Editorial Mais vale só..., da edição de The Arts da Vogue Portugal, publicada em novembro 2023.
Entre bordados impossíveis e clientes impossivelmente ricos, o luxo é uma arte misteriosa. Quem se encontra no topo da cadeia alimentar da Moda?
Cheguei a Paris em pleno verão, quando o calor fazia o Sena parecer uma sopa morna e os turistas se arrastavam pelas ruas com gelados que derretiam antes de chegarem à boca, abanando chapéus baratos em desespero, enquanto os parisienses suspiravam e abanavam leques com ligeira superioridade. Entre este cenário de caos estival, segui para a Semana de Alta-Costura com uma mistura de curiosidade e ligeiro desconforto: estava prestes a entrar num mundo que, apesar de coexistir com a cidade, parecia governar-se por leis próprias, uma Paris paralela onde o calor não chegava, mas a tensão estava sempre presente. A minha sede de conhecimento baseava-se à volta de uma só pergunta: “quem realmente adquire estas peças com as quais tantos sonham?” A resposta não está na quantidade de vestidos ou nos flashes das câmaras, mas no perfil de uma clientela extremamente específica, cuja presença é simultaneamente discreta e determinante para a sobrevivência da Alta-Costura.
A Alta-Costura não é apenas o nível mais elevado na hierarquia da indústria, é um sistema regulado por leis francesas e administrado pela Chambre Syndicale de la Haute Couture, que define quem pode apresentar coleções em Paris e em que condições. Para usar o título de Haute Couture, uma maison precisa de ter um atelier permanente em Paris com pelo menos quinze empregados em tempo integral, apresentar duas coleções por ano com pelo menos trinta e cinco peças cada e garantir que cada vestido seja feito à medida, com atenção artesanal extrema. É por isso que quando falamos de Christian Dior ou Schiaparelli, não estamos a falar de simples roupas de luxo: estamos a falar de obras únicas, produzidas de forma a que cada ponto de costura conte.
Não é surpresa que os compradores de Alta-Costura sejam uma elite. Não é apenas uma questão de dinheiro — embora este seja indispensável —, mas de acesso e compreensão do valor do que está a ser comprado. Estes clientes sabem que cada peça é limitada, que cada bordado é feito à mão e que cada ajuste é pensado para se harmonizar com o corpo e o gosto da pessoa que a vai usar. Como diz a cliente Poppy em entrevista à publicação i-D num artigo sobre a mais recente semana de Alta-Costura, “enviar um e-mail a pedir o look 23 pode parecer casual, mas é o início de um processo quase íntimo”, que envolve provas, ajustes e diálogo constante com o atelier. Este tipo de atenção personalizada é impossível de replicar em escala; é precisamente por isso que a Couture continua a ser o ápice do luxo.
O perfil desta clientela é tão fascinante quanto o trabalho que encomenda. São indivíduos com recursos extraordinários, mas não se resumem a cheques intermináveis: procuram uma intimidade quase ritual com cada peça, desejando compreender o gesto de cada costureira e o peso simbólico de cada ponto de bordado. Um artigo na Vogue britânica dá-nos alguns exemplos desta classe tão misteriosa. Muitos destes clientes são millennials, como Wendy Yu, herdeira chinesa que iniciou sua coleção aos 20 anos, tornando-se uma verdadeira patrona da arte da Moda, ou Zofia Krasicki, que divide seu tempo entre Londres e Nova Iorque, colecionando Armani Privé e Giambattista Valli. Estes clientes não estão à procura de atenção, não publicam no Instagram e não identificam as marcas com a esperança de serem vistos, sabem que não precisam de fazer esse esforço. Como em tudo o resto neste mundo, a indústria da Moda sabe quem está no topo e sabe como os manter agradados. Estes não são clientes que compram por ostentação ou pelo estatuto de uma peça de luxo, mas pelo prazer de possuir algo que é simultaneamente íntimo e incomparável. Cada vestido é uma extensão da identidade, uma obra de arte que se integra à vida quotidiana ou que se guarda com reverência, um objeto de desejo que é tão emocional quanto material. Esta relação pessoal com a Alta-Costura é natural. Os clientes desta estratosfera são convidados a participar no processo criativo. As peças que compram por centenas de milhares de euros são feitas ao seu corpo, feitas para o seu feitio, personalizadas de acordo com os seus gostos. É um mundo difícil de entender quando nos encontramos entre mortais. Eu tive a sorte de ter um vislumbre.
Durante a Semana de Alta-Costura, ao assistir aos desfiles de Schiaparelli ou Christian Dior, percebi que o público não é o mesmo que se vê nas semanas de Moda do pronto-a-vestir. Não há correria, nem gritos de influenciadores, nem flashes frenéticos. Há, isso sim, um silêncio quase reverente, como se cada olhar estivesse a memorizar o gesto, o tecido e a postura de quem está na passadeira. Nas filas da frente, encontram-se empresários, colecionadores de arte contemporânea, herdeiros de sobrenomes que quase ninguém reconhece e membros da nova-riqueza global, ansiosos por aprender as regras não-escritas deste clube exclusivo. Não é apenas quem está presente, mas como está presente, que define a Alta-Costura. A estrutura regulada pela Chambre Syndicale cria um efeito curioso: nem todas as maisons podem apresentar coleções oficiais. Existem três categorias: membros oficiais, membros convidados e membros correspondentes. Os oficiais são os grandes nomes, reconhecidos internacionalmente e com direito pleno ao selo de Haute Couture. Os convidados têm acesso temporário, permitindo-lhes demonstrar capacidade e ganhar prestígio. Os correspondentes, muitas vezes marcas de fora de Paris, são reconhecidos pela qualidade do artesanato, mas sem o estatuto pleno. Esta hierarquia reflete-se nos compradores: os vestidos das maisons oficiais têm procura garantida entre clientes fiéis, enquanto os das casas convidadas atraem colecionadores interessados em raridade e descoberta.
O perfil desta clientela é tão fascinante quanto o trabalho que encomenda. são indivíduos com recursos extraordinários, mas não se resumem a cheques intermináveis: procuram uma intimidade com a peça, desejando compreender o gesto de cada costureira e o peso simbólico de cada ponto de bordado.
O verdadeiro luxo da Alta-Costura, portanto, não está apenas na peça em si, mas na experiência de ser cliente. Ser um comprador de Alta-Costura implica agendar provas privadas, discutir cada detalhe e esperar meses até que a peça esteja pronta. É um processo que exige paciência, gosto refinado e uma compreensão do valor simbólico do vestido. Este ritual mantém viva a sensação de exclusividade e transforma cada vestido numa extensão da identidade do cliente, algo que vai muito além do simples ato de vestir. Aliás, foi durante esta semana que passei entre algumas das pessoas mais ricas do mundo que aprendi as regras do jogo. Uma peça, quando comprada por um certo valor, garante exclusividade. Em julho, estava a decorrer um pequeno escândalo. Uma cliente chinesa de uma marca de Alta-Costura adquiriu um vestido com direito à sua exclusividade, isto é, pelo preço que esta pagou, a maison garante que só existe um vestido no mundo. No entanto, nem dois meses passaram, esta cliente viu uma versão do seu vestido na red carpet. Este drama parece ser corriqueiro para nós, mas de facto é um grande problema neste mundo. As complicações de perder uma cliente deste estatuto podem ser catastróficas para uma marca, especialmente se esta basear o seu plano de negócios na Alta-Costura.
Ainda que seja difícil empatizar com os clientes, não sou imune à magia da Alta-Costura. Durante o re-see da Schiaparelli, quando tive a oportunidade de visitar o atelier, vi uma trabalhadora a corrigir meticulosamente um vestido, acrescentando pontos quase invisíveis. Percebi que é esse trabalho invisível que sustenta a fantasia. Cada vestido é um microcosmo de esforço humano, criatividade e técnica, e o cliente está a pagar, em grande parte, por essa relação direta com o artesanato. É por isso que, como nota Poppy, “a Alta-Costura é uma individualidade radical, um gesto contra a homogeneização do mundo da moda”.
Quando se fala em números, o mercado de Alta-Costura parece quase etéreo. Estima-se que existam cerca de quatro mil clientes ativos em todo o mundo, mas apenas algumas centenas compram regularmente. Estes clientes podem ser herdeiros históricos de casas como Dior, novos colecionadores do Médio Oriente ou da Ásia, jovens artistas e influencers que veem a Alta-Costura como investimento emocional, quase como arte vestível. Outros compram por fetiche ou por prazer silencioso: mulheres que adquirem vestidos porque podem, mas não necessitam que o mundo saiba, valorizando a experiência do processo acima da ostentação. A Alta-Costura é um sistema cuidadosamente regulado que mistura arte, comércio e exclusividade. A cada desfile, a cada front row, percebe-se que o luxo não está naquilo que é visto, mas no que não se mostra.
Originalmente publicado no The Art of Living, a edição de novembro de 2025 da Vogue Portugal, disponível aqui.
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