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Viola Davis: “Não és um ator se crias alguma coisa baseada numa mensagem social.”

14 Nov 2018
By Vogue Portugal

A atriz norte-americana é a protagonista de Widows, o mais recente filme de Steve McQueen, que chega às salas de cinema portuguesas já no próximo dia 15 de novembro. Tendo esta estreia na mira, quisemos falar com Viola Davis para pôr a conversa em dia.

A atriz norte-americana é a protagonista de Widows, o mais recente filme de Steve McQueen, que chega às salas de cinema portuguesas já no próximo dia 15 de novembro. Tendo esta estreia na mira, quisemos falar com Viola Davis para pôr a conversa em dia. 

Há poucas atrizes com o talento e carisma de Viola Davis. Para Steve McQueen, está ao nível das grandes estrelas femininas dos anos 40: Bette Davis, Joan Crawford e Katherine Hepburn. Alguns podem até discordar. Depois de terminar os estudos na famosa Julliard School, Davis começou a construir o seu nome no palco antes de se aventurar no mundo do Cinema e da Televisão. Steven Soderbergh foi um dos primeiros a notar no seu talento, acabando por escolher Viola para Out of Sight (1998), Traffic (2000) e Solaris (2002). Denzel Washington também se rendeu à atriz norte-americana e trabalhou com Davis em Antwone Fisher (2002) e Fences (2016). 

O seu mediatismo mais mainstream apareceu com a primeira nomeação aos Óscares, com um papel pequeno mas avassalador em Doubt (2008), onde contracenou com Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman. Conseguiu outro marco com The Help (2011), uma visão emocional da importância vital, ainda que gritante da desigualdade e da posição das empregadas afro-americanas nos estados do sul dos EUA por altura dos movimentos pelos Direitos Civis. Foi com Fences que finalmente ganhou o Óscar de Melhor Atriz Secundária, uma adaptação de Denzel Washington da peça de teatro de August Wilson, que anteriormente já haviam interpretado e arrecadado um Tony Award. Para completar a prateleira de prémios, a longa-metragem de Denzel trouxe-lhe um BAFTA e um Golden Globe, enquanto a série de sucesso How To Get Away With Murder rendeu-lhe um Emmy, sagrando-se a primeira mulher afro-americana a ganhar uma estatueta para Melhor Atriz no horário nobre. 

Recentemente, Viola Davis é protagonista de Widows, o novo filme de Steve McQueen. Na longa-metragem, interpreta Veronica, a esposa do carismático ladrão interpretado por Liam Neeson, Harry. Nesta trama, é deixada sozinha e precisa de sobreviver sem o marido. Para fazê-lo, tem de realizar um assalto que já havia planeado mas deixou-o para trás e agora precisa de concretizá-lo com a ajuda dos membros do seu gangue de viúvas. Elegante e reservada, Veronica não é o tipo de mulher que se imagina a executar um assalto deste calibre, contudo Viola Davis convence-a do contrário e mostra que não há outra maneira possível de fazê-lo.  

Este é o tipo de papel que poderia resultar em mais troféus para se juntarem à coleção, mas para a própria Viola Davis, este trabalho oferece-lhe duas vantagens. Uma delas a oportunidade de trabalhar com McQueen, diretor de Hunger (2008), Shame (2011) e 12 Years A Slave (2013) - vencedor de um Óscar. A segunda, foi ter o poder de quebrar alguns limites e desafiar alguns dos conhecimentos de Hollywood - algo que discute abaixo. 

Lembra-se quando conheceu Steve McQueen? Foi com este filme, ou já o tinha o encontrado?

Já o conhecia. Queria dizer que foi por altura do The Help… Mas foi, definitivamente, na festa dos BAFTA, em Los Angeles. Uma daquelas conversas onde basicamente me perguntou: “Porque é que não tens papéis melhores?” Se conhecessem o Steve, sabiam que não se importa com as palavras que escolhe. O seu forte é seguir em frente, mas acredito que esse foi o tema da conversa durante a festa. 

McQueen disse que a vê como uma Bette Davis e Joan Crawford. Já alguma vez lhe tinha dito isso?

Sim, já me disse e também acrescentou o Marlon Brando a essa equação. Tento envolver a minha mente em torno disso! Tento sempre conjugar a maneira como as pessoas me veem e como eu me vejo, o que pode até parecer estranho. É claro que só me vejo como Viola, a mulher que não usa maquilhagem e que vive enroscada numa manta quando está por casa. Mas gosto que ele me veja assim, porque sempre questionei a maneira como é que as pessoas me veem no passado. Gosto que olhe para mim como alguém tão expansivo. Gosto que me veja como uma mulher, por isso sim, aceito! (risos)

"E por muito mais que as pessoas digam ‘isso não é um big deal’, ou ‘que isso é normal’. Então porque é que nunca ninguém o fez? Essa é a minha grande questão: porquê?"

Qual foi a primeira visão que teve deste filme? Viu o argumento ou foi através de uma chamada telefónica?

O Steve veio até minha casa para me oferecer o papel. Até então, não tinha lido nada. Convenceu-me pelo facto de isto ser um filme sobre um roubo inteiramente feminino. Mas também foi muito assertivo com os outros temas que queria retratar com esta história. Em especial, as questões dos estratos sociais que vão para lá da raça. Comigo e com Cynthia Erivo, tens duas mulheres de cor, tens duas mulher afro-americanas, mas dois níveis diferentes, duas classes diferentes. Às vezes bates com a cabeça e essa é tua própria narrativa, diferente daquele que vês nos filmes. Quer dizer, ele apresentou-me isso tudo. Ele contou-me tudo e continuo a dizer às pessoas que Steve McQueen poderia ter-me dito isso tudo por telefone e eu teria dito que sim. Podia ter poupado a viagem! Vi que isto seria um projeto e uma aventura muito interessante com pessoas muitos boas. Ele tem olho para o talento. Recebo muitas propostas e nem todas são boas. Vi este projeto como um oportunidade única e disse logo que sim. 

Houve algum momento particular que a convenceu, ou foi todo o contexto?

Gostava de dizer que foi algo diferente e mais específico. Mas uma vez mais, é preciso perceber que isto é tudo uma novidade para mim. Até a maneira como o filme começa, o Liam Neeson está comigo na cama, eu tenho o meu cabelo natural e a minha pele escura. Sou atriz há 30 anos e nunca me ofereceram um papel como este. Mesmo que o filme comece e termine daquela maneira, nunca ninguém me ofereceu nada assim. E já agora, ninguém vai ver isso em nenhum filme este ano, ou no próximo, ou no ano a seguir. E por muito mais que as pessoas digam ‘isso não é um big deal’, ou ‘que isso é normal’. Então porque é que nunca ninguém o fez? Essa é a minha grande questão: porquê? Ele oferece-me o papel principal, que não foi escrito em específico para uma mulher de cor. Se eu tivesse dito que não, teria ido para uma atriz caucasiana. Convenceu-me na minha sala de estar, não preciso de muito mais. 

Qual é a sua visão perante Veronica. Como é que resumiria a personalidade dela?

Veronica é uma mulher que, quando a conhece, quando conhece todas estas mulheres, percebe que são motivadas pela tristeza e desilusão, a desilusão dos seus maridos. É uma espécie de wake up call para o facto da maioria da vida delas ter sido uma mentira. Então, a partir daí, comecei a olhar para ela como uma mulher que está a decidir duas coisas. É uma mulher que quer a vida dela de volta e que está a decidir viver. Não acredito que a maioria das mulheres que são mães consigam ter a morte de um filho e de um marido muito próximas uma da outra e não estarem praticamente devastadas. O próximo passo é um buraco negro bem grande. Vejo-a como uma mulher que está a liderar este assalto numa espécie de metáfora para tomar conta da sua vida. É assim que vejo a Veronica. 

Ela tem aquela máscara de líder e acho que é o caso de muitas mulheres. Muitas vezes, usamos essas máscaras como impulsionadoras para as nossas vidas, uma forma de tentar superar a nossa vergonha, a nossa falta de autoestima. É preciso olhar para Veronica, Linda e Alice como mulheres que perderam os seus maridos num assalto, mas esses homens eram homens questionáveis. A próxima questão é, o que é que fizeste para atraí-los? Essa é a grande pergunta para as mulheres que se agarraram a este tipo de homens; foi por questões de dinheiro e status que sentes que não podes ter sem eles e quando morrem és deixada sem uma rede de segurança. É sobre teres a tua própria liderança e ganhar a tua própria liderança, não é um processo fácil, nada fácil. 

Acha que ela amou de verdade Harry, ou foi tudo uma questão de segurança?

Para mim, o filme não iria resultar se tu não acreditasses que ela amou de verdade aquele homem. Se começasses com ela a dizer ‘eu não o amei de verdade, era um cretino, foi tudo por dinheiro’ isso não iria resultar. Não há qualquer propósito ou motivo se ela não amasse verdadeiramente o marido. É uma escolha forte e acho que foi por isso que o Steve decidiu abrir o filme com aquela imagem. 

Esse momento é um momento de storytelling muito bonito. Não vemos muitas cenas deles juntos, mas vemos muitas camadas da relação. 

Sim e, uma vez mais, se eu estivesse numa relação em qualquer filme, provavelmente só me irias ouvir a falar disso. (risos) Geralmente, não há espaço para tocar tanta gente, exceto em How To Get Away With Murder, mas isso é porque ali é a visão de Shonda Ryhmes (criadora da série norte-americana onde Viola Davis é protagonista) e de como ela vê as mulheres de cor. Mas além disso, eu vejo um progresso: há muitas cenas que nunca foram feitas. Há Colin Farrel (como Jack Mulligan) e Molly Kunz (como Siobhan) no carro e estão a conversar numa viagem em tempo real que passa por diferentes bairros - começando num pobre e terminam numa grande mansão, que é uma grande lição de vida sobre as várias classes e a pobreza que existe. 

Eu sei que disse que era libertador para mim interpretar uma mulher que não tem qualquer nível de sexualidade, pelo facto de estar na cama com Liam Neeson, que é considerado um sex symbol. Ele não é meu dono, não sou propriedade dele, ele não me bate. O homem está verdadeiramente apaixonado por mim e eu estou apaixonada por ele. O que faz com que o público tenha todas aquelas perguntas bonitas que raramente se fazem a pessoas de cor nos filmes. Normalmente, estas questões pairam no ar e o que se pretende é passar uma mensagem social. Aqui, essas perguntas são feitas: onde é que se conheceram, como é que eles se apaixonaram e porquê? Ele fez isso com ela? Ela gosta dele? O público passa tempo connosco, há a oportunidade de nos verem como dois seres humanos. Isso é revolucionário, na minha opinião. 

Como é o processo criativo neste tipo de questões? Elabora uma espécie de mapa sobre a sua personagem?

Sim, sem dúvida alguma. É a única maneira de se ser um ator. É por isso que sou tão ativa sobre ser-se uma pessoa de cor no ecrã. Quando estás a preparar uma personagem, estás a construir um ser humano. Eu preciso de ser um bocado nerd nos primeiros tempos e sentar-me e dizer ‘ok. Onde é que o meu personagem nasceu? Tenho irmãos e irmãs? O que me fez mudar para Chicago? Quando é que conheci o meu marido? Quando é nos apaixonamos?’ Depois, com calma, mas muito assertivamente, começas a construir o teu ser humano. Mas sem o construir baseado numa mensagem social. Não és um ator se crias alguma coisa baseada numa mensagem social. Quando te sentas para ver uma história, as pessoas veem seres humanos, não ideias. Na vida tu és alguém com memórias, traumas e conquistas específicas. Isso é um ser humano. 

Gostava de lhe perguntar sobre as outras três "Viúvas". A Viola foi escolhida antes delas, como foi a sua reação quando soube com quem iria contracenar?

Em primeiro, fiquei muito, muito, muito curiosa com a Michelle Rodriguez. Ela é uma daquelas pessoas cuja reputação e energia a precedem, então fiquei muito intrigada com ela. Já conhecia a Cynthia Erivo dos tempos da Broadway, encontrei-me com ela quando estava em Nova Iorque. Quanto à Elizabeth Debicki, bom, eu não conhecia absolutamente nada sobre ela, apenas sabia que era uma excelente atriz. Às vezes precisas de batalhar para conseguir aquela química e às vezes ela está lá. Para nós, a química estava lá. Estávamos todas a ser perseguidas por um estigma social, coisas que as pessoas colocavam em nós e que, de algum modo, eram debilitantes. Elizabeth por causa da sua altura. Cynthia Erivo, sim ela é uma mulher negra, mas é uma mulher negra do Reino Unido. Uma mulher negra com todo o tipo de piercings, tatuagens e cabelo loiro-platinado. E Michelle Rodriguez por todas as coisas que já mencionamos. Estávamos todas a lutar contra essa imagem que, no passado, nos assombrava. 

A primeira vez que nos encontramos foi num restaurante com cinco estrelas Michelin, em Chicago, e eu não estou a exagerar, ainda hoje me surpreendo pelo facto de não termos sido expulsas. Falamos tão alto. Mesmo muito alto. Ninguém se estava a esconder, não havia ninguém a usar a sua voz interior e, enquanto isso tudo acontecia, o Steve McQueen estava sentado connosco a adorar a conversa e a encorajar-nos. Foi perfeito. 

Viola Davis, Michelle Rodriguez, Elizabeth Debicki e Cynthia Erivo em Widows (2018)
Viola Davis, Michelle Rodriguez, Elizabeth Debicki e Cynthia Erivo em Widows (2018)

Neste filme, gosto do momento em que a Veronica atribui tarefas à sua equipa, ela faz a distribuição de forma errada porque ela não as conhece de verdade. Foi muito realista. 

O facto de ter tomado a posição de liderança, não significa que eu saiba aquilo que estou a fazer. O meu marido era o líder quando estava vivo e, então, eu fiquei com o lugar dele. Mas isso é a vida. Não me interessa se tu tens um trabalho das 9h às 17h e tens a mesma rotina dia após dia. Não quero saber a maneira como planeias a tua vida. Não a consegues prever. Simplesmente não consegues. Todos os dias é uma surpresa. Tu não sabes se amanhã vais estar vivo. É a casualidade da vida. A improvisação da vida. Só nos filmes é que sabes exatamente onde é que a história te vai levar, como é que deve terminar, como é que as pessoas devem aparecer. Se Liam tem uma esposa, ela precisa de se parecer assim, porque esse é o tipo de mulher por quem ele se sente atraído, quando na realidade, não sabemos disso! Existem 324 milhões de pessoas nos Estados Unidos da América. Nós não sabemos por quem é que se sentem atraídos. Não conhecemos os seus segredos. Não conseguimos decifrar os segredos das pessoas com quem partilhamos o dia a dia há vários anos e essa é a beleza do que fazemos como atores. Damos-lhe vida e, quanto mais honestos, mais conseguimos mostrar todas estas coisas que acabei de mencionar. 

É uma das poucas pessoas que, no filme, interage com todos os homens. Eles representam as forças antigas que controlaram o mundo para estas mulheres, isto está certo?

Colin Farrell, Brian Tyree Henry e Daniel, estavam literalmente a intimidar-me, o que me fez sentir como uma metáfora para a minha relação com homens e mulheres. Certamente, que esta é a base do #MeToo e do #TimesUp, quando estás na presença de um homem, a dinâmica é a de predador e presa, uma força dominante e um submissa e, como mulher, tu és sempre o elo mais fraco. 

Mas aquilo que não queria fazer neste filme, mesmo a Veronica sendo a líder, foi ter o sentimento de ser inferior, que muitas vezes pode acabar contigo. Quando o assalto está para acontecer, sentes que mereceste. É uma jornada mais realista. Como me sinto como mulher. Adoro uma boa história sobre mulheres. A Mulher Maravilha é a minha favorita. Na minha vida não me sinto como uma. Não sinto que estou no comando. Quero que as mulheres se sintam menos sozinhas. Mas quero mesmo mostrar-lhes que é possível ganhar a liderança das próprias vidas, mesmo com ansiedade e todo o caos. É possível. 

Nãos lhes quero vender a fantasia sobre o que é que significa viver neste mundo sendo uma mulher - se é que isto faz sentido. Neste filme sinto isso, não fui uma superheroína. Na verdade sinto que a realidade foi intersectada nesta narrativa e acho que isso é que fez estas mulheres mais poderosas. 

Já ouviu algum feedback das pessoas que assistiram ao filme? As pessoas perceberam as mensagens que quis passar?

Definitivamente senti que muita gente absorveu coisas boas sobre este filme, coisas que já aqui falámos. Mas eu não oiço muito porque há uma parte de mim que acredita que estamos num zeitgeist. A Michelle Rodriguez disse uma coisa muito bonita: como mulheres, estamos a insurgir-nos cada vez mais. Isso está a acontecer com as pessoas de cor, todas essas coisas. Há um certo número de críticas que não dou ouvidos porque vejo que 95% das críticas são de homens e muitas delas de homens caucasianos e é através desse olhar que este filme é visto e, muitas das vezes, não acredito nisso. 

O valor da mulher no Cinema é baseado na forma como nos vestimos e na nossa juventude. E podemos dizer, e concordar, que esse não é o nosso valor. Se eles não veem uma mulher sexy, acho que isso te pode afetar. A cena de abertura pode chocar algumas pessoas porque, uma vez mais, Liam Neeson não é o meu dono, não é meu proprietário, ele é o meu marido. É aí que começa e acaba. E isso não deve impedir os cineastas de pôr a sua verdade. Temos que continuar a lutar por estas verdades e ter coragem de lutar por essa nossa voz.

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