O coreógrafo Jean-Paul Goude, à direita, responsável pela organização do desfile de celebração do 200º aniversário da Revolução Francesa, e o designer de moda Azzedine Alaia à esquerda, preparam o look de Jessye Norman para o desfile.
Há anos que andamos a dizer que Moda não é só Moda, é um indicador político e económico. Bem, agora não se surpreendam quando, a seguir a um verão de quiet luxury, tivemos um inverno de fascismo.
Há cerca de dois anos uma tendência particularmente irritante era impossível de evitar. O quiet luxury inundava as redes sociais como a chuva que não nos abandona neste inverno prolongado. O entusiasmo excêntrico reservado ao luxo que se anunciava, que gritava a sua presença assim que entrava numa sala, trocava-se por algo infinitamente mais subtil. Esta estética, indissociável da glorificação do conceito old money, apoia-se nas ideias clássicas de luxo: materiais de qualidade em silhuetas discretas. Claro que, como é costume, a tendência não vive da roupa que a compõe, mas da fantasia que projeta. Rapidamente o quiet luxury se viu replicado em fast fashion (lá se foi o luxury) e em milhares de campanhas publicitárias (lá se foi o quiet). Em paralelo à tendência de Moda, vimos outras bem mais preocupantes: a ascensão da direita no mundo ocidental. A proximidade entre as duas é demasiada para ignorar. A Moda não existe num vácuo, não é a roupa que usamos, é uma linguagem, um narrador silencioso. Absorve e destila ansiedades culturais, sociais e políticas muito antes de estas serem explicitamente articuladas. Vestimos a nossa história. Vestimo-nos para o futuro. Mas as nossas inclinações estéticas não são meros reflexos — são também premonições. As marés de estilo são controladas por luas de ideologia, subtilmente inaugurando paisagens políticas que se aproximam.
A própria natureza dos ciclos da Moda depende do fator da nostalgia. A única razão pela qual, enquanto adultos [millennials], apreciamos a roupa que era popular nos anos 90, ou princípios do século XXI, é porque nos transporta para uma época em que o mundo era mais simples, não porque fosse de facto menos complicado viver — já Billy Joel cantava que o mundo está a arder desde que começou a girar —, mas porque a perceção de uma criança é simplificada. As calças low rise não são só feitas de ganga, são tecidas com as fibras de um mundo por descobrir. A minha geração não é especial: dos vestidos flapper da década de 20 à silhueta Dior dos anos 50 e até à ressurreição do minimalismo dos anos 90, todas as gerações fazem exatamente a mesma coisa. Mas, e se esses ciclos não forem apenas retrospetivos, mas códigos premonitórios? Afinal de contas, a indústria não está isenta da força gravitacional das mudanças globais. Os designers, conscientemente ou não, criam não só peças de vestuário, mas também zeitgeists. E, por vezes, o futuro é tecido nas malhas muito antes de o reconhecermos. É neste contexto que entendemos o quiet luxury. O manifesto estético de caxemiras sem marca, silhuetas subtilmente feitas à medida, é completamente baseado numa estética que encontra as suas inspirações no estrato mais elevado da hierarquia socioeconómica. Sim, é inegável que é uma reação à logomania que, durante mais de uma década foi determinada como o manifesto de riqueza. Não importava o que se usava se não estivesse literalmente escrito quanto é que custava. E, ainda que apreciemos que já não seja preciso usar as etiquetas para fora para provar o que quer que seja, o quiet luxury pode ser, de alguma forma, ainda pior. Na sua essência, é uma glorificação de valores conservadores — quem tem dinheiro é glorificado pela estética de quem sempre o teve. É sobre exclusividade, não excesso. É sobre o poder de sussurrar o que os outros têm de gritar.
Seria insensato então tentar entender esta tendência num vácuo, especialmente à medida que o mundo descende numa distopia semelhante àquela que definiu os anos 30 e 40 do século passado. Como podemos considerar a glorificação de riqueza “clássica” como indicativa da mudança política para a extrema-direita? O regresso ao conservadorismo, a adoção do património, a rejeição subtil da acessibilidade democrática em favor da discrição da elite — serão estas inclinações meramente estéticas ou premonições culturais? Será o anonimato refinado de Loro Piana, The Row e Brunello Cucinelli uma profecia de exclusividade política? Historicamente, a moda tem sido tanto cúmplice como rebelde da esfera política. As linhas afiadas dos uniformes fascistas nos anos 30, a androginia desafiante da contracultura dos anos 70, o vestuário de poder da era Reagan-Thatcher — a roupa que usamos nunca foi neutra, sempre foi um instrumento relevante nas manipulações políticas dentro de uma sociedade. No início dos anos 2000, a riqueza ostensiva da logomania coincidiu com o excesso neoliberal, numa altura em que o mercado ditava a moralidade. Mas agora, à medida que o mundo oscila à beira do fervor populista, da incerteza económica e do conservadorismo cultural, a viragem da indústria para a discrição parece menos uma tendência arbitrária e mais um aceno silencioso às estruturas de poder em mudança. Não quero com isto sugerir que a moda seja um conspirador deliberado da mudança política. Mas é uma espécie de cúmplice — um espelho que, por vezes, reflete o passado e, outras vezes, prevê sinistramente o caminho a seguir. A beleza da moda está na sua ambiguidade, na sua recusa em dar respostas diretas. Consideremos o clima político nos Estados Unidos e na Europa. À medida que os debates sobre nacionalismo e disparidade económica se intensificam, há uma nostalgia crescente de tempos “mais simples” — muitas vezes codificados em escolhas de vestuário. O ressurgimento das marcas tradicionais, o domínio do tweed e das silhuetas estruturadas, a adoção de um vestuário formal: todos estes fatores estão alinhados com a mudança no sentimento político. O regresso ao quiet luxury parece, em muitos aspetos, uma rejeição da democratização da moda. Não se trata do que se pode pagar: trata-se de como se nasce, de como se é criado, se compreende. Trata-se de fazer parte de um grupo ideológico.
Como ex-estudante de sociologia, assim que as conversas de old money apareceram na minha timeline, um nome surgiu-me na mente: Pierre Bourdieu. Entre as suas várias teses sobre a forma como a nossa sociedade funciona, o sociólogo analisou a Moda como uma variável importante a considerar. Bourdieu argumenta que a Moda funciona como um marcador de capital social, reforçando as hierarquias de classe através do gosto e do juízo estético. O quiet luxury, neste contexto, não tem apenas a ver com simplicidade — tem a ver com capital cultural, com a capacidade de descodificar uma linguagem de riqueza que não é dita explicitamente. Trata-se de diferenciação através da subtileza, assegurando que apenas aqueles que “sabem” podem reconhecer e participar na sua exclusividade. Num clima político em que se assiste a uma divisão crescente entre as elites e as massas, a adoção do luxo discreto pode ser lida como uma reafirmação das divisões de classe, uma forma de assinalar o estatuto sem ostentação. Claro que esta não passa de uma teoria preliminar, o estudo da Moda não é uma ciência linear. Tal como podemos argumentar que o quiet luxury é um presságio do conservadorismo elitista, também conseguimos entendê-lo como uma resposta à exaustão coletiva pós-pandémica com o excesso. Num mundo em que a incerteza económica remodela os hábitos de consumo, poderá a tendência ser simplesmente a evolução natural do consumismo consciente? Claro que sim. Mas a dúvida não nos abandona. A questão mantém-se: estamos a vestir-nos para o mundo que queremos, ou estamos, manipuladamente, a vestir-nos em antecipação do que está para vir? A Moda, tal como a política, é uma negociação constante de identidade, poder e história. Não podemos, nem devemos separar as duas. Seja como profecia ou reação, as roupas que vestimos nunca são apenas roupas. São sussurros de revoluções passadas e de revoluções que ainda estão para vir. As roupas que estamos a usar andam sozinhas em direção a um futuro que desconhecemos.
Originalmente publicado no The Eternal Fools' Day Issue, a edição de abril de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.
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