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E ao anoitecer

09 Jun 2020
By Patrícia Domingues

“E ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão/ deixas viver sobre a pele uma criança de lume/ e na fria lava da noite ensinas ao corpo/ a paciência o amor o abandono das palavras/ o silêncio/ e a difícil arte da melancolia.”

“E ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão/ deixas viver sobre a pele uma criança de lume/ e na fria lava da noite ensinas ao corpo/ a paciência o amor o abandono das palavras/ o silêncio/ e a difícil arte da melancolia.” E assim Al Berto havia resumido na perfeição tudo aquilo que importa dizer aqui e agora. Só que a poesia nunca é resumo. É o tudo. É matéria que habita em palavras, é vida que envelhece, que se renova, vida a que nos colamos quando tudo o que havia para dizer já foi dito. E agora que a noite se pôs e o sol repousa novamente, agora que anoitece, chega a altura de continuar a prosa. Esta é a canção noturna das aves do paraíso.

Fotografia de Rui Palma. Realização de Ruben de Sá Osório.

“Não sei se as pernas ficaram bem”, diz Jenny, minutos depois de nos encontrarmos num pequeno café na Praça da Alegria. Jenny refere-se à fotografia que fez há dias para a Vogue, onde um círculo de fogo a rodeia enquanto tenta não enterrar as botas na areia. Ver esta fotografia impressa é como testemunhar uma vida diante dos nossos olhos. Jenny renasce por entre o perigo, a discriminação, a violência, com o poder de mil fénix, com a beleza de mil Whitneys, com o brilho de mil pérolas. Jenny sempre soube que dentro de si vivia uma presença estranha.

Não sabia o que era nascer com o corpo de uma mulher no de um homem, nunca tinha ouvido falar disso, não sabia que havia um nome para si: transexual. Também ainda não tinha descoberto o nome Jenny, nem Whitney, nem Rihanna, nem Beyoncé, nem outras, as outras mulheres que Jenny, mulher, interpreta noite após noite no palco do Finalmente. “Até entrar no mundo do espetáculo não conhecia ninguém transexual. Nem sabia o que isso era, ponto.”

Na primeira atuação “tremia, tremia”, “mas quando passei a cortina e entrei em palco a ovação foi tão grande que esqueci tudo”. Tocava Emotions, de Mariah Carey. Entretanto, já pisou outros palcos, que se escassearam como o cachet, já fez um pouco de tudo, mas tem uma vida pessoal tão reservada que há muito que não revela. Separa casa e trabalho, as personagens da vida real, mas guarda a discriminação que sofreu ao longo da vida e agradece aquelas que chegaram antes de si e que lhe abriram portas, tendo-se tornado um exemplo a seguir como forma de agradecimento.

“Tenho contribuído um bocado, até porque não sou de me deixar ficar.” Privilegia o saber estar, o saber falar. A melhor memória que tem são os elogios que ouviu no fim de uma peça de teatro, a Tropa Fandanga, que até ganhou um Globo de Ouro. Mas a memória não chega com o prémio, chega antes com os colegas que vieram ter consigo no fim da peça e lhe disseram “adoramos trabalhar contigo, és superprofissional”. É uma mulher cheia de classe, gosta de bem vestir, gosta de exibir as curvas, de dosear a sensualidade.

 

Desde pequena o seu olhar fascina-se pelo que tenha glamour escrito nas entrelinhas, como as pérolas dos colares da mãe, que usava para compor o look em frente ao espelho, acompanhada por uma escova de cabelo a fazer a vez de microfone. “O primeiro playback que aprendi em inglês, sem saber que o tinha aprendido, é o I Love to Love da Tina Charles. Não sabia o que estava a dizer, mas cantava-a frente ao espelho perfeitamente.” Antes, também em miúda, já tinha subido ao palco em paletas de madeira a fazer a altura, no quintal com as amigas, interpretando as músicas do Festival da Canção.

O seu sonho agora é abrir um pronto‑a‑vestir, ou fazer um desfile de Moda, a confeção feita por ela – tirou um curso de costura e acumula anos e anos de vestidos para apertar (começou há cerca de 30 anos), lantejoulas bordadas sobre veludos e sedas, o guarda-roupa exímio a que uma diva pertence. Algo “sensual, sempre, confortável e eventualmente algumas coisas descontraídas e outras mais exuberantes, para festas”, descreve a coleção que tem pendurada na cabeça.

"Até entrar no mundo do espetáculo não conhecia ninguém transexual. Nem sabia o que isso era, ponto." Jenny Larrue

Hoje traz um vestido comprido com padrão floral, decote proeminente, o cabelo feito de ondas a flutuar ao natural, o rosto desmaquilhado e um sorriso nervoso mas constante. A voz sai-lhe baixa, terna, os olhos vagueiam pelo ar à procura de respostas para depois pousarem nos nossos e se expressarem, mais do que as palavras. É recatada, discreta, sonhadora. Uma descrição inusitada se a virmos em cima de um palco. Altiva, exuberante, intocável.

Jenny é a “pérola negra” do Finalmente, a Whitney Houston portuguesa, a mulher com um corpo escultural e uma pele que reluz ao mínimo raio de sol. Mas também é a mulher que gosta de jogos de estratégia, que já viu o filme Avatar sete vezes, que já trabalhou num restaurante e numa livraria. É a mulher que não sabe dizer a sua idade, “43 ou 44 anos, deixei de contar, não ligo muito a essas coisas”.

É uma caixinha de surpresas e a maior delas todas é que a sua caixa está fechada a sete chaves. “É um bocado antagónico”, confessa. “Porque durante o espetáculo estou rodeada de muita gente e depois preciso de momentos sozinha. Acaba por ser muito violento estar ali todos os dias com tanta gente. É muita energia, nem sempre boa.” Mas sente-se acarinhada? “Sim” É isso que a faz continuar? Sorri: “Provavelmente sim.” 

Conhecemos-lhe os papéis em A Raiz do Coração, de Paulo Rocha, Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, La Petite Lola, a participação nos Morangos com Açúcar, Jura, Olhos de Água, Tropa Fandanga, Zululuzu e o videoclipe dos Pista (A Tal Tropical). Vemo‑la atuar, os olhos cobertos de tons brilhantes, o batom vermelho e vemos nela histórias de outras vidas. Ficamos na incerteza se serão as de Houston ou Beyoncé e que parte do papel é sua. 

As duas fundem-se numa visão em tons de rosa com brilhantes. Passa algum tempo fora do palco – já o fez mais, o cansaço tem vindo a torná-la uma estrela efervescente, que vemos nascer e desaparecer em palco. Conta-me que passava as noites a ouvir desabafos dos espetadores do Finalmente, que lhe contavam as deceções amorosas, pediam-lhe conselhos sobre paixões inibidas. Oh, mas são desconhecidos, reajo. “Essa é outra das questões”, diz Jenny. “A mim, são-me desconhecidos, mas para eles é como se me conhecessem.”

É por isso que gosta desta quase vida dupla, estrela no palco, desconhecida em terra, porque lhe abre portas a ter uma vida “normal”. A ter a vida daquela mulher “lindíssima” que um dia viu enquanto passeava com a mãe, uma mulher “lindíssima” de mãos dadas com um homem, a mulher que, naquele momento, ainda pequena, desejou ser. E que hoje é. Uma mulher lindíssima.

I’m a biological women with a third leg, diz a bio do Instagram de @lolaherself. Tem humor. Tem fotografias lindas. Tem um feed que respeita mais ou menos um esquema cromático. É uma drag século XXI. Imagine que Victoria Beckham e Rihanna tinham tido uma filha. O resultado mais provável seria Lola. Sassy, melhores piadas do mundo e sapatos, Lola nasce para desmistificar uma procura por género, agora gender fluid.

Vítor Lopes é Vítor quando tem de ser Vítor e Lola quando tem de ser Lola. Os dois convergem, os dois divergem, a paz reina. “Costumo dizer que a partir da minha personagem drag eu consegui ser o homem que sou hoje”, fala, claramente agitado. As mãos gesticulam freneticamente, os olhos brilham, tudo parte do entusiasmo que tinha – tem, por, mais uma vez, colocar Lola em frente à câmara. She’s ready for her close-up. 

"Sempre tive aquela coisa de esconder, de pensar ‘quando a minha mãe descobrir o que vai pensar’." Lola Herself

Descreve-a como “uma hoe”, que “já existe desde 93 mas a primeira aparição foi em outubro de 2016 numa festa com a Conga Club”, mas, convenhamos, uma hoe humilde, entusiasta, dedicada. “Estava tão anjo nessa noite”, conta, recuando no tempo. “Entrei, maquilhamo-nos [Lola e Jnoir] num cubículo, numa casa de banho e fomos para a pista e eu passei a noite toda no palco a pensar ‘estás aqui a ser avaliado’, por isso nem bebi, praticamente não fumei, estava tipo isto é um trabalho, a encarar tudo da forma mais séria que devia, enquanto que este [Jnoir] esteve 30 minutos no palco e nunca mais o vi”, e olha com ar judging para o amigo. “Mas foi lindo, lindo, lindo, e foi também por causa do Januário que eu consegui entender o papel de uma drag numa festa a animar. Que é dares tudo e estares ali a ter o melhor momento com as pessoas que também vão ali para ter uma boa noite contigo.” 

A Lola nasce de unhas compridas, perucas de cores vibrantes e às vezes um par de sapatos rasos (que Januário odeia), enfim, toda uma licenciatura em “como ser drag” do YouTube. “Existe um filme, que eu nunca me lembro do nome, mas é basicamente sobre uma cantora que é um holograma e é criada com várias partes, a boca não sei de quem, os olhos de não sei quem. Eu acho que a Lola é um bocado assim”, e nesse misto de personalidades e vontades cabe também uma mensagem não filtrada de luta pela não discriminação.

Diz que o sente na pele, por ser negra, que tem de se esforçar um bocadinho mais que as suas “sisters”, mas que “está tudo bem”. Eu aguento lidar com isso. Bitches. O que não “está tudo bem”, o que nunca esteve “tudo bem”, e que talvez demore a estar “tudo bem”, é o assunto que vem, inevitavelmente, ao de cima. “A minha mãe sempre foi um obstáculo à minha criatividade”, começa. “Então eu comecei a fazer drag quando já vivia sozinho, mas sempre tive aquela coisa de esconder, de pensar ‘quando a minha mãe descobrir o que vai pensar’.” Era sempre o pensamento até ao dia em que descobriu. Ligou-me e perguntou-me se eu sabia quem era a Lola e eu disse ‘sim’ e ela ‘de onde?’ e eu ‘sou eu’. Olha foi assim, tal e qual, não me esqueço.”

A melhor forma que conseguiu arranjar de as apresentar foi agarrar num passatempo que faziam quando ele era pequeno, que era ver os Malucos do Riso, dizendo-lhe que a Lola era como uma personagem da série. “A única coisa que ela pediu foi que não pusesse fotos nu na Net. Obviamente que eu não ouvi mas pronto.” Sorri. Dezembro do ano passado marca a primeira vez que a mãe viu Lola. “Estivemos juntos, com as coisas da Lola no meu quarto, perucas, vestidos, saltos altos, tudo ali. E eu senti que a minha mãe simplesmente aceitou. Não me questionou, não me perguntou de onde vinha aquele sapato, chegou a lavar a roupa da Lola. Ela chegou a ver-me uma vez, eu de barba, peruca, full Lola, a experimentar os looks e perguntei-lhe ‘mãe, gostas?’ e ela: ‘Filho, não ponhas esse sapato, acho que podias pôr uns pretos.’ Eu não sei se ela aceitou, nem nunca irei saber, mas naquele momento, pronto são estas pequenas coisas, mas ela disse ‘é o meu filho’.” 

Os olhos enchem-se‑lhe de um brilho molhado. “It was good.”

I’m the one they warn you about é a mensagem escrita no perfil privado do Instagram de Januário e acho que nunca vi uma metáfora mais exata na vida. André Januário fala de forma pausada e pensada, mede as palavras, dá tempo aos pensamentos. Chega à Vogue com um look low‑profile, sendo o rosto (e Lola, que o acompanha) as peças mais proeminentes. Imaginá-lo-íamos como Jnoir, a sua personagem drag, como um sopro vestido a negro numa noite de verão. Só que Jnoir não sabe ser menos do que um furacão: ele é loud and clear, ele é candelabros de vidro, “não de plástico porque não refletem as luzes”, transformados em outfit, ele é descarado, altamente presente, forrado a inspirações de desfiles de Alta‑Costura e cristais. 

“Começaram a haver umas festas, umas festas bastante temáticas, e como gosto muito de Moda e sempre tive um lado mais criativo, quando comecei a sair à noite tive necessidade de me expressar. Comecei a levar um salto, um brilho, e entretanto já era uma peruca, um corpete, todo um look. Ou seja, foi uma coisa muito gradual e espontânea”, até chegar a uma estética “um bocado gótica, um bocado dark, mas ao mesmo tempo também gosto assim de um lado tipo pastéis, uma coisa girly girly, mais fofinha, sempre com um lado twisted. Um mix dos dois”. 

"Tens de ser tu. Se estás a fazer para os outros, it’s just another day. Tens de ter paixão.” Jnoir

Agora pedimos-lhe para vir com o cabelo natural e ele, pelo sim pelo não, mete quatro perucas na mala. Passa noites acordado a costurar, tem a mania da perfeição. Às vezes adormece no carro a caminho dos espetáculos onde a mãe o vai levar. Este é outro cenário que nunca achou vir a acontecer: a mãe levá-lo a espetáculos. Houve tempos em que tinha de sair às escondidas, dizer que ia dormir a casa de um amigo, lançar um cordel pela janela do quarto, qual Rapunzel, para fazer descer a sua roupa e as perucas postiças para o colo de um amigo. De cada vez que o sol se punha e ele pegava na mochila azul da Eastpak e se dirigia à porta de casa, os pais logo diziam “lá vais tu fazer palhaçadas”. É impressionante como os pais sabem sempre tudo. 

Para ele, as noites da mochila azul sempre foram coisas sérias. O transformismo é a sua oportunidade de pôr os sonhos em palco, de levar o amor pela Moda a materializar-se em roupa de palco, de receber a atenção que talvez lhe tenha faltado a vida toda. Os aplausos. Nunca foi aplaudido por ser diferente até se transformar em Jnoir. Passou a adolescência no quarto fechado com a Internet, aberto com a Internet, em Semanas de Moda e desfiles, resguardando aquilo que era demasiado precioso (demasiado avant‑garde) para minar com preconceitos. “As pessoas às vezes criticam ‘ai aquilo não dá para usar no dia a dia’ e eu pois claro que não, lindas, aquilo [a Moda] é uma expressão de criatividade máxima, um sonho.”

A grande diferença veio com um artigo que fez para a Vogue Portugal, com fotografia assinada também por Rui Palma. Foi o selo de aprovação que precisava para a família e foi a catch line perfeita para acabar com qualquer discussão de rua. “Ai não sei se devia contar”, diz Januário. “Devias. Devias. Deviiiassss”, riposta Vítor. “Então, houve uma vez que estava no Purex ou no Bairro, uma coisa qualquer, e uma francesa estava a embirrar comigo e eu já estava assim irritado e virei-me e disse 'olha, linda, quem apareceu na Vogue fui eu e não tu, ‘tá?'”. Vítor: “Ele usava essa catch phrase everywhere.” “Eu estava orgulhosa! E eu só dou assim um lamirezinho para pôr a pessoa no lugar quando é necessário.” 

Hoje diz que está mais calmo. Que fez uma pausa dos excessos, muito embora a loucura continue lá. Está mais introspetivo, é normal, a cada noite que se torna dia amadurecemos. Tem o sonho de vir a gravar música, mas, até lá, continuará a subir aos palcos drag e a deixar a dose de destruição necessária. “Isto são coisas muito efémeras e o que eu tenho aprendido ao longo destes anos é que tens de trabalhar em ti próprio e tens de fazer pelos motivos certos, tens de ser tu. Se estás a fazer para os outros, it’s just another day. Tens de ter paixão”, tens de arrasar vestido com algo o mais próximo possível daquilo que já foi criado pelas mãos de John Galliano. E depois acrescentar uns cristais. E uma peruca, e umas unhas e os saltos mais gigantes que o planeta tenha criado. Se não deres tudo não vale a pena. O furacão Jnoir está pronto para entrar em palco. Não podemos dizer que não fomos avisados.

“As Marias e os Manéis acham que ser drag é só palhaçada e abana o cu, abana a cabeça, abana a peruca e está feito. Drag também tem uma mensagem muito política, não é muito usado é verdade, mas também tem esse lado ativista. Eu, o Simão sou, um bocado socialista, mas a Symone é hipermega comunista. 25 de abril, seeeeempre.” Simão entra de rompante pelos escritórios da Vogue, a voz imediatamente enche o espaço, a temperatura sobe, ele de leque numa mão, cigarro na outra, uma camisa colorida envolta por uma nuvem de fumo feita de um amor confesso e glamorizado ao tabaco.

É altivo, direto, às vezes rude, outras tantas uma doçura, mas não se deixe enganar. Tem as ideias bem mais assentes do que as sobrancelhas finas que em dias de mau humor lhe sobem até à nuca, tem as respostas tão bem formuladas quanto o número de vezes que a palavra “puta” lhe sai disparada. O corpo cheio de formas plus size que se recusa a endireitar. A língua, essa, afiadíííssima.

É difícil perceber onde começa o Simão e acaba a Symone – pelo menos para quem está de fora, porque responde logo que “o Simão é bicha, muito apaneleirada, mas como Symone sou muito mulher, mas não é mulher de ser mulher, é de pensamento. Para mim a mulher é uma inspiração. A mulher foi uma dádiva que Deus nosso Senhor fez e foi a coisa mais bonita que já fez”. Diferenças à parte, ambos partilham uma característica impressionante. Sabe aquela sensação que nos chega quando estamos na presença de alguém especial? Aura, star quality, chame‑lhe o que quiser, Simão e Symone têm-na escancarada. “Lembro-me que um dia vi o filme O Cabaret com a Liza Minnelli e fui para a escola primária com roupas da minha mãe fazer de Liza Minnelli. Claro que na altura não cantei em inglês nem em francês, eu dizia o que me soava. Mas foi aí que começou. 

A minha mãe bateu-me nesse dia, por ter levado a roupa dela para a escola, porque onde eu moro, aquilo é um meio muito pequeno, tipo aldeia, e eu acho que ela até hoje não tem medo daquilo que eu sou, nem vergonha, mas daquilo que os outros possam achar ou fazer.” Depois de terminar o secundário, Simão veio para Lisboa estudar Artes do Espetáculo. Queria ser ator, mas também queria interpretar a Julieta e não o Romeu. Quanto estava a acabar o curso, com 17 anos, entrou pela primeira vez pela porta do Finalmente. Cabelo metade branco metade preto, como Cruella De Vil, casaco de peles vermelho. Era junho. No fim do espetáculo, Deborah Kristall convidou-o a subir ao palco e quando soube que cantava estendeu-lhe o microfone. “O público e as bichas deliraram”, conta, como se não fosse nada. Mais tarde, foi Deborah também quem lhe fez o convite para subir ao palco da Gala Abraço. Ganhou o prémio de melhor atuação com This Is My Life da Shirley Bassey “e foi aí que se fez o clique de que isto podia funcionar. Let’s do it”. Pausa para cigarro.

A maquilhagem adensa-se à nossa frente, na mesma medida que a personalidade. A doçura vai sendo sugada e Symone de La Dragma emerge, uma alma de 85 anos num corpo de 21 e “é engraçado porque o drag, o transformismo ou o raio lá como isto se chama, está muito comercial”. Pronto, começou. “Toda a gente vai com um fato de banho, mete um strass do Martim Moniz e pronto, está feito, uma peruca, um eyeliner, um batom e ‘tá feito, sou drag. Na minha cabeça sou a Bette Davis, superamarga, supermagra, sempre a fumar. Noutro dia sou a Joan Crawford. Mas tento sempre não copiar ninguém. Há pessoas que fazem isso, mas eu tento ter a minha própria imagem. Referências de filmes, coisas que vejo, sei lá. Às vezes, referencialmente, digo que sou tirada dos filmes do John Waters. A minha roupa é 99% Hollywood anos 50 e 60.”

100% criadas pela avó, costureira desde os 18 anos. Foi ela que criou o vestido que usou quando participou no programa The Voice. Era um pano de cenário de lantejoulas prateadas mais velho do que ele, rasgado, destruído. Irresistível, claro. “A minha avó disse tanta asneira, porque a lantejoula encrava na máquina... Está todo acabado mas não me consigo livrar dele, foi mesmo especial.” 

"As pessoas que não gostam não são capazes de dizer que não gostam porque têm medo da minha figura. As que gostam levo no meu coração." Symone de la Dragma

O programa ficou-se pela audição, onde passou, e uma VT a puxar à lágrima. “Eu não queria agarrar nisso para mim. Queria um ‘olá, sou o Simão Teles, tirei Teatro, mas Teatro não é o que eu quero, eu quero é fazer transformismo’, ok ponto. Estas coisas [o bullying] acontecem, mas eu costumo dizer que todas as pessoas que são diferentes sofrem – eu não acho que sofri, não me ia matando, mas pronto – e às vezes nem precisas de ser diferente para sofrer.” 

Symone, da parte de Simone de Oliveira, porque “em ‘69 quem dissesse que faz um filho por gosto era morto. E ela disse-o em plena televisão. Ainda por cima na RTP1, que mesmo quem não queria teve de ser obrigado a ouvir. Que ovários, que trompas..!”, exclama. Dragma é drag e drama, da parte da mãe, “que sempre disse eu era superdramático”. As suas atuações são um grito de dor e esperança, um “ai como a vida é dura, como a vida é puta, sou uma desgraçada que sofro tanto aqui a viver”, graceja. Começa sempre o show com uma parte mais “comercial” e termina com alto apoteótico. É raro vê-lo em inglês. José Carlos Ary dos Santos é obrigatório no seu repertório, “nem que vá fazer um concerto só com músicas da Madonna, que nunca na vida, tinha de ter um piquinho de Ary dos Santos porque é meu”. Resume o seu público em “pessoas resolvidas”, mas quando aparece sente a tensão a acumular.

Não é uma pessoa de meios termos: ou se ama ou se ama. Ai, não era isto: ou se ama ou se odeia. “Não me incomoda porque as pessoas que não gostam não são capazes de dizer que não gostam porque têm medo da minha figura. As que gostam levo no meu coração. Coisa tão bimba, não é?” Dizem-lhe que é uma figura da noite de Lisboa. Que entram tristes e saem felizes dos seus espetáculos. “Ai isso é a melhor coisa”, sorri. “Isso e aplausos. Mas depois é estranho, porque quando estou em palco não os aproveito bem, não me dou a esse prazer, vou-me logo embora ou mudo de canção. Consegui mudar isso na Gala Abraço. Ainda fiquei dois minutos a percorrer o palco a ouvir os aplausos. Obrigada, obrigada”, diz, imitando Amália, as costas caídas para trás, os braços abertos ao agora silêncio. “Saí de lá a chorar. Bicha dramáaaatica.”

Resumir Deborah Kristall em duas páginas, tentar resumi-la de todo, é uma tarefa ingrata. E também inglória. Ela esteve presente em todo o artigo, na chamada que Jenny recebeu enquanto falávamos (Fernando é diretor artístico do Finalmente), na primeira vez que Symone de la Dragma subiu a palco, em todas as falas de Lili, nas piadas que Sónia Tavares nem pode reproduzir. Ela esteve presente este tempo todo. Este tempo todo, ela, ele, estiveram sempre lá, em palco, por palcos, há quase 40 anos. 

“Se não for assim alguém a dizer eu esqueço-me”, responde, quando lhe digo o entusiasmo que sinto por estar ali. “Uma vez, e é uma dor de alma que tenho, porque o Herman José fez-me essa pergunta no Herman Sic. E eu estava tão chateado nessa noite que estou arrependido para o resto da vida com a resposta que lhe dei. Porque eu dei-lhe uma resposta que era o que eu sentia, mas disse muito mal dita. Ele, como é um gentleman, transformou a conversa, passou para outro convidado e eu fiquei até hoje com pena... Era uma pergunta com uma boa intenção: que eu era importante, que era uma referência. Sinceramente, não me vejo assim. Dou muito valor é aos anos a que trabalho e o empenho que tenho tido para que seja digno da minha personagem. Se as pessoas me veem assim é muito bom. Mas há uma coisa que está sempre marcada em mim e eu constatei há relativamente pouco tempo que uma grande atriz deste país estava tão triste com ela própria, com o trabalho dela, que chegou a perguntar a uma pessoa muito íntima ‘será que o publico já não gosta de mim?’. Como é que eu posso sentir que sou uma pessoa especial se alguém que eu considero muito mais especial do que eu tem essa dúvida? Se as pessoas que acham mo dizem, para mim é um alivio. Reconforta. É como um abraço falado. Se calhar não vale a pena desistir já amanhã.” 

O Finalmente tem cheiro de tabaco que se entranha nos cabelos. Suor de corpos de gente suada que se agarra ao nosso. Chão que esconde as nódoas de mais de 40 anos de casa. Os camarins são um amontoado de perucas e roupa e fios de cabelo de peruca e gavetas pesadas de CDs e novelos de linha, porque nunca se sabe quando um vestido vai precisar de ser apertado a medidas tão incertas como o tempo ou quando é que um botão de umas calças vai cair no primeiro dia de uso, como foi o meu.

O Finalmente abraçou-me na sua humanidade, de toque a toque, arranjou-me o botão das calças e fez dos meus olhos uma lupa de cada pormenor. O caos, o bafo, a sujidade feita de noites longas, loucas, muitas vezes indiscritíveis ou até ilegais, deram-me as boas‑vindas e trataram-me como se eu fosse da casa. Só depois chegou Deborah Kristall. Fernando Santos é o homem por onde Deborah sai, o artista sem meia medida, o ator que desempenha o papel de uma vida.

"O passado para mim são os pilares de um grande templo que construímos no futuro, que poderá ter até um telhado com uma antena que nos ligue aos outros planetas." Deborah Kristall

Fernando Santos é o homem por quem passamos na rua de lado, sem vestígios que uma outrora Deborah – ou alguns segundos antes Deborah – não fosse o cheiro a um perfume demasiado adocicado ou os restos de máscara de pestanas na pálpebra. É ele que me abre a porta, óculos de ver, tronco nu, o sorriso mais aberto que já vi por trás da porta de um clube noturno. Dois beijos, deixemo-nos de formalidades, muito embora ele insista em trazer uma cadeira para que possamos falar enquanto começa o trabalho de maquilhagem – e que trabalho. Falamos sem parar durante uma hora.

Regressamos ao ontem para falar do hoje e do amanhã. Recorda a primeira personagem, Maria José Valério, com a canção Ontem Sonhei. Resquícios do bairro da Mouraria, onde nasceu e das figuras que sabia interpretar. Foi o primeiro artista na área a fazer um número sem playback. Teve aulas de dança, queria aperfeiçoar-se, ganhar expressão corporal. Em 2014, criou Eternas Femininas, uma crítica ao Estado Novo e à época salazarista, um de muitos espetáculos que o marcaram. Fala da mãe, uma mulher linda com ar de estrela e olhos verdes, por quem Fernando viveu tremendamente apaixonado. A sua primeira paixão. Depois dela vieram outras, mulheres, musas, inspirações, centenas, talvez milhares de biografias, fotografias e filmes estudados, absorvidos, que agora fazem parte de Deborah.

Sente que é importante olhar para o passado para construir o futuro? “Oh minha querida...”, suspira. “O passado para mim são os pilares de um grande templo que construímos no futuro, que poderá ter até um telhado com uma antena que nos ligue aos outros planetas, mas se não tivermos as bases... Em criança, eu tinha uma tendência, nos sítios onde vivia, de querer conviver com pessoas com mais idade do que eu. Muito mais. E hoje o que as pessoas dizem 'os velhos, as velhas' eram as pessoas que eu achava mais interessantes. Aquelas marcas, aquelas expressões, aquelas máscaras que hoje comparo com uma máscara grega dramática – na altura não me parecia nada, só me fascinava – aquelas pessoas que a minha mãe me dizia 'oh rapaz vai mas é brincar com os rapazes à bola, deixa a dona não sei quê' e eu não conseguia dizer à minha mãe porque não saía dali, até porque não sabia porquê. Hoje eu acho que ser velho é uma coisa depreciativa, para mim foi onde eu fui beber. Parece que estou a ver aquelas senhoras nos cafés, com lábios muito pintados, risco verde nos olhos e eu ficava ali à espera que me dissessem ‘queres sentar-te aqui?’ e contavam‑me a viagem de núpcias, e o paquete, e que tinham sido casadas com almirantes. Era como se estivesse a ver um filme.” 

Camadas subtis e pouco carregadas de base entranham-se na pele que há anos as conhece. Os lábios vão tomando forma, uma boca bonita, bem delineada e pouco artificial. Os olhos vão-se enchendo de um tom atípico de dourado, uma camada grossa e quase grotesca de eyeliner que será depois afinada, trabalhada, alongada e criará um dos pares de olhos mais marcantes que já vi. Profundos. Vividos, e ao mesmo tempo como os de uma criança. Os dele. Olhos que olham nos olhos quando falam connosco, mesmo que isso signifique deixar metade da maquilhagem da boca a meio. Olhos que sorriem, olhos que são transparentes, sinceros, olhos que nos procuram como ao público em noites de ribalta. Olhos que só se abrem ao cair da noite e ao acender das chamas. Deborah renasce à minha frente, como faz todas as noites aos olhos de tantos. Fernando é espontâneo nas respostas, carinhoso com as palavras, é aconchegante, como os espelhos nas paredes do camarim que têm coladas mensagens escritas à mão que dizem “tu és especial”. Mas os vestidos de veludo e folhos e as cores que nos engolem não nos deixam esquecer com quem estamos a falar. E então a diva entra em cena. Exuberante. Graciosa. Carismática. Tão perfeita que chega a assustar. “As pessoas ouvem-me falar no palco, esta voz é muito forte e eu ainda projeto mais e as pessoas chegam a ter receio, sim. Gostava que conseguissem compreender que debaixo daquilo há um ser humano muito sensível e muito puro.” 

Fernando já viveu muito, e fiquei com a sensação de que sofreu também, mas não foi ele que mo disse e que fique claro. Ele é grato, mesmo que haja um dia mais fraco, que são poucos, mantém o sorriso nos lábios. As memórias boas são muitas. “Eu sou daquelas pessoas que raramente saio depois do espetáculo e às vezes dizem ‘eu nunca vi você. Era o único que me faltava conhecer. Não acredito. Você é tão diferente’, ‘Eu sei, eu sei’, e lá vou para casa um bocadinho mais feliz.” Abra o seu álbum na página de maior felicidade, sugiro. O pensamento voa. Sabe o dia exato, horas, segundos. O corpo enche-se de emoções. “1987, estreava a dois de fevereiro em Las Palmas de Gran Canária e depois passei esse ano todo até outubro a trabalhar em Las Palmas, na ilha em que a Madonna tem a casa, a da música Isla Bonita, e em Tenerife. Estive nas três. Foi o ano mais feliz da minha vida. Hoje, à distância, eu vivi coisas que tinha de estar inocente e alienado do que estava a fazer. Não soube o que estava a viver. Foi tão interessante que não quis voltar. Aliás, pagavam-me para voltar e eu não quis.” 

"É difícil separarmos completamente o ser humano que somos da personagem." Deborah Kristall

Fernando é um homem de emoções, por muito que Deborah possa passar a imagem do contrário. A voz torna-se altiva, mais bem posicionada, as piadas ásperas. Mas o homem que tenho à minha frente é todo doçura. “Há muita coisa que não se cruza. Mas é difícil separarmos completamente o ser humano que somos da personagem – o que acho é que o ser humano é tão complexo, tão complexo que conseguimos abrir portas da nossa personalidade, do nosso eu, no espetáculo, quem é ator sabe que é possível. Para ter autenticidade e honestidade tem de se ir buscar alguma coisa que temos. Não pode ser só técnica.” Não pode. O homem que tenho à minha frente diz que faz o que faz pelo “amor pelas pessoas e das pessoas, porque são muitos anos, e por muito que não queira não vale a pena mentir. Há um certo cansaço, sobretudo da rotina. Mas vale a pena”. Diz, com pena, que não tem concorrência – e não tem. Aumenta-lhe a responsabilidade. Acredita no que faz, senão, lá está, “nem valeria a pena”.

“Eu julgo que não sou o artista do grande público, a minha escola do travestismo é a dos anos 80. As pessoas queriam coisas que divertissem, que fascinassem. Não queriam ver uma mulher muito muito bonita. O espetáculo travesti tem de ser mais do que uma mulher bonita. O travesti, profissão, tem de passar muito mais do que isso. Mensagens de afeto, de amor, de carência, de coisas que as pessoas vêm a procura e que às vezes saem à noite animalescamente sem saberem o que é e chegam aqui e encontram numa frase, numa expressão, numa atitude. Uma energia própria que trago em mim e que acho que depois se transmuta e vai para o público e aquilo há ali uma ligação. Que eu sei que há. É uma coisa que não se explica com palavras, só com sentimentos.” Bato três vezes na madeira antes do que digo de seguida – mas, e se, quando, algum dia partir, como gostaria de ser lembrado? “Como um artista”, responde. “Podem achar pretensioso, mas eu sou artista de fibra, de ventre. Nasceu comigo.” O único que tem como farda um vestido de veludo vermelho. E quando lhe dizem “Mas, oh Fernando, tu és a estrela do espetáculo e vais todos os dias vestido com essa porcaria?”, ele responde “é o suficiente para representar”. A cabeça emerge por trás da cortina de veludo e apoia-se por cima de uma coluna azul, como um busto, um rosto escultural. Deborah Kristall é uma obra de arte.

Partir do desconforto. Para mim, é isto que define a maior das obras de arte. Se me provoca, se me remexe, se me arranca as entranhas das mãos. Se me causa o mínimo torcer de nariz. De um espetro ao outro, desde que me cause emoção, é esse o propósito da arte. Foi o que senti ao ver Aurora. Foi o que senti ao ouvir a sua história. Foi o que sentir ao ver algum do seu trabalho. Aurora é a deusa do alvorecer da mitologia romana, uma personagem da Disney, o nascer do sol. Aurora é um nome bonito, digo-lhe, e ela responde “é a vantagem de poder escolher”. Aurora nasceu num corpo de menino, menina, dos pés à cabeça.

Nasceu num meio demasiado pequeno com uma verdade demasiado grande para esconder. “Comecei a intitular-me gay como forma de camuflar a questão. Sentia medo por toda a violência à minha volta”, conta. Tentaram abafar-lhe os pensamentos, tentaram abafar-lhe os pensamentos à força, tentaram abafar-lhe os pensamentos de todas as maneiras, mas não se silencia quem somos. Primeiro, fez do seu quarto, e dos amigos David Bowie e Divine, o seu mundo. Depois, mudou o seu mundo para o Porto, tirou um curso no Balleteatro, trabalhou como intérprete ao lado de coreógrafos até precisar de criar uma narrativa que fosse só sua. “Era tudo uma procura para mim própria, até chegar ao momento em que eu seria capaz de enfrentar a questão em si. Tinha muito medo do processo. Nunca foi uma dúvida, mas não me sentia preparada.”

Mais do que a dança. Mais do que a música, as artes visuais ou a performance. Mais do que qualquer aplauso, sucesso, plateia cheia ou até exposição no Maat e em Serralves, por onde já passou, mais do que uma fotografia para a Vogue, Aurora tem uma missão pessoal e, neste caso, transmissível. Aurora quer ajudar todas as pessoas transexuais, abrindo mentalidades através da sua voz. Diz que tem uma espécie de rede oculta feita de todos os que vêm ter consigo no backstage dos concertos e de outras mil formas com pedidos de ajuda. “Pessoas reprimidas, com medo de se expor, de falar. Pessoas que neste momento não têm qualquer tipo de ajuda e que não sabem como fazê-la, da mesma forma que eu passei.”

Através da sua história, Aurora quer mudar a História. “Neste momento estou numa lista de espera gigante para ser operada. Como comecei no [setor de Medicina] privado e agora passei para o público, querem que espere mais um ano e meio – e eu já fiz o tratamento hormonal durante dois anos, que é o suposto, e o meu corpo já começa a ceder. Eu preciso de ser operada urgentemente. Só que no privado vão ser 7.000 euros e por isso juntei-me com uma série de artistas e amigos que estão interessados na causa, em eventos e concertos em função desse valor, e vamos lançar o crowdfunding em setembro. Até para as pessoas terem consciência do que se passa. Preciso da ajuda de toda a gente.” 

Desconfortável de ler? Nunca será mais desconfortável do que não conseguir ser atendido por um médico ou assinar um documento, ter psiquiatras a chamar-lhe maluca, não ter dinheiro para ser aquilo que se é. Não mais desconfortável do que viver com a morte como um trunfo guardado no bolso, pronta a sair em caso de exaustão. “A salvação era a morte. Tinha sempre essa carta, que era quando não aguentar mais mato-me. Era isso que me fazia sair à rua.” A morte manteve-a viva. 

"O espetador não está amarrado ou com uma arma apontada. Pode reagir, levantar‑se e ir embora." Aurora

Trabalha com a verdade, com as emoções e com a dor, inclusive a física, em palco. Gosta de romper com a normatividade. Gosta de sentir o público. Viver com o desconforto faz de Aurora uma artista também desconfortável, que nos provoca, que nos toca, que nos faz olhar para dentro. “Mas é algo justo”, repõe. “Porque eu própria estou desconfortável quando estou a expor a minha obra”, e depois, “o espetador não está amarrado ou com uma arma apontada. Pode reagir, levantar‑se e ir embora”. Até hoje só lhe aconteceu com um senhor mais velho a quem lambeu a cara. 

Hoje, é da música que fala com maior emoção. E desconforto. A dança já se tornou hábito, a música faz-lhe balançar as pernas, mesmo que lance este ano o seu segundo disco. “Comecei com a música há dois anos, basicamente quando comecei o processo de transição [de género] e a música ajudou-me bastante a chegar às pessoas.” Ao início, não se achava boa. Não sei se já se acha. Continua a ficar nervosa, mesmo depois de todos os elogios, vindos de gente com nomes admirados. Gostava de gravar um videoclipe, porque pode ser “fun”, gostava de “não estar só no underground dos espaços intimistas”, gostava “que nos tratássemos todos por igual”. Mas se queremos aplaudir Aurora o melhor que temos a fazer é prestar homenagem à sua mensagem, entrarmos no desconforto e “ligarmo-nos, conectarmo-nos e sairmos à rua de mãos dadas”. É só justo. Pense no tanto que ela já nos deu. 

Lili Stardust. O batismo foi natural, a partir do momento em que nos lembramos de convidar Lili Caneças a vestir a pele de David Bowie para esta edição da Vogue. Estranhamente, Lili disse logo que sim. Não tão estranhamente quando nas semanas seguintes passamos horas ao telefone a debater pormenores. Quando a conhecemos, finalmente, cara a cara. Quando da sua boca começam a sair frases de Françoise Sagan ou Simone de Beauvoir, quando a vimos saber toda a informação sobre a transformação de cor no olho de Bowie – que não nasceu assim, que foi um amigo que lhe deu um soco por causa duma miúda, e sabe o nome do amigo e da mulher e do problema ocular –, ainda menos estranho quando sabia fazer as poses, sabia todas as cores que já lhe tinham passado pelo cabelo, sabia uma posição específica de encaixar a língua com os dentes (se não a conhecêssemos acharia que tinha passado horas em frente ao espelho a treinar. Na verdade, não a conhecemos). Enfim sabia tudo e mais alguma coisa sobre David Bowie (até insiste na teoria de que Bowie está congelado – “nunca o vimos a ser cremado, imagens das cinzas, nada” – e que um dia regressará “glorioso”, lá para o século XXII). Menos estranho ainda quando a vemos fazer coisas tão fora da sua caixa (ou da caixa onde a colocamos) como entrar em videoclipes de hip‑hop, a publicar vídeos no ginásio no Instagram (“as pessoas adoram”, diz-me) e a viver com uma graciosidade e presença de quem, mais do que rir-se de si própria, ri-se para o mundo. Ouçam queridos, Lili é uma pro. 

“A minha mãe dizia que tinha a certeza que o primeiro som que ouviu meu não foi o choro típico de um bebé, mas uma gargalhada”, conta Lili. Com uma infância feliz, repleta de amor, livros e elogios, Lili diz que sempre tentou dar voz aos desfavorecidos ou às minorias, e que, por se sentirem ambos portos seguros, acabaram por se entender numa espécie de pacto privado de amor. “Fazia-me muito confusão que as pessoas diferentes fossem discriminadas”, diz Lili, recordando a sua mãe, uma mulher que deixou a casa dos pais para vir para Lisboa numa altura em que quem o fizesse não era visto com bons olhos. Veio tirar o curso de pianista no Conservatório, e por isso Lili acordava a ouvir Mozart. Criou-a com a mais bela das educações, a da liberdade, e arranjava-lhe os livros proibidos pela ditadura, que as hospedeiras traziam à socapa. Citando Dostoiévski, Lili acredita que a Beleza salvará o mundo.

“Vou estar sempre do lado dos que mais precisam, e fui sempre das primeiras em tudo." Lili Caneças

“Temos de estar atentos ao que é Beleza. E a Beleza é justiça, é saúde, é o bem contra as forças do mal.” Chama à sociedade portuguesa “hipócrita e preconceituosa”, um “País de aparências, onde se pode fazer o que se quiser desde que não se saiba”, diz que as mulheres deviam governar, “até agora foram sempre homens e olha como isto está”, e defende que “as minorias mudam o mundo”. “Vou estar sempre do lado dos que mais precisam, e fui sempre das primeiras em tudo. A dar apoio a pessoas de outra raça. De outra orientação sexual. Até de orientações políticas completamente diferentes. O meu pai ensinou-me que temos caráter, dignidade e que não temos preço e a mim ninguém me compra” (também diz que “o dinheiro é papel e na maioria das vezes suja as mãos” e que bem podem dizer que aparece por protagonismo porque “querida, eu já não tenho tempo para deixar de ser famosa”). Conta que a sua vida já se cruzou muitas vezes com a de Deborah Kristall, nas galas da Abraço, no documentário Falta-me e no Finalmente, e descreve o transformismo como “homens que independentemente da sua orientação sexual se vestem de mulheres, muitas vezes de forma exuberante ou caricata, para fazer uma performance. 

Normalmente têm muito bom gosto, muito giros, preocupam-se com a alimentação e parecem top models porque usam saltos altíssimos e ficam com dois metros de altura. Têm postura, uma dignidade, elegância e atitude que tomaram muitas mulheres terem e não têm.” Beijo, tchau. É no jogo das diferenças que Sónia Tavares se junta a Lili. “Como sempre fui diferente do que se passeava por aí, especialmente nos anos 90, representava um pouco a minoria artística”, diz. Missfited ou desenquadrada, Sónia diz que pertence a esse mundo onde todos se entendem. E já se divertiu muito com isso – quando lhe apetecia, entre as purpurinas e o glitter fazia emergir o seu lado mais masculino. Um “glamour andrógeno”, uma versão adaptada (e melhorada) da mãe, “uma senhora very glittery”. Começou pela voz que, nas maquetes, ainda antes dos The Gift, achavam ser de um rapaz, até ao pai confundi-la com Luna, a drag do videoclipe de Driving You Slow. Quando deu uma entrevista à revista Come Out interpretando o Joker, “aí é que as pessoas ficaram mesmo baralhadas”. Tudo coisas que Sónia conta com a maior das graças, que acha “o máximo, porque, de facto, às vezes sinto-me uma drag. O Herman chama-me a mulher bichona”.

“Agora esta é uma coisa menos engraçada”, diz. “Fui a Benfica ao médico com uma amiga, estacionei o carro e havia um homem, um bêbado que por lá andava, que fingiu que eu lhe tinha batido com o carro e a queixar‑se de uns óculos que estavam partidos, que eu até perguntei que se estavam partidos onde estava a outra lente. “Ah queres fugir às responsabilidades seu paneleiro” e quase me agrediu porque achava que eu era travesti. Teve de vir a polícia e tudo. Chorei tanto com solidariedade das pessoas que passam por isto. Agrediu-me psicologicamente. Foi horrível. Vivi na pele. Lamento”, diz Sónia. A sua voz – grave, aveludada, a sua voz tão diferente e tão única – soa por todos nós. 

"Como sempre fui diferente do que se passeava por aí, especialmente nos anos 90, representava um pouco a minoria artística." Sónia Tavares

Sónia diz que já saiu mais vezes na noite do que qualquer um de nós, entreolhamo-nos e rimo-nos porque ela tem ar de ser uma pessoa bastante divertida e uma ótima companhia de festa. Conta que chegou a ser varrida do Finalmente com a amiga Natacha e duas minis nas mãos. “Fui mais vezes ao Finalmente do que ao Lux”, e alguém dizer isto com este à‑vontade é só – como costuma uma amiga minha dizer – épico. Sónia é a “gaja porreira” como ela frisa, que às vezes põe “cara feia” quando vai a eventos e estão lá pessoas com que não quer falar. Profissionalmente, nunca. “Há colegas meus – não vou dizer os nomes – que são muito mais divas do que eu.” Enquanto conversamos sobre drags, e amor por roupa, e roupa vintage que comprou a uma drag queen na Internet e que usou nos últimos Globos de Ouro, e experiências menos boas, Sónia tem sido, efetivamente, uma “bacana”.

Diz que ajuda quem lhe vem pedir ajuda, mas que não o sente como uma responsabilidade, nem se sente obrigada  a falar sobre o assunto. “Porque apesar de ser um assunto que faz parte do meu dia a dia, faz parte enquanto terceira, alheia”, reflete. Prefere os atos às palavras. Prefere o profissionalismo à opinião pública. Prefere viajar até ao Brasil para trabalhar com a dupla de drags brasileiras, as Deendjers, porque depois de as descobrir a quilómetros pelo Instagram apaixonou-se perdidamente por elas e tinham de ser a cara da música Big Fish, do álbum Altar (“Infelizmente focaram-se mais na gorda do que nelas”, rindo de si própria). Prefere o Finalmente ao Lux.

É-pi-co

Artigo originalmente publicado na edição de setembro de 2018 da Vogue Portugal.

Patrícia Domingues By Patrícia Domingues

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