Dj, ativista, designer, “mulher trans e negra”, assim se descreve Honey Dijon.
Há mais de 20 anos que dá música às noites de Nova Iorque, cidade que a transformou numa das mais curiosas figuras da house music. Dj, ativista, designer, “mulher trans e negra”, assim se descreve Honey Dijon. A sua mensagem deixa as margens do underground noturno e ganha fôlego aos olhos do grande público. Porque as discotecas não são apenas locais de diversão e hedonismo. Os pactos de liberdade, ao longo da História, também têm começado na pista de dança.
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© Ricardo Gomes
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"Estás a salvo?” É a primeira pergunta que faço a Honey Dijon. A nossa conversa telefónica começa com um nó na garganta. As frases que pronunciamos são deixadas a meio. Evocamos artigos que lemos nos últimos dias. “Como se espalhou tão rápido o vírus em Itália?”, pergunta. O país está em estado de sítio, morreram milhares pessoas. O estranho COVID-19, que dizimou a Ásia, avança agora sobre a Europa e a América. Em Lisboa, todos os locais abertos ao público fecharam. E, no momento em que falamos, um estado de emergência prepara-se para ser decretado. Só o isolamento pode evitar a contaminação. Esquecer as mágoas na pista de dança deixou de ser possível. Acabámos de entrar numa época em que não podemos dançar presencialmente uns com os outros. “Eu só quero que o mundo se cure. Este vírus está a afetar tudo e todos, não olha a camadas sociais ou raças. É difícil pensar como há duas semanas as nossas vidas eram tão diferentes, do dia para a noite tudo mudou. Quando passarmos este momento da História, o facto das pessoas poderem estar juntas outra vez será certamente muito espiritual. E, enquanto artista, quero ser uma facilitadora nisso.”
"Quero que as pessoas sejam livres, sexuais, quero que se vistam e se arranjem para sair, que se riam e se excitem."
A estranheza do início da nossa conversa telefónica desaparece, a voz de Honey volta a ganhar segurança. As suas frases podiam funcionar como versos de uma música dançante tornada hino, bastaria juntar-lhes a batida certa. “Quero que as pessoas sejam livres, sexuais, quero que se vistam e se arranjem para sair, que se riam e se excitem. Quero criar ambientes onde seja possível o abandono. É o meu propósito como Dj e não mudou desde que comecei há 20 anos.” Nunca conheci Honey Dijon pessoalmente, dancei no entanto com a sua música até ao nascer do sol, à beira rio no Lux em Lisboa. Quando está na cabine de Dj, a sua longa silhueta agita-se tanto como as de quem dança à sua frente. “Para fazer os outros dançar, tens de dançar tu também”, diz. Na sua última atuação, imparável, o público lisboeta gritava para que a música não cessasse. Honey, que se auto-intitula “Mama” de todos os seus fãs, obedeceu. Queimava incenso na cabine. O sol já estava alto no céu quando nos deu descanso.
A aura de Honey Dijon e a maneira como atiça a androginia parece querer evocar o Nightclubbing de Grace Jones do início dos anos 80. A sua reputação não pára de crescer. É como uma musa que parece ter vindo das caves mais marginais para salvar o clubbing de uma padronização. Assim, conta-se que atuou de peito à mostra no Panorama Bar do Berghain, em Berlim (onde a liberdade sexual é celebrada e as câmaras telefónicas são proibidas). Num vídeo para a Vogue Itália, em que veste roupas de Vivienne Westwood, Honey dança fazendo algo parecido. Está na realidade a celebrar o seu corpo. “Ninguém fala da sexualidade trans, e ela é sempre vista de um ponto de vista heteronormativo, nunca ninguém nos pergunta como damos prazer aos nossos corpos. São sempre reduzidos aos órgãos genitais que temos, só que as pessoas têm sexo com diferentes tipos de corpos. Fim da história.... Há pessoas que têm um pénis e mamas, outras têm músculos e uma vagina. E há sempre esta controvérsia: diz-se que as mulheres trans enganam os homens heterossexuais. Mas… Como se pode enganar alguém quando há atração?”
A artista vive atualmente em Berlim, cidade pela qual trocou Nova Iorque. As avenidas sem fim tornaram-se demasiado corporativas e gentrificadas, a festa ali já não tem o mesmo sabor. “Eu digo sempre que nasci em Chicago e fui educada em Nova Iorque, para onde me mudei no final dos anos 90. Fui sugada pelo mundo da noite, ia sair para dançar e fui aceite por ser quem era.” Honey é uma defensora da club culture que existia na era pré-internet. Sente que a conversa evocada por esta época deve continuar “As discotecas eram uma maneira de teres acesso à tua comunidade, e também de sobreviver. Na altura, a maioria das trans viviam à noite, ou eram sex-workers ou atuavam como performers... As discotecas permitiam às pessoas marginais ganhar dinheiro, e sobreviver. Existia ali um network, de médicos ou profissionais de saúde que podiam ajudar alguém que tivesse HIV por exemplo. As discotecas são sítios muito importantes para mim... E bom, na altura não vivíamos com esta noção de números, não dependíamos de quantas pessoas nos seguiam.” Honey refere-se às redes sociais. Já antes o eram mas, nesta quarentena, impõem-se como o principal meio de comunicação. “O nosso vocabulário, não era policiado. E talvez eu faça parte da última geração em que a identidade não depende de um concurso de popularidade. Agora é quase como se as nossas vidas se tivessem tornado corporativas também”. A idade de Honey permanece um mistério – terá nascido algures na década de 70, época em que ouvia a sua mãe cantar Gospel aos domingos de manhã. “Os meus pais faziam festas de garagem e eu ficava à entrada a ouvir as gargalhadas e a alegria daquilo tudo”.
"A house music foi criada por pessoas negras e queer e o mainstream não olhava para essas culturas como agora."
Por volta dos 13 anos começou a arranjar bilhetes de identidade falsos e a aventurar-se nas primeiras investidas noturnas, a vestir-se para ganhar outra idade. Honey descreve-me, então, a magia das primeiras festas de house music, que tinham dress codes específicos. “Foi através dos black kids que imitavam os looks que viam em revistas que comecei a ouvir falar da Moda italiana e francesa. Consegues imaginar o que faz um miúdo black dos subúrbios com a L’Uomo Vogue em casa?”, pergunta. “As pessoas vestiam-se para dançar e dançavam até que as roupas caíssem”, relembra. A História acabou por revelar a importância social da house music, na maneira como democratizou a pista de dança. Era o sítio onde os marginalizados se juntavam sem julgamento. Foi nessas festas, originárias de Chicago, que passou a juventude. “Tens de perceber, a house music foi criada por pessoas negras e queer e o mainstream não olhava para essas culturas como agora”.
Teve o primeiro trabalho aos 16 anos. Repunha stocks numa farmácia. “Isto significava que às vezes metia água nas prateleiras e outras vezes revistas. Foi assim que descobri as silhuetas do Azzedine Alaïa e as fotografias do Gilles Bensimon. Fiquei obcecada com as imagens e de imediato comecei a tentar perceber quem fazia o quê nas produções.” Pergunto-lhe se era popular na adolescência e Honey lembra-me que o termo não-binário é relativamente recente: “Tem tipo cinco anos este termo, não? Portanto não tinha muitos amigos. Havia muita misoginia nos meios masculinos e patriarcais. Se eras uma pessoa feminina e te apresentavas como um rapaz, assustavas as pessoas.” Os seus amigos eram as revistas de Moda e os discos com as suas fichas de créditos. Deram-lhe aquilo a que chama uma educação. As publicações que lhe salvaram o quotidiano adolescente, celebram-na agora. É frequente vê-la nas primeiras filas da Burberry, ou de Rick Owens. Assinou diversas vezes a banda sonora dos desfiles de Kim Jones para a Louis Vuitton.
Nova Iorque terá funcionado como um viveiro de contactos. Durante anos, tocava nas noites da icónica Ladyfag. Na 11:11 e na Battle Hymn, a festa que se afirmou como um lugar de resistência quando Trump foi eleito ou quando, noutra parte da América, na discoteca Pulse, um massacre homofóbico foi cometido em junho de 2016. No último ano, em colaboração com a Comme Des Garçons, lançou a linha Honey Fucking Dijon. “É uma plataforma onde vou poder trazer de volta universos de subculturas que desapareceram”. Nestes dias de isolamento, trabalha na segunda coleção. No verão passado, Madonna pediu-lhe um remix para a canção, I Don’t Search I Find. “Foi profundo, ela está conectada a um momento da História que amo, e envolvida com o Keith Haring e o Basquiat. Os três estão ligados aos clubes de Nova Iorque do início da década de 80, foi neles que começou a cantar. E sempre foi tão vocal durante a epidemia da Sida e a favor dos gays.” Honey vinca que só pretende misturar músicas de artistas que partilhem os seus valores musicais.
Há um vídeo de uma Boiler Room, em Melbourne, no qual Honey Dijon junta o discurso I Have a Dream, do ativista Martin Luther King, às batidas da sua música. É arrepiante. O discurso de 1963 diz: “Tenho um sonho que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela qualidade do seu carácter.” Diz-se que a house music não é groove mas um sentimento de liberdade. As batidas de Honey aproximam-se disto com convicção. Dançamos sozinhos agora, numa estranha quarentena. Quando isto tudo acabar, que resoluções cumprir? Quando voltarmos a dançar, como vai ser?
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