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A pele que habito

23 Sep 2021
By Pureza Fleming

Quando alguém nasce com um sexo cerebral diferente do sexo corporal, dá-se o nome de transexualidade ou disforia de género. É uma doença que pode trazer muito sofrimento se não encarada de frente.

Nascemos para o mundo e connosco trazemos um cérebro, num determinado corpo, com determinadas partes. Quando alguém nasce com um sexo cerebral diferente do sexo corporal, dá-se o nome de transexualidade ou disforia de género. É uma doença que pode trazer muito sofrimento se não encarada de frente. Mas, hoje mais do que nunca, tem solução. Tudo em nome de uma vivência mais plena. E de um final (mais) feliz.

Max Oppenheim/ Getty Images
Max Oppenheim/ Getty Images

Vamos chamá-lo de João (nome fictício). Durante mais de uma década, João era Joana, já que tudo assim o indicava: o seu género no BI, o sexo que carregava no corpo, os cabelos longos (nem sempre apreciados), as unhas pintadas (nem sempre de boa vontade), os namoros com rapazes, as amizades que mantinha — nunca significando, isto, que sendo rapaz ou rapariga, não pudesse ter amizades do sexo oposto. Tal como conta à Vogue, João forçava algumas amizades. Porquê? Para se encaixar, que é isso que faz quem se sente desenquadrado numa sociedade com uma mente quadrada para um mundo tão redondo. Aos 17 anos, confessa: “Sempre me senti desconfortável. Aos quatro, cinco anos de idade, comecei a dizer aos meus pais que era um rapaz e desde então que me comecei a comparar com todas as raparigas e rapazes da minha idade. Sentia que não me encaixava nem num lado, nem no outro. Então, esforcei-me por me encaixar no lado das raparigas: comecei a vestir a parte de cima do biquíni, comecei a tentar interessar-me por rapazes, a certa altura comecei a pintar as unhas e deixei o cabelo crescer. Era claro para toda a gente à minha volta que, finalmente, começava a comportar-me como uma rapariga, que eu era uma rapariga. O meu maior medo era que começassem a desconfiar que eu era transexual, que era um rapaz, pois isso já eu sabia há muito tempo.”

O medo que nos relata João é o mesmo que atravessa os corações de todos/as os/as jovens que sofrem com este dilema: um sexo cerebral diferente do sexo corporal com que nasceram. Rita Torres, terapeuta sexual e doutoranda no Programa Doutoral de Sexualidade Humana da Universidade do Porto, elucida-nos: “O corpo não é o género. Mas atribui-se um género ao sexo biológico, ainda quando o/a bebé está no útero. Em vários casos, este género atribuído não condiz com aquele com que o/a jovem se identifica. Isso é o que se sente, e que pode não corresponder ao corpo. Por isso, um/a jovem nesta situação sente-se muito/a angustiado/a, sobretudo numa altura em que existem tantas outras turbulências próprias do período da adolescência. Se a isto adicionarmos relações e estruturas que lhe negam a identidade, está pronto o caminho para correr mal, e este jovem vai adoecer.

"Sempre odiei tirar fotografias. Odiava ver-me e odiava olhar-me ao espelho." João

 

O respeito pela autodeterminação da identidade e expressão de género destes/as jovens é uma questão de saúde e de respeito pelos direitos humanos. Estes/as jovens vão identificar-se com o género oposto, outros/as não se vão identificar com nenhum dos géneros binários, e outros/as vão-se identificar com os dois. Por outro lado, quando chegam à idade adulta, uns/umas vão querer recorrer a intervenções médicas, como terapêutica hormonal ou intervenções cirúrgicas. Outros/as vão querer apenas algumas destas intervenções, e outros/as não vão querer nenhum tratamento.” A terapeuta partilha que, quando começou a exercer nesta área, era muito raro surgirem transexuais em consultório: “Neste espaço de tempo passou a ser mais frequente a procura de apoio por parte deste/as jovens. Não raras vezes vêm acompanhados/as pelas suas famílias, que querem saber como os/as podem ajudar.” O suporte familiar é fundamental, conclui-se. “Sempre odiei tirar fotografias. Odiava ver-me e odiava olhar-me ao espelho. Não percebia porquê, só mais tarde, quando comecei a desconfiar que era transexual, é que percebi que o desconforto que sentia relativamente à minha imagem prendia-se com o facto de os meus sentimentos relativamente a quem eu era não corresponderem ao que eu via ao espelho”, sublinha João. 

De acordo com o dicionário Priberam, o termo “transgénero” é: 1) relativo a ou que tem uma identidade de género diferente do sexo que foi atribuído à nascença, por oposição a cisgénero; 2) relativo a ou que tem uma identidade de género que não é claramente feminina ou masculina.” Numa época em que, como nunca antes, se abordam as questões do género, é importante fazer alguns esclarecimentos. “O que se atribui à nascença é o sexo e não o género. O género só se começa a manifestar mais tarde, cerca dos três ou quatro anos de idade. O género é uma construção social que não é mais do que a manifestação social de cada pessoa, e que é conhecido por um determinado género. A manifestação do sexo do seu cérebro. Cada um tem o sexo que o cérebro lhe dita.” 

A primeira explicação chega-nos através do cirurgião plástico, maxilo-facial e especialista em cirurgias de mudança de sexo, João Décio Ferreira. “O grupo dos transgéneros inclui os transexuais. Porém, estes são os únicos que, por se sentirem num corpo errado, sofrem de transexualidade/disforia de género. Um travesti, por exemplo, pode querer colocar umas próteses mamárias porque se sente bem com estas — tal como uma mulher o pode querer. Mas, de resto, o travesti está, à partida, em paz com o seu corpo. Os transexuais são os únicos que rejeitam completamente o corpo que têm e, como tal, sofrem. Vivem num constante sofrimento provocado pela discrepância existente entre o sexo do cérebro e o sexo do corpo. E tudo o que engloba mau estar e sofrimento encaixa na definição de doença da Organização Mundial de Saúde.”

O termo transexualidade, apesar da sua recente manifestação, não surgiu hoje. O responsável é Harry Benjamin (1885-1986), endocrinologista e sexólogo alemão emigrado nos Estados Unidos. Foi ele o primeiro a identificar esta discrepância entre o sexo do cérebro e o sexo biológico do corpo. Concluiu que, como seria impossível modificar o cérebro de forma a adaptá-lo ao corpo, a única coisa a fazer seria adaptar o corpo ao cérebro. Apesar de tudo, foi apenas a partir de 1960 que o transexualismo se tornou, definitivamente, numa questão de ordem médica. “Quando tive o meu coming out, toda a gente achava que me estava a assumir como lésbica. Foi preciso algum tempo para perceberem que eu era mesmo um rapaz e não uma rapariga lésbica. Acho que ficaram surpresos quando finalmente perceberam que eu era transexual”, desabafa João. A terapeuta sexual adianta que “hoje em dia, com o maior acesso à informação, é mais fácil que um/a jovem consiga saber melhor o que está a acontecer consigo, e, por vezes, dar-lhe um nome. A revelação da sua não conformidade com o género atribuído à nascença, em função do sexo biológico, é outro tema frequente. A importância desta revelação é maior em contexto familiar. Se quem nos deveria demonstrar mais afeto e suporte não o faz, é mais difícil acreditar que outras pessoas o farão. Assim, surgem pedidos de gestão da revelação em contexto familiar. Por vezes, os pais/mães não desconfiavam e são apanhados/as de surpresa. Há um período de maior choque, e até de negação, na família que não percebe o que está a acontecer.”

Sara, a meia-irmã de João, relata que não é simples entender o que se passa na cabeça de um/a jovem adolescente em período de desidentificação: “Ele andava descontente com várias coisas, mas falávamos mais da família e da escola, as coisas normais da adolescência. O ritual de passagem para a adolescência é por si só algo já bem atribulado e esperado como tal. Se eu pensar um bocadinho melhor, ele usava roupas largas para esconder as curvas e gostava de jogar basquetebol mas, honestamente, como eu era ‘maria-rapaz’ na escola — e hoje a moda é tão fluída —, nem me passou pela cabeça ser um sinal do que quer que fosse”, explica. O cirurgião relembra um dos seus 600, 700 casos: "Certa vez, no âmbito de uma operação do masculino para o feminino que ia fazer, questionei a jovem: ‘Fez circuncisão? Qual o tamanho do seu pénis?' E a resposta foi: ‘Nem olho para essa ‘coisa’ lá em baixo, é horrível!’ A jovem acrescentou que fazia medicação para evitar ter ereções nocturnas daquelas que acontecem naturalmente porque ‘lhe metia nojo’”. O cirurgião atenta para algo importante, o facto da taxa de suicídio ter baixado: “Era maior quando não se sabia que havia uma solução. O que acontece, porém, é que quando já estão os passos todos dados — do diagnóstico inicial à passagem pela Ordem dos Médicos —, outros entraves surgem que são as cirurgias adiadas recorrentemente na ‘hora h’. Alguns transexuais entram em desespero porque esperam e esperam… E acabam por se suicidar.” É por estas e por outras que a nova lei do direito à autodeterminação da identidade de género, expressão de género, e à proteção das características sexuais de cada pessoa tem ajudado à sensibilização da comunidade para as questões de género nas etapas do ciclo de desenvolvimento.

"Eu renasci. Tornei-me noutra pessoa quando me assumi. Mais feliz, mais confiante, mais eu." João

Graças a uma maior consciencialização e a uma informação mais bem distribuída e cada vez mais clara é que casos como o do João podem terminar com a mais desejada das sentenças: “E viveram felizes para sempre.” Não menos importante, tal como já referido pela psicóloga, é o apoio familiar. “A notícia foi dada à família através do nosso pai, que acabou por ser o mensageiro. O meu irmão falou com ele, se não estou em erro um par de dias antes de fazer 15 anos, e ele depois foi informando a família. Apesar do espanto inicial, sobretudo o não se saber nada sobre o assunto, ele foi superbem aceite. Ele é o mesmo e tem o mesmo lugar na família que tinha antes. […] Acho que nem posso dizer que tenho saudades da minha irmã porque, para mim, é exatamente a mesma pessoa, por muito estranho que possa parecer”, confidencia Sara. E acrescenta: “Eu dou-lhe espaço para ele ser quem é e pode contar comigo para tudo o que estiver ao meu alcance. Acho ainda que atribuir a razão disto ou daquilo à mudança dele não seria correto, apenas redutor. Todas as pessoas à volta dele lhe têm dado muito apoio. Até o nosso pai, pessoa tradicional e com ideias muito bem sustentadas, é agora o mais informado sobre o tema e activista nas questões LGBTQ+. Um exemplo: o meu irmão é um miúdo perspicaz, sensível e corajoso. Às vezes, penso se eu teria coragem de fazer o mesmo, pois isso requer, acima de tudo, maturidade e autoconhecimento. Ele tem isto tudo e muito apoio. O resto conquistará com o tempo.”

Hoje, João sente-se em paz: “Eu renasci. Tornei-me noutra pessoa quando me assumi. Mais feliz, mais confiante, mais eu. Há quem diga que quando nos assumimos continuamos a ser a mesma pessoa, e isso é verdade. Porém, tornamo-nos noutra versão dessa pessoa. Uma pessoa muito mais feliz e que, com o tempo, já se consegue ver ao espelho e não odiar o que vê. O meu pai diz que me tornei mais vaidoso com as minhas camisas coloridas (antes vestia-me sempre de preto), e com os meus brincos e as minhas meias também coloridas.” A vida às cores — como se quer.

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