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Mãos à obra: eis porque o artesanato é benéfico para a saúde mental

03 Jun 2025
By Rita Petrone

Pooja Mor fotografada por Andrew Jim e com styling de MJ Molina para o The Arts & Crafts Issue da Vogue Portugal, publicado em maio de 2025.

Um workshop de cerâmica de manhã, uma sessão de crochet à tarde... Meter as mãos na massa permite-nos delinear os limites do nosso próprio universo criativo — num ato de escapismo que define o artesanato como a materialização da catarse que rege a saúde e o bem-estar.

Desde que me lembro que vivo rodeada de colas, tintas, alicates e toda uma panóplia de materiais que dão origem a algumas das mais diversas técnicas artísticas e artesanais. Filha (única) de uma professora de educação visual, tive a sorte de crescer com a oportunidade de explorar — e desafiar — os limites do lado mais criativo do cérebro, e o caos que nasce de qualquer criação artística tornou-se o meu braço direito e o meu amigo imaginário. Da cerâmica aos azulejos, da costura às mixórdias que surgem das artes plásticas, a minha infância foi passada num espectro de criatividade que ainda hoje se mantém bastante presente no meu cérebro.

Com o tempo (e o acumular de vivências e responsabilidades), os trabalhos manuais tornaram-se uma presença secundária no meu dia a dia, mas a verdade é que foram essas experiências que moldaram muito da minha visão individual e contribuíram para que a criatividade assumisse o leme de muitas facetas da minha personalidade. Segundo Inês Serôdio, psicóloga clínica, a criatividade está primariamente presente durante a infância — “em crianças, somos páginas em branco”, afirma —, no entanto, tendo em conta o ritmo acelerado da vida quotidiana, “torna-se importante criar momentos em que desligamos dos problemas — como mecanismo de regulação e também de coping”.

Em termos práticos, esta atitude quase literal de “meter as mãos na massa” funciona como um método que nos proporciona períodos de paz, calma e felicidade num dia a dia que, por vezes, acumula stress e outros sentimentos negativos. Dar asas à imaginação permite-nos reconectar com a nossa criança interior; além disso, diferentes partes do cérebro são ativadas quando participamos em atividades artísticas, e praticar a criatividade pode mesmo ser considerado um exercício de bem-estar — possivelmente mais divertido que uma ida ao ginásio. A ideia é pensar no cérebro como um músculo e na criatividade como uma parte essencial do mesmo: assim, como qualquer outro músculo ou habilidade, é essencial treiná-la ao longo da vida para que esta se desenvolva e nos deixe à altura de novos desafios.

Acima de tudo, ser criativo inspira-nos a pensar fora da caixa e permite-nos dar vida a peças únicas que carregam dentro delas um pouco da nossa identidade. É dessa lógica que surgem os hobbies, nomeadamente os que se inspiram no artesanato para criar peças artísticas e tangíveis. “Incluir hobbies e atividades criativas na nossa rotina tem, essencialmente, o poder de criar momentos de descontração e desconexão com o que se passa ao longo do dia”, diz Serôdio. Este tipo de atividades contribui para o nosso sentido de identidade fora do horário de expediente — e até há estudos que sugerem que um hobby tem o potencial de melhorar a nossa performance quando chega a hora de voltar a picar o ponto.

Mas o que é, afinal, isto de ter um hobby? Por ser um conceito tão abrangente, não existe uma concordância absoluta sobre os alicerces que o caracterizam; de uma forma simples, um hobby (ou passatempo) refere-se a qualquer atividade realizada regularmente durante o tempo livre, sob o simples mote de lazer por prazer. Um hobby assume-se sem expectativas de retorno ou longevidade, num companheirismo ou catarse que nos ajuda a gerir emoções e a reduzir sentimentos negativos de uma forma produtiva. “Hobbies criativos podem servir tanto o propósito de expressar emoções que inibimos noutros contextos, como o de simplesmente desligar momentaneamente de emoções que nos atormentaram ao longo do dia, permitindo-nos a distância necessária para lidar com elas de forma mais direta e menos dolorosa”, afirma Serôdio.

Além disso, muitas vezes, estas atividades, nomeadamente as que implicam um trabalho artesanal em grupo, como workshops, servem também como um elo entre as pessoas, dando origem a uma comunidade que promove momentos de convívio e que, segundo a psicóloga, “contribuem para o desenvolvimento de capacidades sociais e interpessoais e aumentam o sentido de pertença, podendo levar a uma melhor autoestima e alargamento da rede de suporte, que é essencial para o bem-estar global”.

Segundo diversos estudos e investigações, os benefícios de saúde física, social e mental associados aos passatempos são inúmeros; hoje em dia, temos à nossa disposição uma panóplia quase infinita de atividades e, por isso, a parte mais difícil desta equação deixa de ser tomar a decisão de começar a praticar um hobby, mas escolher qual o mais adequado para nós.

Em retrospetiva, a quantidade de projetos criativos aos quais já me dediquei (embora a curto prazo) ao longo dos anos — desde criar joalharia, bordados e crochet a peças de decoração em argila e até telas (admito que tentar a minha sorte na arte de fazer velas continua na minha to-do list) — provavelmente não terá sido a mais saudável das abordagens. No entanto, Serôdio admite que, no que toca à escolha de um passatempo, não há certos nem errados e que, muitas vezes, é uma questão de tentativa e erro: “o hobby certo para nós é aquele que nos traz prazer, que nos traz algum tipo de benefício emocional e psicológico e que, de alguma forma, nos permite sentirmo-nos eficazes na sua realização”.

A psicóloga clínica relembra que há atividades que necessitam de paciência e persistência da nossa parte, visto que “não é expectável que sejamos bons a qualquer coisa que experimentamos pela primeira vez — até porque não temos de ser bons no [nosso] hobby, temos apenas de nos sentir bem e de gostar de o fazer”. É também crucial lembrar que nenhuma atividade é melhor que outra, e que as diferenças entre um hobby intangível e uma atividade focada no artesanato são, essencialmente, ao nível das zonas do cérebro mais utilizadas para cada tipo de tarefa: por exemplo, “os hobbies de trabalhos manuais ajudam a desenvolver a motricidade fina, coordenação, atenção e concentração”. Assim, o artesanato e os trabalhos manuais surgem como uma forma de aliar o útil ao agradável, e dar vida a peças tangíveis ao mesmo tempo que desfrutamos dos benefícios, que Serôdio acredita serem transversais a qualquer tipo de passatempo, como a redução da ansiedade e do stress, a estimulação da criatividade ou a promoção do autoconhecimento.

Dos tricots e crochets à olaria ou joalharia, criar artesanato permite-nos entrar num estado de flow, uma espécie de reino cerebral regido pela criatividade e que promove uma melhor ligação entre o bem-estar do corpo e da mente. Os movimentos repetitivos aliados a este tipo de atividades criativas ajudam a entrar nesse estado mental, o que contribui para o abrandamento do ritmo cardíaco e a diminuição dos níveis de cortisol — a mítica hormona do stress, libertada pelas glândulas suprarrenais em momentos de grande ansiedade. Por sua vez, há estudos que sugerem que o resultado final que nasce de um projeto de artesanato funciona como um shot de felicidade e gratificação imediata, devido à sensação de job well done aumentar os níveis de dopamina no cérebro — a substância conhecida pelo seu papel crucial no sentimento de prazer e motivação.

Já um estudo científico publicado na American Public Health Association confirma que a prática de artesanato não nos deixa apenas com uma sensação de realização: é também uma forma significativa de expressão pessoal e individual. O estudo revela que a arte ajuda as pessoas a expressarem experiências que são demasiado difíceis de pôr em palavras, e que a expressão artística pode contribuir para a manutenção ou reconstrução de uma identidade positiva.

Apesar dos benefícios associados às mais variadas arts and crafts serem valiosos para uma saúde física e mental cada vez mais plena, a verdade é que, embora os hobbies possam ter um efeito terapêutico, a sua prática (por muito regular que seja) não substitui um método de terapia acreditada. “Existem terapias acreditadas e cientificamente estudadas que recorrem à arte como recurso para a realização do trabalho terapêutico”, diz Serôdio, “mas isso é diferente de ter um hobby criativo. [...] Para ser terapia (processo em que se encara os problemas, levando eventualmente ao alívio dos sintomas), tem de existir um modelo teórico orientador da intervenção e um profissional que domine esse mesmo modelo”. Ainda assim, a psicóloga revela que os hobbies criativos podem ter um efeito terapêutico.

Um estudo no British Journal of Occupational Therapy sugere uma relação significativa entre a frequência de tricotar e a sensação de calma e felicidade — especialmente quando feito em grupo ou comunidade, o que, por sua vez, melhora também o contacto social e promove o desenvolvimento de competências na área da comunicação. No entanto, num mundo que vive cada vez mais no limiar entre o capitalismo e o consumismo, é na cultura dos side hustles que os hobbies encontram o seu maior potencial inimigo. A pressão social que dita a monetização de cada faceta das nossas vidas impõe pressões e limites criativos a uma atividade cuja natureza assenta nos motes do prazer e lazer. Por essa razão, Serôdio acredita que a monetização de um hobby acrescenta uma pressão desnecessária e não expectável à sua prática: “a componente de lazer pode ficar comprometida se houver a pressão de produzir ou de atingir um determinado objetivo, acabando por neutralizar aquele que seria o papel dessa atividade”, diz a psicóloga clínica.

Na procura pela mítica fórmula da felicidade, os hobbies são os eternos companheiros da imaginação e criatividade. Seja qual for a atividade à qual nos escolhemos dedicar, os passatempos servem um propósito de bem-estar, e têm como objetivo primário o de nos acrescentar algo de bom e ajudar a lidar com o stress e a ansiedade que acumulamos por via do mundo que nos rodeia. Numa espécie de materialização que surge de um momento de catarse, é entre workshops de cerâmica ou ateliers de corte e costura que nasce a verdadeira receita para o bem-estar interior — e um carimbo autêntico do artista que (níveis de talento e perfeccionismo à parte) vive em cada um de nós.

Originalmente publicado no The Arts and Crafts Issue, a edição de maio de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.

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