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Couture Renaissance: a importância da Alta-Costura

30 Mar 2020
By Ana Murcho

São como aves do paraíso no meio da selva urbana. As coleções de Alta-Costura, que duas vezes por ano destroem a ideia de que o mundo é um lugar de cínicos, são o que sobra de uma quimera chamada Moda. Mesmo quando tudo o resto colapsa, elas mantêm-se como prova viva de que a criatividade, e a excelência, não se regem pela pressa do século XXI.

São como aves do paraíso no meio da selva urbana. As coleções de Alta-Costura, que duas vezes por ano destroem a ideia de que o mundo é um lugar de cínicos, são o que sobra de uma quimera chamada Moda. Mesmo quando tudo o resto colapsa, elas mantêm-se como prova viva de que a criatividade, e a excelência, não se regem pela pressa do século XXI. 

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© Getty Images
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“A Alta-Costura é a fundação desta casa, por isso é meu dever criativo e visionário trazer a couture de volta. Para mim, a Alta-Costura é uma forma inexplorada de liberdade criativa e uma plataforma de inovação. Ela não só oferece outro espectro de possibilidades na alfaiataria, mas também traz a visão moderna da Balenciaga de volta às suas fontes de origem.” As palavras de Demna Gvasalia, habitualmente associado a looks mais streetwear, evocam um desejo há muito anunciado: o regresso da maison fundada por Cristóbal Balenciaga à arena grande da Moda. 

A Balenciaga não produz nenhuma coleção haute couture desde que o seu fundador fechou as portas do ateliê, em 1968, precisamente quando a revolução de costumes começou a privilegiar a rapidez do prêt-à-porter. Neste renascimento, que coincide com uma procura cada vez maior da roupa feita à mão, por medida e sem prazo de validade, a marca terá uma equipa de artesãos dedicada unicamente à Alta-Costura, sediada no histórico número 10 da Avenue George V. 

“Este projeto foi possível devido ao sucesso da visão criativa de Demna Gvasalia, bem como aos resultados excecionais da Balenciaga nos últimos anos”, afirmou Cedric Charbit, presidente e CEO da casa fundada em 1919 em San Sebástian, Espanha, citado pela Vogue Runway. “Já temos pedidos para [peças] couture, por isso sabemos que existe um cliente”, acrescentou. E, longe de fugir à pergunta de um milhão de dólares (o que leva alguém a investir seis dígitos num vestido?), explicou em que ponto é que este regresso alinha com os tempos que correm, e que encaminha a Moda, e o mundo, em torno da sustentabilidade. 

“O que acho ótimo acerca da Alta-Costura atual é a sua abordagem sustentável. Nós não fazemos coisas que não sejam guardadas para sempre. Também é sustentável na forma como nos relacionamos. Sinto que a maioria das marcas de luxo, hoje, se tornaram apenas marcas, e não são mais casas. Eu gosto do conceito de maison. Quando és uma maison, és uma família.” Como referia Nicole Phelps, jornalista que assina o artigo da Vogue Runway, “o anúncio da Balenciaga chega num momento crucial para a Alta-Costura.” Poucos dias antes, Jean-Paul Gaultier tinha anunciado que o seu desfile primavera/verão seria o último. E se em circunstâncias normais isso “poderia ter despertado preocupação com o lugar de vestidos e saias extravagantemente caros num mundo de fast fashion”, agora parecemos estar perante um momento de couture renaissance: a Balmain apresentou a sua primeira coleção de Alta-Costura em 16 anos, em 2019, e a Celine, pela mão de Hedi Slimane, também já garantiu que vai regressar ao calendário oficial.

Couture is dead. Long live couture. 

A ideia de que a Alta-Costura está em declínio não podia estar mais longe da verdade. Karl Lagerfeld explicou isso mesmo após o desfile primavera/ verão de Alta-Costura da Chanel, em 2018: “Quando as pessoas dizem que a haute couture está morta... talvez esteja para elas, mas não para nós.” O kaiser poderia ser um interlocutor suspeito, mas a verdade é que não são apenas as maisons centenárias que insistem em apostar nesta categoria. Nomes como Richard Quinn, Mary Katrantzou e Marine Serre têm explorado, recorrentemente, a ideia de demi couture. Foi o próprio presidente da Fédération de la Haute Couture e da Chambre Syndicale de la Haute Couture, Ralph Toledano, quem explicou o momentum: “A Alta-Costura é um mercado em crescimento; as marcas de Moda continuam a aumentar as vendas neste ramo, e a clientela está a expandir-se e a diversificar-se.” Ela sempre foi, “e continua a ser, uma terra de livre expressão para designers, uma terra onde a criatividade se encontra com a tradição e a inovação.” 

De acordo com Toledano, as novas tecnologias ajudam a “expandir fronteiras e possibilidades com materiais, técnicas e abordagens” (basta pensarmos no trabalho da holandesa Iris van Harpen para corroborar tal afirmação) e a despertar o interesse de novos públicos, como os millennials. “Enquanto existirem pessoas a procurar o excecional, vai haver Alta-Costura”, determinava Toledano. Até porque o que era, antigamente, um grupo fechado, tornou-se, com o passar dos anos, numa espécie de lounge vip. Em 1997, a Fédération decidiu criar o estatuto de “membro convidado”, o que permitiu alargar o leque de marcas que apresentam durante a exclusiva Couture Week – casos de Guo Pei e da Vetements, em 2016. Estas, no entanto, não podem usar o título “haute couture”, ficando limitadas ao mais prosaico (mas igualmente etéreo) “couture”. 

É aqui que se separa o trigo do joio e o banal do fabuloso. Para que uma peça seja considerada Alta-Costura deverá ser produzida à mão e por medida, num ateliê com um mínimo de 20 funcionários, por uma marca/designer que mostre as suas coleções (daytime e eveningwear) duas vezes por ano, em Paris. Isso faz com que exista uma enorme pressão para manter o título: a Versace retirou-se do calendário oficial durante oito anos, regressou em 2012, e, atualmente, aposta em “apresentações personalizadas”; Christian Lacroix abandonou-o em 2009. Basta pensarmos que a própria designação de “alta-costura” está protegida, é revista anualmente pelo Ministério da Indústria francês, e restringe-se a 16 marcas (15, se pensarmos que Jean-Paul Gaultier fez o seu último desfile em janeiro), entre as quais a Chanel, a Christian Dior e a Schiapparelli, para compreender a dimensão deste microcosmo paralelo. 

Por volta de 1947, existiam, em todo o mundo, cerca de 47 mil clientes de Alta-Costura. Atualmente, esse número ronda os dois mil, três mil, especula-se. É um negócio caro, que se paga caro. Em 2014, o jornal inglês The Guardian questionava-se: “Os preços são tão extravagantes como os vestidos: um ball gown pode facilmente custar o mesmo que um Rolls-Royce, uma blusa pode ser tão cara como um apartamento em Madrid. O que nos leva à questão: partindo do princípio que poucas pessoas podem gastar seis dígitos num vestido, qual é o sentido da Alta-Costura?” De facto, o que leva alguém a entregar o cartão de crédito em troca de uma capa de chiffon com brilhantes incrustados que demorou 400 horas a ficar pronta? Resposta possível: um cliente couture (que se situam em latitudes tão distintas como a Rússia, a China ou o Médio Oriente) não conhece limites; há quem encomende coleções inteiras – cerca de 30 vestidos por temporada. É isso que dá força ao comeback de casas como a Balenciaga.

“Somos uma casa francesa, pertencemos a Paris. Temos de fazer o nosso trabalho para que a Alta-Costura de Paris, o artesanato, as pessoas, as casas... temos de manter isso vivo.” Foi também com este argumento que Cedric Charbit justificou a decisão da marca. E nem as acusações de arrogância, que encaram o negócio da haute couture como algo desnecessário num planeta em constante ebulição, conseguem destruir o mito que sustenta a criação de vestidos com caudas de dois metros, intrincadamente bordados à mão, num ofício que se assemelha à produção de arte. "Seríamos os mesmos sem esses coordenados incandescentes, que passam ao longe, nesse universo paralelo de centenas, de milhares de euros, onde o último ponto não é dado pela pressa, mas pelo toque? Provavelmente, sim. E, no entanto, seríamos infinitamente mais pobres porque a Alta-Costura, como o cinema, é um escape para o que nos rodeia”, concluiu a Vogue há três anos. 

“Precisamos da Alta-Costura porque precisamos do sonho.” 

De acordo com os registos, o uso do termo Alta-Costura foi inicialmente aplicado ao trabalho do inglês Charles Frederick Worth, que realizou o primeiro desfile de Moda de que há relato, em meados do século XIX, em Paris. Contudo, os traços de haute couture perdem-se na História, particularmente nos trajes ricamente trabalhados dos membros da realeza. Seria, aliás, Rose Bertin, costureira da rainha Maria Antonieta, a trazer para a capital francesa a noção de “tendências”, ainda no século XVIII. E a cidade, que já era um fervoroso centro cultural, tornou-se referência para curiosos de todo o mundo, que copiavam os maravilhosos looks expostos nas vitrines das suas lojas. 

Fast-forward para o trambolhão civilizacional proporcionado pela revolução industrial e estavam criadas as condições perfeitas para a emergência de génios como Jean Patou, Paul Poiret, Madeleine Vionnet ou Jeanne Lanvin. E se, nos dias que correm, a Alta-Costura parece mais próxima do comum mortal – quando mais não seja pelo acesso imediato às imagens dos desfiles – ela continua a ser sinónimo de desejo, magnificência e savoir faire, tanto nos looks imaginados por Viktor & Rolf em 2017 com a coleção Boulevard of Broken Dreams, onde os vestidos eram feitos de material “reciclado” (e imediatamente vendidos online a quem estivesse disposto a desembolsar 20 mil euros), como na couture rock and roll de Alexandre Vauthier, que nos faz suspirar perante a sensualidade meio desenvergonhada dos seus ball gowns. E, nas suas múltiplas encarnações, da rigidez feminista de Virginie Viard, sucessora de Karl Lagerfeld na Chanel, aos metros e metros de tule coloridos de Giambattista Valli e à teatralidade refinada de Clare Waight Keller, na Givenchy, mantém aberta a porta para o impossível, onde a delicadeza se cruza com o romance, o espetáculo e a magia. 

“Esqueça a realidade, a Alta-Costura é pura fantasia", escrevemos em 2017. “Precisamos da Alta-Costura porque precisamos do sonho.” 

Artigo originalmente publicado na edição de março de 2020 da Vogue Portugal. 

Ana Murcho By Ana Murcho

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