Atualidade   Curiosidades  

Once upon a time

21 Jan 2023
By Pedro Vasconcelos

A história do veludo confunde-se com a história do mundo. Ela é o meio perfeito para explorar, não só o seu passado, como algumas das suas personagens mais célebres.

A história do veludo confunde-se com a história do mundo. Ela é o meio perfeito para explorar, não só o seu passado, como algumas das suas personagens mais célebres.

Artwork: João Oliveira
Artwork: João Oliveira

Tessitura Luigi Bevilacqua. É este o nome do último produtor de veludo tradicional em Veneza. Desde 1499 que a família Bevilacqua se encarrega de entregar o material mais luxuoso da História a algumas das suas figuras mais importantes. De aristocratas a papas, os artesãos italianos eram os responsáveis pela afluência do material no mercado de luxo do passado. Em tempos, a empresa chegou a ter mais de cem trabalhadores em simultâneo mas, nos dias que correm, este número encontra-se reduzido a uns meros sete. São estas poucas tecedeiras que se encarregam de preservar o património inestimável do veludo veneziano. O tecido é produzido nas mesmas oficinas que, antigamente, se encontravam repletas de vida e estão agora lotadas de teares vazios. A produção de um tecido deste género já não se enquadra num mundo que valoriza o imediato acima do tradicional. Cada tecido produzido pela Tessitura Luigi Bevilacqua é feito da mesma forma de há 300 anos, linha a linha, completamente à mão, exigindo uma dedicação e uma paciência cada vez mais rara. O veludo veneziano, mais que uma manufatura, é uma arte, um dos mais transversais símbolos de luxo do mundo. Desde faraós egípcios a monarcas dinamarqueses, muitos foram aqueles que, ao longo dos séculos, envergaram o tecido como derradeiro símbolo de status. Mas a história do veludo não escreveu a sua primeira página na província italiana do século XIV. Em vez disso, ela recua a um passado reconhecível apenas em contos de fadas. O veludo é a linha que liga esse mundo ao nosso, o fio que tece a história do mundo.

Veludo. Três sílabas que escondem em si a profundidade histórica do tecido. Oriundo do latim vellutus, ou vellus, significando “repleto de pelos” ou “pele de animal”, respetivamente, a sua origem etimológica revela-nos os primórdios ancestrais do tecido. Muito antes de invadir os mercados renascentistas europeus, anterior até à época medieval, o veludo remonta à cidade de Bagdade, em 786. Não, não nos esquecemos de um dígito, a origem do material recua a uma época onde os anos se escreviam com apenas três número. Certos históricos teorizam que a técnica para produzir veludo pode ser bem mais milenar, recuando dois milénios, ao início da Era Comum, leia-se 2000 AEC. O veludo, à semelhança de materiais como o cetim, são mais corretamente descritos como técnicas de produção do que materiais em si. A textura do veludo é alcançada através de um processo detalhado e complexo, especialmente numa época em que a sua produção à mão era a única opção. Se a sua origem “moderna” remonta ao Médio Oriente, numa altura em que o monopólio da sua produção estava concentrado no Egipto, à medida que o mundo comunicava entre si, o seu centro redirecionou-se para a Europa. As rotas de comércio do mundo antigo introduziram o veludo no mercado europeu onde, quase imediatamente, enfeitiçou os estratos superiores da hierarquia social. Graças à sua sumptuosidade, tornou-se o material por excelência dos trajes de monárquicos, eclesiásticos e até dos interiores dos palácios. A realeza e aristocracia europeia viram (ou melhor, sentiram nas suas mãos) o tecido como a metáfora ideal para representar a distância entre os seus contrapartes. Se o povo mal tinha dinheiro para linho, os privilegiados desse mundo escolhiam envergar um material complexo, pesado, inacessível. A obsessão com a exclusividade do material era tal que verdadeiras leis foram criadas para garantir que só um grupo selecionado de pessoas o podia usar. Sim, a obsessão com exclusividade na Moda não é recente, é milenar. Se achamos que gatekeeping roupa no Instagram é mau, imagine-se quão mesquinha era a nobreza renascentista para aplicar sentenças de morte a todos aqueles que pretendessem replicar as suas vestes. Foi exatamente isso que o rei inglês Henrique IV fez, no século XV, proibindo todos aqueles que não fossem aristocratas de utilizar o tecido.

 

O veludo é peculiar não só pela complexidade da sua produção, mas também pelo seu aspeto – a forma hipnotizante como reflete a luz cativou a atenção de alguns dos artistas mais importantes de todos os tempos. Lendas como Michelangelo ou Leonardo da Vinci ocupavam-se em tentar domar a técnica de produção do tecido. O fascínio da classe artística não se manifestava apenas em tentativas de produção, a sua representação estabelecia-se como uma imensa preocupação. De que forma podiam assegurar os pintores que toda a sumptuosidade do veludo era impecavelmente reproduzida na tela? Claro que a pintura não foi o único meio em que o veludo encontrou a sua representação artística, também na literatura existe uma multiplicidade de escritores enfeitiçados pelo tecido. Pense-se em Anna Karenina, de Leo Tolstoy, uma narrativa descrita por críticos como uma tempestade de veludo e intrigas. O comentário não se estranha, ao longo de mais de oitocentas páginas o mítico escritor russo detalha a história da personagem homónima à medida que esta sucumbe à decadência do amor e embarca numa viagem trágica rumo à loucura - e, eventualmente, à morte. O trajeto de Anna é de tal forma inspirador que inúmeras produções televisivas e cinematográficas já se ocuparam de dar cor às palavras de Tolstoy. De forma muito pouco surpreendente, os trajes em veludo são transversais a todos estes filmes e séries, não só pela precisão histórica, mas também pelo valor metafórico do tecido. O desejo latente, o escândalo iminente e o desastre inevitável são, de alguma forma, retratados perfeitamente pelo veludo. Mas nenhuma outra obra utiliza a metáfora do material de forma tão eficiente como E Tudo o Vento Levou (1939). No clássico filme, a personagem Scarlett O’Hara arranca as cortinas de veludo (verdes) da sala para as transformar num elegante vestido. Este ato desesperado é condizente com o estado da sua personagem: a menina mimada transforma-se numa vítima colateral da guerra civil americana e acaba na penúria, como muitos dos seus compatriotas. Transformar as cortinas numa peça de roupa é somente uma forma de tentar replicar riqueza, símbolo de um estatuto que já não possui.

 

Claro que, se procurarmos o valor metafórico do veludo, não precisamos de obras de ficção, mesmo que sejam as do mais alto calibre. Basta-nos pensar em figuras históricas como Marie Antoinette que, nas sombras do veludo, profetizava a sua inevitável tragédia. Desde os seus treze anos que a infame rainha de França substituiu as flores que lhe enfeitavam o extenso cabelo pelos laços de veludo, a analogia perfeita para o gosto pela decadência que a definiria para a eternidade. Marie Antoinette, eterna ícone de estilo, era a derradeira inspiração da Moda francesa. Conhecida pelo seu sentido de estilo, os aparentemente intermináveis recursos da Coroa permitiram que definisse as tendências da altura. Os robes à la française em veludo foram popularizados pela rainha que, até quando comparada com os estratos mais altos da aristocracia, se destacava pelo luxo dos seus vestidos. Independentemente do seu fatídico destino, a influência de Marie Antoinette é percetível nos dias que correm: designers tão distintos como Christian Dior, Vivienne Westwood, Christian Lacroix, ou Thierry Mugler utilizam a luxuosa estética da rainha como ponto de referência. De musa em musa se constrói a história da Moda, e se o legado aveludado de Marie Antoinette chega aos dias de hoje, outros existem que informam de forma igualmente significante o modo como pensamos no tecido. John Galliano, Karl Lagerfeld, Alexander McQueen, são apenas três dos titãs que se inspiraram em Marquesa Luisa Casati. Conhecida pelo seu estilo, paixão por drama e patronagem, Casati era herdeira de uma das maiores fortunas de Itália no final do século XIX. Órfã a uma tenra idade, aos quinze anos Luisa Casati era a mulher mais rica do seu país. Mas esta não é a sua única relação com o mundo da Moda. Inspiração do designer Paul Poiret, do pintor Augustus John e do escritor Jean Cocteau, Casati vivia obcecada com a ideia de se tornar numa obra de arte. Com dinheiro e conexões, a Marquesa era uma das personagens mais influentes do seu tempo. As suas festas eram lendárias, antros repletos das figuras mais importantes do mundo – o próprio Picasso relatava a excentricidade dos seus jantares. O seu gosto pela extravagância encontrava-se refletido no seu estilo, de sumptuosos robes de veludo adornados com penas a cobras pintadas de dourado (convenientemente sedadas, claro) a enfeitar o seu pescoço, Casati era uma verdadeira força da natureza. De certa forma, a herdeira foi a última representante da verdadeira decadência associada ao veludo. O aberto hedonismo com o qual Casati comandava a sua vida inspirou os maiores artistas da sua era, da mesma forma que o veludo tinha feito séculos antes. Mas foi também este a razão do seu fado: aos 49 anos Casati tinha acumulado uma dívida de mais de 25 milhões de dólares e, forçada a exilar-se em Londres, extinguiu também a paixão com a qual vivia anteriormente.

 

O veludo nunca deixou de ser uma constante desde que foi apresentado ao mundo, há séculos, mas o seu significado alterou-se quase completamente. Afastando-se cada vez mais da exclusividade do passado, ao longo do século XX diferentes estéticas instrumentalizam o tecido. Desde a divertida década de 60 à cultura boémia e hippie, dos crop tops dos anos 90 aos sets de loungewear de marcas de fast fashion, o veludo adapta-se ao mundo em que vivemos. Escusado será dizer que a manufatura do veludo se encontra praticamente extinta, substituída por robóticos processos industriais. A maior parte do veludo que se encontra hoje em dia é composto por materiais sintéticos como poliéster ou viscose. Até mesmo o chamado veludo de seda é, em grande parte, misturado com rayon, uma malha sintética. Acabamos a nossa jornada onde a iniciámos, nas salas repletas de teares vazios, um dos únicos sítios que mantêm o processo de manufatura original. A história do veludo é, em grande parte, a história de um certo passado que já não volta. Um tecido que, somente pela sua beleza, conquistou a humanidade. Inevitável símbolo de uma arte que se fossiliza, o veludo é uma relíquia de um mundo cada vez mais longínquo.

 

 

 

Publicado originalmente na edição The Velvet Touch da Vogue Portugal.

 

Pedro Vasconcelos By Pedro Vasconcelos

Relacionados


Moda   Compras  

As melhores lojas vintage de Copenhaga neste momento

25 Apr 2024

Moda   Compras   Tendências  

Trend Alert | Ombros Assimétricos

25 Apr 2024

Atualidade  

Mulheres de Abril

25 Apr 2024

Atualidade   Curiosidades  

Celeste Caeiro, do Franjinhas para os livros de História

24 Apr 2024