Opinião  

A máquina do tempo

22 Apr 2024
By José Couto Nogueira

Artwork de João Oliveira

A Revolução de 1974 foi muito mais do que uma mudança política. Passámos de uma sociedade arcaica para o século XX.

Se viajássemos na máquina do tempo imaginada por George Orwell, seria como se tivéssemos saído de uma sociedade fechada, algures entre 1788 e 1933, e aterrássemos em 1975. Uma curta distância temporal, é certo, mas quantas diferenças civilizacionais! Vivi nessa sociedade durante 30 anos, numa altura em que, além de ultrapassada, estava desgastada e, depois de 1945 (o ano em que nasci) tinha perdido os seus melhores homens — António Ferro, Duarte Pacheco e mais meia dúzia — e sobrevivia à custa do conformismo. Já Fernando Pessoa, ainda em 1915, escrevera que a grande característica dos portugueses é o conformismo; Eduardo Lourenço, 50 anos depois, chegou à conclusão que Salazar tinha institucionalizado esse conformismo. Para o garantir, uma censura omnipresente censurava tudo o que podia agitá-lo, ou que vinha do mundo exterior. Para as pessoas como eu, da média burguesia para cima, desejosas de conhecer o que estava a acontecer “lá fora”, não havia repressão política, porque não tínhamos atividade política e porque éramos supostamente os beneficiários do rígido sistema de classes. Mas também estávamos emparedados culturalmente e andávamos sempre à caça da parca informação que conseguíamos fazer passar por uma barreira de restrições nas artes, nas letras e na vida social contemporânea. 

A música — rock e pop — passava sem restrições e era o contacto mais real com Xanadu. Podíamos ouvi-la e dançá-la — devidamente afastados, sob o olhar de um adulto vigilante das poucas vergonhas. Assinávamos a Interview, Rolling Stone, Salut les Copains, Cannard Enchainé, outras revistas à la page, e ainda a Time, Newsweek ou o Le Monde, que às vezes desapareciam misteriosamente nos correios. Assim ficávamos a saber pelo menos um bocadinho da evolução intelectual que decorria sem restrições noutra partes. O cinema era censurado; alguns filmes simplesmente não passavam, como A Clockwork Orange (dizia-se que o Marcelo Caetano tinha ficado chocado com o sexo e a violência), O Último Tango em Paris, ou The Decameron e Contos de Canterbury, do Pasolini. Outros vinham amputados das cenas consideradas imorais. A mãe de um amigo meu era da Comissão de Censura do cinema e ele contou-me que cronometravam os beijos na boca — mais de 10 segundos, corta! Os livros estrangeiros também eram escassos, mas como não sabíamos da sua existência, não dávamos por isso. Quem soubesse, podia encomendar na livraria Buchholz, que eles importavam. A mãe do meu amigo pertencia à classe alta, que vivia em sintonia com os valores católicos-apostólicos-romanos que controlavam toda a sociedade. Não se podia fazer check-in num hotel se o casal não apresentasse provas de ser casado. Não se podia ofender a moral e os bons costumes, num sentido muito abrangente da expressão. Contudo, não era só o aparelho de Estado e a Igreja que velavam pela decência; as famílias influentes faziam-no militantemente. Nos Maristas, onde estudei, perdi muitos amigos porque os meus pais eram separados, um mau exemplo. 

Num livro saído recentemente, Três ditaduras na Europa Ocidental, Isabel do Carmo faz um retrato pormenorizado, com testemunhos da vida quotidiana sob o Estado Novo. Fiquei a saber o que era a vida de fome e carências materiais das classes mais baixas, um ambiente que realmente não nos chegava. Sabíamos que havia pobres e trabalhadores com salários de sobrevivência — as casas mais desafogadas até tinham o “seu pobre” de eleição, que ia lá todos os meses receber as migalhas — mas os carentes não circulavam entre nós, porque a segregação era até urbanística. Viviam nas barracas, em bairros operários perto das indústrias, nos campos afastados das nossas casas de férias. Alguns faziam a quarta classe e poucos chegavam ao liceu, mas nunca à universidade. Como só os universitários faziam o serviço militar como oficiais, havia uma grande falta de graduados para a guerra colonial, o que veio a revelar-se mais tarde fatal para o regime. A guerra colonial, a “defesa das províncias ultramarinas contra os terroristas apoiados por Moscovo”, que começou em 1961, representou uma carga pesada e por vezes fatal para todos — “nobreza”, burguesia e povo. O serviço militar obrigatório, que durava entre dois e quatro anos, levou centenas de milhares de jovens para a guerra, estragando-lhes as carreiras (aos que as tinham) e impondo-lhes uma vida violenta numa África que não reconheciam como sua. Fiz três anos e seis meses de serviço mas, como fiquei em primeiro lugar na recruta, não fui para fora. Contudo, os casos como o meu tinham garantido que seriam chamados um ano depois para comandar uma companhia em teatro de guerra. Fui salvo dessa pena pelo 25 de Abril, no ano em que devia apresentar-me no outono. Assim que me devolveram o passaporte, no final do serviço, em 1973, precipitei-me para Londres, onde durante uma semana vi filmes proibidos e percorri livrarias e exposições, para recuperar o atraso e saborear a civilização europeia de que não fazíamos parte.

Já tinha vivido em Londres, antes da tropa. Estudava economia no ISCEF mas o meu pai, que era anglófilo, decidiu mandar-me para a London School of Economics, em 1968. Quando cheguei a Londres, em pleno flower power, foi como se tivesse aterrado noutro planeta. As ruas cheias de gente colorida e animada — tão diferentes das pessoas cinzentas de cabeça baixa que em Lisboa apenas iam de casa para o trabalho —, as conversas deliciosamente inconsequentes, a sexualidade livre e sem complexos, os espetáculos na rua e nas salas — até vi shows do Jimi Hendrix e dos Rolling Stones! —, a certeza de que o mundo estava a caminhar para uma era de “paz e amor” sem nuvens no horizonte. A Inglaterra conservadora, ainda prevalecente, deixava correr as loucuras da juventude, escandalizava-se, mas não lhe passava pela cabeça reprimir. Fui para ser economista, voltei fotógrafo de publicidade e moda. O meu pai, que também era anglófilo no respeito pelas decisões dos outros, depois de um período de desgosto avalizou-me as “letras” (documentos de crédito) para um estúdio bem equipado, que paguei à medida que me tornava um dos quatro fotógrafos publicitários mais procurados. Quando a tropa me apanhou estava casado e com uma filha, tinha de dividir o trabalho com hora infinitas no Serviço Cartográfico do Exército, já a pensar no que seria quando fosse reclamado para África.

Falava-se na mudança de regime e desesperava-se que seria impossível. Nenhuma opção parecia viável. Não seriam os militares profissionais, eles que eram doutrinados especialmente e os beneficiários maiores da guerra, que iriam fazer alguma coisa. E os movimentos civis de oposição, permitidos esporadicamente em ocasionais eleições, não tinham possibilidades reais de mudar nada. O Partido Comunista, promovido a papão pelo Estado Novo, sabíamos que não tinha força, e que a sua “conquista do poder à frente da classe operária” era um mito em que só eles acreditavam — e também não nos interessava substituir a ditadura salazarista por uma ditadura de sentido contrário. Restava-nos afastar-nos o mais possível do dia a dia desses “anos de chumbo” e criar uma bolha onde não entrasse a moralidade obrigatória. Quando me separei da minha mulher, uns meses depois de sair da tropa, aluguei com duas sócias uma casa isolada no Guincho. Sem telefone nem Internet, que ainda não tinha sido inventada, divertíamo-nos a ouvir rock and roll, a fazer jantaradas e a apanhar sol. Está tudo num romance que escrevi mais tarde, Vista da Praia. As visitas constantes, que vinham espraiar naquele paraíso, davam-nos informações sobre o que se passava no país — escândalos, intrigas, o discurso oficial que não admitia contraditório. Na noite de 24 para 25 de abril estava no laboratório a fazer as ampliações para uma exposição na Galeria Quadrante, em maio, mulheres sem roupa e sem pudores a olhar para a câmera: “Eu sou assim e não tenho nada a ocultar.” A minha inspiração vinha de Man Ray, Jean-Loup Sieff, Ralph Gibson, Helmut Newton e os fotógrafos que apareciam na revista francesa Photo. Era para ser uma exposição chocante, com mulheres a assumir o seu corpo em cenários quotidianos. A Quadrante tinha uma reputação avant-guardista e o Artur Rosa e a mulher, que a dirigiam, achavam que ia ser um (bom) escândalo. Mas veio o 25 de abril e a exposição passou completamente despercebida no entusiasmo de um novo mundo. Aconteceu uma falta de reconhecimento mais grave: o extraordinário filme de Alberto Seixas Santos, Brandos Costumes, crítica noir e implacável ao conformismo pequenino do Estado Novo, saiu em 1975 e ninguém se interessou em mergulhar numa angústia que já não existia.

No dia 25 saí para a rua. Como achei que todos os fotógrafos iam fazer o mesmo, resolvi filmar tudo em Super 8, com uma Braun Nizo topo de gama que acabara de comprar. Estive no Rato e no Chiado. A movimentação e a alegria eram avassaladoras. Milhares de pessoas, saídas não sei de onde, de repente vieram para a rua a rir e a passear, encantadas com ar primaveril. Os olhos abertos numa curiosidade incontrolável, perigosamente encostadas aos tanques e blindados, sem querer perder um pormenor — porque era evidente que estavam a ver a História a acontecer em tempo real, ao vivo e a cores. Quando mandei revelar os filmes, a máquina tinha um defeito e estavam todos superexpostos, brancos. As revoluções são sempre seguidas de um período de anarquia, que pode ser violento. Foi assim em 1789 (França), em 1910 (Portugal), em 1917 (Rússia) e em muitas outras que agora não me ocorrem. Isto acontece porque uma ordem vigente há muito tempo é desfeita, porque as pessoas têm ideias diferentes do que a nova situação deve ser e porque há uma disputa entre as novas forças pelo poder. No ano que se seguiu ao 25 de Abril ninguém trabalhou neste país e todos tinham o seu sonho do que deveria ser a nova ordem. Esta revolução foi original em vários aspetos: os militares queriam uma democracia e não uma ditadura militar, e abandonaram o poder voluntariamente quando as instituições civis se instalaram. Os responsáveis pelo “antigamente” foram deixados em paz. Houve muitas lutas, pouco violentas por causa dos nossos brandos costumes e Álvaro Cunhal, seguindo a cartilha leninista, esteve quase a conquistar o poder (como os PC tinham feito nos países de Leste pós 1945), mas finalmente o bom senso prevaleceu e, a partir do Primeiro Governo Constitucional, em julho de 1976, entrámos nas peripécias características de uma democracia parlamentar ocidental.

Feita a revolução política, abriu-se o espaço para a revolução cultural: o nascimento de movimentos e o aparecimento de artistas e agitadores culturais com uma identidade portuguesa que finalmente aproximaram a nossa vida cultural e diária daquele modelo que tínhamos ambicionado antes de 1974. O homem que discretamente provocou, incentivou e dirigiu esse movimento chamava-se Manuel Reis. A partir de um lugar noturno mínimo, o Frágil, onde se encontravam todos os atores deste novo espectáculo, de António Mega Ferreira a António Variações, passando por artistas, cineastas, atores, escritores, estilistas, ministros e diletantes, apareceu uma identidade portuguesa que, se bem que subsidiária do que acontecia “lá fora”, trouxe esse “lá fora” com as nossas cores. Está para se fazer a biografia desse incentivador de tudo — eu, que o conheci muito bem, não a farei. Chamavam-lhe o “rei da noite”, um título redutor, porque trabalhava, e muito, durante o dia. A Máquina do Tempo fez a sua viagem de ida numa década. Não haverá viagem de volta.

Artigo originalmente publicado no The Memories Issue, disponível aqui.

José Couto Nogueira By José Couto Nogueira

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