anos são difíceis de conseguir.

Alterações e restauro continuam a ser um setor pouco moderno e bastante fragmentado, mas as empresas que oferecem aos consumidores progressivamente mais conscientes maneiras de cuidar ou prolongar a vida útil das suas roupas estão a crescer. The Restory (focada em sapatos, carteiras e pequenos artigos de pele, e disponível online para todo o mundo), The Clothes Doctor (serviço de alterações, personalização e reparações online de roupas) ou Save your Wardrobe (uma ferramenta que nos incentiva a aproveitar ao máximo o que já temos no roupeiro, oferecendo recomendações de styling personalizadas e todos os serviços que podemos precisar desde restauro, lavandaria e até revenda num só local) são três exemplos de startups que trazem gradualmente de volta a cultura do restauro, colocando um fim ao modelo de Moda linear.

A tunisina Hasna Kourda, fundadora da app Save Your Wardrobe, viu na avó o maior exemplo de Moda circular. O processo que esta adotou ao longo dos anos, e que a neta relata no seu blog, foi mandar fazer as suas roupas por medida de forma a que um vestido de festa depois de muito usado pudesse ser reduzido a vestido de dia-a-dia e depois a camisa de dormir. Posteriormente tornar-se-ia num pano de cozinha ou enchimento para colchões. No final do seu ciclo de vida, aquilo que tinha inicialmente sido um vestido de noite, a par com outras peças do género, transformava-se num tapete de patchwork conhecido como Kilim.

Homenagear o criador anónimo 

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Uma rápida pesquisa no Google mostra-me, por exemplo, que os fatos do Príncipe Charles são de abotoadura dupla - o que indica que ele está indubitavelmente a par das tendências. Mas mais importante do que isto, tem sido documentado, nomeadamente numa entrevista dada ao The Telegraph no passado fevereiro, que estes mesmos fatos têm sinais visíveis de restauro. O ano passado a jornalista de Moda Marion Hume descobriu uma caixa que continha mais de 30 anos de cortes e sobras de tecido provenientes dos fatos deste membro da realeza britânica, esquecidos a um canto do atelier do seu alfaiate Anderson & Sheppard. “Sempre acreditei em prolongar ao máximo a vida das minhas roupas e sapatos… através de patchwork e reparações”, contou ao jornal. “Desta forma, consigo estar na moda uma vez em cada 25 anos.”

Mas para além de notável, a filosofia de Charles não poderia ser mais oportuna. Vejamos: a nossa relação com bens materiais é única e complicada. Para além do entusiasmo inicial de ser dono de algo novo, precisamos de confiança para garantir uma relação longa. Essa confiança advém de compreendermos que o preço que vemos na etiqueta reflete não só a perícia e aptidões que estiveram envolvidos na produção de determinada peça como em que condições estava quem a fez.

Sim, a fast fashion tornou a Moda acessível às massas, mas com isso também veio uma desvalorização dos materiais, mão-de-obra e habilidades necessárias para esta ganhar vida. Não é segredo que os artesãos são a chave do futuro da Moda. “Ao homenagear os artesãos estamos a celebrar o que é único e a compreender melhor como a roupa é feita. Comprar sem esse conhecimento significa que não podemos valorizar realmente nada, nem perceber que uma peça barata foi feita por uma pessoa anónima, mas muito qualificada, que está sob uma enorme pressão em fazer muitas peças por dia, geralmente usando materiais inferiores e em más condições de trabalho”, explica Tom. “Espero que o interesse pelo artesanato continue e que as pessoas valorizem mais aquilo que é feito à mão. E existe melhor maneira de homenagear o criador anónimo do que prolongando a vida útil da roupa que ele fez para nós?” Há um ponto de vista artístico também - um artista raramente pinta dois quadros iguais, assim como um escultor não esculpe duas figuras idênticas. A Alta Costura, por exemplo, tal como as belas artes, é feita à mão, para um cliente, que a vai presumivelmente estimar e reparar depois de qualquer estrago, em vez de se livrar dela. Adotando este ethos aos nossos próprios armários, podemos começar a visualizar um futuro mais limpo para a Moda.

Os objetos não nos fazem felizes 

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Curiosamente (ou não) estamos a afogar-nos em ‘coisas’ e procuramos desesperadamente a luz ao fundo do túnel. A prova disso é que a solução pareceu-nos vir do Japão através da especialista em organização pessoal Marie Kondo. O método KonMari centra-se numa questão muito famosa: Será que este objeto me provoca alegria? Caso a resposta seja não, deve ser descartado. Há quem também tenha encontrado a salvação através de figuras assumidamente minimalistas, que possuem entre 50 a 100 objetos no total.

É fácil compreender o apelo destas ideologias alternativas, que refletem a mesma verdade fundamental: os objetos não nos fazem felizes. O minimalismo é simples, mas extremo; enquanto que o método nipónico parece ser mais atraente, uma vez que promete uma relação mais completa com os nossos pertences, depois de nos termos livrado dos que não-nos-provocam-alegria. Porém KonMari exige demasiado dos nossos bens e, ao mesmo tempo, essas exigências ficam muito aquém do necessário. Usufruir daquilo que já nos pertence é uma filosofia bastante pragmática. Significa perguntar às nossas coisas se elas servem o seu propósito. A resposta, se conseguirmos ser honestos e resistir a um momento de tédio, é frequentemente sim. Usufruir trata-se de impedir-nos de descartar, substituir ou aprimorar. Trata-se de usar as coisas bem e usá-las até estarem “estragadas”.

O desafio, obviamente, é que usufruir apenas daquilo que já temos é contrário à natureza Humana, que quer sempre mais e mais. Enquanto produtos da evolução, estamos predispostos a procurar novidade, variedade e excesso; por outras palavras, ser frívolo é ser humano. Aspirar ao puro pragmatismo - isto é, possuir apenas necessidades - é um equívoco. Fazer compras não é apenas conveniente e prazeroso; é inevitável. Para mudar o sistema temos de mudar a cultura que o alimenta. Amar a Moda, mas questionar o motivo pelo qual nos sentimos tentados a fazer compras. Estarmos mais atentos aos impactos dos nossos próprios hábitos e à forma como cuidamos da roupa. Onde o nosso sentido de valor não é definido pelas últimas tendências, mas pelas histórias por trás das nossas roupas, para que se torne um terrível desperdício descartá-las demasiado cedo.

Longevidade não deve ser um luxo 

O luxo sempre foi um pouco mais sobre longevidade, mas o objetivo é que a longevidade não seja efetivamente um luxo, e este mindset abranja todos os intervalos de preço. Tal como Orsola de Castro (co-fundadora do movimento Fashion Revolution e autora de um livro que vai ser lançado este ano, Loved Clothes Last) ressalva numa entrevista de fevereiro dada ao Financial Times, o aftercare de artigos de luxo não vai salvar o planeta - este precisa de ser acessível e mainstream: “As crianças precisam de saber que se o uniforme da escola se rasgar, existe alguém para o arranjar. Este serviço precisa de ser replicado até que se torne barato. Portanto, independentemente das suas roupas terem custado 2 euros ou 2000 euros, se gosta delas, vai restaurá-las” e ainda acrescenta “estou a dizer o oposto de Marie Kondo quando incentivo a que não se vejam livres das vossas coisas”.

Ainda deitamos têxteis que não queremos nos caixotes do lixo da nossa casa. Ou doamo-los a lojas e associações de caridade antes de considerar outras opções disponíveis; e, vamos ser francos, as pessoas nos países em desenvolvimento não estão a vingar através das roupas que não queremos, estão a soterrar-se nelas.

No que diz respeito à Moda, escolher como e onde é que ela vai ter o seu fim é tão importante como saber de onde veio. Restaurar não significa que não possamos comprar algo novo, significa apenas que não podemos permitir que algo seja deitado fora. O que antes seria motivo de vergonha, hoje é de orgulho. Reparar as nossas roupas e acessórios é uma forma prática, simbólica, criativa e revolucionária de dizer que as minhas roupas me refletem enquanto pessoa, são a pele que eu escolhi, os meus princípios e a minha história.

Long live our clothes.

Mathilde Misciagna By Mathilde Misciagna

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