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Aves raras

07 May 2021
By Ana Murcho

Há quem lhes chame excêntricos. Nós preferimos apelidá-los de originais.

Há quem lhes chame excêntricos. Nós preferimos apelidá-los de originais.

Imagem de um chapéu de renda vitoriano, desenhado por Philip Treacy, parte da exposição Isabella Blow: Fashion Galore!, inaugurada em novembro de 2013 na Somerset House, em Londres, Inglaterra. A mostra continha cerca de cem peças da valiosa coleção privada de Isabella Blow, aristocrata inglesa e ícone de Moda, que começou a carreira como assistente de Anna Wintour na edição americana da Vogue, nos anos 80.

"Sempre tive uma ideia muito forte de como queria parecer. Quando tinha cerca de oito anos, [percebi que] não ficava bem de calças — ainda hoje não uso calças — por isso disse a todas as crianças da vizinhança que a partir daí não usávamos calças, só vestidos. Ainda hoje me visto como uma [criança], de certa forma. Às vezes vejo uma criança de dois anos na rua, com um tutu gigante, uma sweater engraçada e umas meias com bolinhas e penso: ‘That’s my look.’” Em 2013, a icónica jornalista americana Lynn Yaeger deu uma entrevista ao Business of Fashion onde falava sobre a sua longa carreira e onde abordava, também, a génese do seu estilo... peculiar. Yaeger, conhecida tanto pelo seu talento para brincar com palavras e descobrir talentos como pela sua aparência — um corte de cabelo indescritível, algures entre o bob e a casca de ovo, num tom de ruivo que ninguém consegue replicar; os lábios irremediavelmente pintados do mais escuro carmim; a pele alva, imaculada, sem vestígios de maquilhagem, não fossem dois traços de blush cor-de-rosa dos quais jamais abdica; e a roupa, que pode ser qualquer coisa, o ensemble base é um vestido preto, de noite, com mil camadas de tule, coordenado com umas leggings de seda, umas sabrinas, um casaco de pelo, um cachecol e um gorro da antiga União Soviética — nunca teve pudor em assumir o seu (imenso) amor pela Moda. “Ter um estilo excêntrico pode ser um assassino de homens, porque não é sobre ser sexy. É demasiado sincero, e julgo que a autenticidade pode ser um pouco assustadora para algumas pessoas”, tinha afirma- do, um ano antes, à revista W. Já em 2020, quando a pandemia mandava meio mundo para casa e sugeria que deixássemos de lado os nossos melhores outfits e sucumbíssemos ao combo “t-shirt e calças de fato de treino”, Yaeger escreveu um ensaio no site da edição americana da Vogue, onde apelava a todos os leitores que não deixassem de gostar de Moda — principalmente nessa altura. “If You Love Fashion, You Don’t Stop Loving It In The Face of Adversity.” E esse seu testemunho, sincero, como de costume, bem pode ter servido para que muita gente tenha insistido em usar, mesmo que só de vez em quando, as peças das quais pensava descartar-se até o vírus desaparecer. Porque também é esse o poder da Moda: curar. “Eu passei a minha saia a ferro no 11 de setembro. Se você se inclinasse o suficiente da janela do meu quarto, conseguia ver uma das torres a arder, mas ainda assim eu passei a minha saia — uma Dries Van Noten dirndl [traje tradicional de países como a Áustria], se não me falha a memória — porque isso é o que eu faço, e o que tenho feito, sempre.”

Lynn Yaeger ©Getty Images

Yaeger não está sozinha. A ela junta-se uma lista de nomes, todos eles de peso, para quem as regras de estilo são tão relevantes como conhecer os hábitos alimentares de uma formiga. Cleópatra (69 a.C. - 30 a.C), Maria Antonieta (1755-1893), Isabella Blow (1958- 2007), Anna Piaggi (1931-2012), Zsa Zsa Gabor (1917-2016), Iris Apfel, Daphne Guinness, Catherine Baba, Lady Gaga, Rihanna... Será que nos estamos a esquecer de alguém? Estamos, claro. De muita gente. Seriam precisas duas edições da Vogue para incluir todas as mulheres, e homens, que se estão nas tintas para as tendências e para o que pode ferir o gosto alheio. Cientes das suas escolhas, que podem parecer espalhafatosas ao comum dos mortais, elas, e eles, não se contentam em passar despercebidos no meio da multidão. Até porque — ou principalmente por causa disso — não se vestem para agradar aos outros, mas a si mesmos.  Recordemos as declarações de António Variações (1944-1984) ao jornal Correio da Manhã, quando já era um músico de renome: “Eu sempre fui António Variações [...] e nunca somente António Cabeleireiro... E sempre me senti parte do espetáculo. Sempre tentei fazer de um corte de cabelo um espetáculo. E eu serei um espetáculo mesmo a varrer as ruas da cidade.” O que quer que estivesse a fazer, Variações fazia em bom. E fazia-o com pilhas de glamour, que é uma coisa que raramente se associa ao sexo masculino, menos ainda aos cantores. Porquê? Va savoir, como dizem os franceses. Certo, certo, é que o autor de Estou Além explodiu numa época em que Portugal se começava a abrir ao mundo (final da década de 70, início da década de 80) e a sua figura excêntrica, incomparável, única, surgiu como uma lufada de ar fresco num país habituado, até então, a ver tudo a preto e branco: as calças de pele ultrajustas, os cintos largos, os brincos com pedrarias, os casacos com faixas brilhantes, os anéis XXL, as famosas tesouras “coladas” aos olhos... Variações estava, de facto, além. Tão além como Isabella Blow, a mulher que “descobriu” (literalmente) Alexander McQueen e que assumiu, em tempos, que a sua paixão por Moda “roçava a insanidade.” As suas impressões sobre estilo davam uma enciclopédia, por isso deixamos duas para aguçar a curiosidade de quem ainda não conhece a inglesa que deu um novo significado à palavra diva: “Se não usares batom, não posso falar contigo”, ou então “O meu ícone de estilo é qualquer pessoa que faça a m**** de um esforço.” Too much? Não para Mrs. Blow, que passeava por Londres com vestidos couture e chapéus Philip Treacy em forma de lagosta — anos mais tarde, Lady Gaga haveria de usar uma réplica da peça — como quem sai para dar um passeio higiénico. A sua noção de overdressed era inexistente, e foi isso que a transformou numa lenda. “Eu sou um outdoor ambulante”, chegou a admitir, sem pudor. “O prazer é meu.” E, acrescente-se, nosso. Mas o que é isso de ser, ou estar, overdressed? E porque é que tem de ser uma coisa má? Afinal de contas, atirou certa vez Rachel Zoe, “qual é o pior cenário, ser a pessoa mais bem vestida da sala?” Realmente, não sabemos responder. A sociedade criou uma ideia do que é, ou deveria ser, adequado a certas ocasiões, e tudo o que fugir a esses padrões encaixa-se nessa noção, imaginária, de overdressed. Que, sublinhe-se, só incomoda quem está underdressed. Porque quem está a divertir-se — leia-se, a deliciar-se — com as suas escolhas de guarda-roupa tem mais em que pensar. Acredite quando lhe dizemos que, quem tem o desplante de sair de casa com umas calças tigresse, uma blusa de lantejoulas, e uns stilettos vermelhos (este exemplo pode ser substituído por qualquer outra coisa que, eventualmente, lhe cause “horror”, basta imaginar Leandra Medine, a ex-Man Repeller, a passear pelas ruas de Nova Iorque com os seus looks improváveis e perceberá do que estamos a falar) se está bem a marimbar para o que os outros acham. O que une todas estas pessoas absolutamente fabulosas é o facto de, a dada altura das suas vidas, terem decidido fazer um manguito às convenções, às proibições, a tudo o que (alguém) disse que está certo ou está errado. Preferiram começar a vestir-se para si próprias, à rebeldia das estações e das aprovações de terceiros, e viraram as costas a tudo o que parecia ser proibido.   Um vestido de licra num cocktail de uma empresa de seguros? “Frankly, my dear, I don’t give a damn.” Um exemplo? Usar roupa considerada “de festa” enquanto o sol ainda brilha. A criadora inglesa Molly Goddard referia isso mesmo na edição passada da Vogue, por ter percebido, à custa da quarentena, que qualquer momento é certo para vestirmos as nossas peças preferidas. Semelhante raciocínio fez, a certa altura, Anna Dello Russo, adorada pelos fotógrafos de street style pelos seus outfits arriscados — mas nunca aborrecidos: “Normalmente vestimos a nossa melhor roupa quando saímos à noite, e sentimo-nos fantásticas. Mas para quê esperar? Porque é que não havemos de usar a nossa melhor roupa de manhã? Adoro roupa de noite durante o dia, porque o sol acentua a sua beleza e a silhueta. À noite, não se consegue ver tão bem.” Acreditamos que será mais ou menos isso que passa pela cabeça da maravilhosa Iris Apfel que, prestes a completar 100 anos, continua a arranjar-se, todas as manhãs, com o cuidado e a atenção de quem o faz pela primeira vez. A sua silhueta é inconfundível: gigantescos óculos redondos de massa, pretos, colares de um tamanho inexplicável — o tamanho, certo, a existir, seria “Iris Apfel” — pulseiras que serpenteiam braços acima, mil e uma cores, três mil e um padrões, cabelo acinzentado, lábios vermelhos, e um sorriso que desafia o tempo. A palavra-chave, para ela, é fantasia. Uma fantasia que não conhece limites. É esta a palavra que devemos ter em conta de todas as vezes que cairmos na tentação de apontar o dedo a alguém que (nos) pareça espalhafatoso: fantasia. Porque é disso que a Moda se alimenta, desde os seus primórdios, e é isso, a fantasia, que sustenta a sua incomparável qualidade de bem universal — um bem universal que serve, acima de tudo, para que possamos exprimir, através de um sem fim de materiais, cortes, texturas e tons, a nossa personalidade. Qualquer que ela seja. E isso significa que, o que para uns é lixo, para outros é luxo. A coleção Libération (que acabou por ser conhecida como The Scandal Collection) de Yves Saint Laurent, apresentada em 1971, foi tão aplaudida como criticada. Durante o tempo que esteve à frente da Dior, entre 1996 e 2011, as criações de John Galliano para a maison conseguiram a proeza de ser, simultaneamente, consideradas “obras de arte” e um “atentado” ao legado de Monsieur Dior. As propostas de Mugler e de Gaultier, de Paco Rabanne e de Pierre Cardin, de Vivienne Westwood e de Martin Margiela, todos eles gigantes da Moda, nunca reuniram consenso. Ou porque eram sexualmente estimulantes (adapte-se a frase para “the problem is in the eye of the beholder”), lascivas e provocadoras, ou porque quebravam tabus no uso de novas formas e tecidos, ou porque, sendo diferentes, colocavam questões que o público não estava preparado para abordar. Imagina algum destes designers a esconder-se atrás da cortina e a pensar “o melhor é não mostrar isto porque não é consensual?” Pois, bem nos pareceu. É isto que acontece com as incríveis, extraordinárias e, repetimos, absolutamente fabulosas, “aves raras” que se passeiam pelos quatro cantos deste planeta, e que, com o seu inesgotável sentido de estilo, continuam a dar um novo fôlego à Moda. Estão-se bem a lixar para a opinião dos outros e apenas se regem por uma regra: quebrar todas as regras.  Artigo originalmente publicado na edição de abril de 2021 da Vogue Portugal.

Ana Murcho By Ana Murcho

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