Opinião   Palavra da Vogue  

Sozinha em casa

02 Jan 2019
By Ana Murcho

A história da emancipação feminina escreve-se direito por linhas tortas. Nos contos de fadas pós-modernos, já não é preciso príncipe nem anel para haver final feliz. O final feliz somos nós.

A história da emancipação feminina escreve-se direito por linhas tortas. Nos contos de fadas pós-modernos, já não é preciso príncipe nem anel para haver final feliz. O final feliz somos nós

 

Aviso legal: O amor é, e será sempre, o princípio e o fim de todas as coisas. Por muitas revoluções que se façam, e por muitos escapes que se encontrem, o amor é, e será sempre, a soma da humanidade e da sua ausência. Por muitas aplicações que prometam acelerar ou destruir sentimentos, o amor é, e será sempre, a negação e a afirmação, o tudo e o nada. Não interessa que tipo de amor. Amor-próprio, amor pelo próximo, amor romântico, amor fraterno, amor platónico, amor eterno-enquanto-dure: todos eles são inspiração para a banda sonora da nossa existência. E, no entanto, estamos a casar cada vez menos – segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, em 2011 63% das famílias unipessoais eram compostas por mulheres e, no espaço de 20 anos, o total de mulheres que viviam sozinhas, com idades entre os 35 e os 39 anos, aumentou 281%. Estaremos a amar menos? Ou estaremos a amar melhor? É sempre perigoso fazer juízos de valor no que às paixões da alma diz respeito, mas há sinais inequívocos de que a ideia da "solteira com gatos" é, cada vez mais, coisa do passado. A diferença (abismal) entre estar solteira e estar sozinha deixou de ser canção do bandido, e o estigma "O que há de errado contigo?", que costumava acompanhar conversas com maiores de 30 sem anel de noivado, está, lentamente, a ser substituído pela máxima da jornalista e ativista Gloria Steinem: "Estamos a transformar-nos nos homens com quem queríamos casar."

No ano de 2016, em véspera de eleições presidenciais, a revista New York publicou um tema de capa que lançava o debate: "O votante mais poderoso deste ano, que no seu número crescente se tornou uma nova categoria de cidadão, é a mulher solteira americana." O artigo, assinado por Rebecca Traister, autora do livro All the Single Ladies: Unmarried Women and the Rise of an Independent Nation, defende que este fenómeno social foi proporcionado por uma série de fatores como a emancipação das mulheres (depois do direito ao voto, do acesso ao trabalho, o casamento deixou de ser uma imposição, como acontecia há 50 ou 60 anos), o aumento da esperança média de vida, a evolução das comunicações (nos dias de hoje, ninguém está realmente sozinho) e do urbanismo (há 30 anos, coisas aparentemente tão simples como comprar um carro ou uma casa seriam absurdamente complicadas, quando feitas por uma mulher solteira).

Durante muito tempo figura de segundo plano, cingida aos deveres domésticos, a mulher solteira é hoje, a par dos millennials, a consumidora mais poderosa, a mais exigente, a que mais rápido se estabelece financeiramente.

E a que menos teme um futuro sem vestígios de "plus one": numa sondagem realizada em 2012, nos Estados Unidos, 31% dos homens afirmaram que casariam com uma mulher se esta "preenchesse todos os requisitos, mesmo que não estivesse apaixonado por ela". Apenas 23% das mulheres deram a mesma resposta. Não é apenas uma questão de exigência, é uma questão de ser fiel a si própria. E isso dá muito trabalho. Seria mais fácil ficar com o primeiro "amorzinho", o primeiro vislumbre de felicidade a dois, e juntarmo-nos aos números que dão cabo do conto de fadas: em 2013, existiam no nosso país mais de 70 divórcios em cada 100 casamentos. É suposto acreditar que o "Sim, quero" é uma instituição condenada? Claro que não. Rebecca Traister explica que o decréscimo das taxas de casamento tem menos a ver com a instituição em si do que com as escolhas disponíveis para as mulheres: "A escolha de não casar também pode significar: ‘Realmente gostaria de casar ou de me apaixonar ou de encontrar alguém, mas não conheci ninguém que vá melhorar significativamente a vida que estou a construir sozinha." Não é preciso viajar até ao outro lado do Atlântico para encontrar exemplos de mulheres com fibra, que insistem em construir uma história a duas mãos – até novo aviso. Que sempre preferiram manter a sua personalidade a render-se a uma coisa que não lhes arrebate o coração. Conheço umas quantas. Têm uma espinha dorsal igual à das grandes artistas rock, mesmo quando se pensa que a sua canção é o fado. São incrivelmente sexy e têm tudo o que os homens querem, e temem, numa companheira: seguras de si, descomplicadas, extravagantes, independentes, obstinadas. Inesquecíveis. Algumas são especialmente teimosas – falemos sobre essas. 

"Não tenho namorado. Não estou noiva. Não me vou casar – nem daqui a oito meses nem em plenas férias de verão, à socapa, numa capela em Las Vegas. Não estou grávida. Não tenho filhos, por isso nem sequer posso dizer que o meu filho mais velho tirou a nota mais alta da turma dele. Não tenho cães. Não tenho gatos. […] Para este início de século, e em termos puramente sociológicos, está tudo errado comigo." 

Em 2016, depois de tentar comprar uma viagem para um paraíso exótico e ser confrontada com a minha insignificância ("Ana, estas promoções são para duas pessoas", disse-me a minha agente de viagens. "Tem de pagar uma taxa extra. Já sabe que é sempre mais caro ir sozinha") larguei a minha fúria num post de Facebook sobre o estado civil que, tantas vezes, transforma as minhas conquistas em traços alienígenas. Para meu espanto, o feedback foi positivo. O desabafo serviu para perceber que, apesar de ainda ser difícil para muita gente compreender que ir ao cinema sozinha não é um ato suicida (a minha prima Raquel tem suores frios só de pensar em mim, isolada numa sala escura), e mesmo que nem todos entendam porque é que não casei com o meu namorado americano que tinha um fetiche por relações extraconjugais, não há nenhum problema comigo. Por muito que, aparentemente, a minha vida amorosa pareça um desastre, ela está cheia de estórias que fariam inveja a muitos filmes da Disney – desfiá-las aqui seria deselegante para com os intervenientes, mas foram mágicas o suficiente para me fazerem continuar a acreditar no amor. É por isso que, em vésperas de completar 36 anos, estou sozinha. Alguém que apareça, agora, tem de ser especial o suficiente para suplantar esses amores de outros tempos. Tem de se fazer valer. Em honra a esses momentos que valem por todos os domingos de neura. Menos que isso é uma perda de tempo.

Convém insistir que a solidão não mora aqui. Sozinhas em casa, sim, mas nem por isso tristonhas e infelizes. Eric Klinenberg, autor do livro Going Solo: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone, explicava à Smithsonian Magazine, em 2012: "Uma das coisas que precisamos de fazer é a distinção entre viver sozinho e estar sozinho, ou estar isolado, ou sentir-se sozinho. São coisas diferentes. Na verdade, as pessoas que vivem sozinhas tendem a gastar mais tempo a socializar com amigos e vizinhos do que as pessoas casadas." E lembrava os efeitos da sociedade acelerada em que vivemos: 

"[…] Num momento como este, viver sozinho é uma espécie de solidão fortificante, uma solidão que pode ser produtiva, porque a sua casa pode ser um oásis longe do burburinho constante e da estimulação esmagadora da existência digital urbana." 

Klinenberg, que é também sociólogo e, sublinhe-se a título de curiosidade, casado, acrescentava um fenómeno interessante sobre a vida nas grandes metrópoles: "As cidades suportam um tipo de subcultura de pessoas solteiras que vivem sozinhas, mas que querem estar em público umas com as outras. […] Podem estar juntas vivendo sozinhas. Isso ajuda a transformar ser solteiro numa experiência muito mais coletiva." Não é um mito urbano. Há 16 anos que vivo num T1 apinhado de livros, DVDs, revistas, souvenirs de viagens que a minha mãe, em agonia, chama "tralha desnecessária" e raramente estou sozinha. Mais depressa me meto num avião para a Tailândia do que num T3+1 na Lapa, totalmente renovado, com o meu marido de sonho e as minhas crianças lindas de morrer, mas em compensação estou disponível para todas as combinações de última hora – a qualquer hora. 

Não tenho nada contra vidas em comum, acredito que a felicidade duplica quando partilhada, mas a liberdade entretanto adquirida compensa tudo o que (ainda) não aconteceu. 

Os amigos, a família redescoberta, os bebés que se tornaram sobrinhos por osmose, as oportunidades de emprego, o tempo infinito… Isto é melhor, ou vale mais, do que alguma das coisas que estou a perder? Não. Seria eu tão ou mais feliz se por acaso amanhã acordasse com um bebé no colo? É bem possível. Mas não foi assim que aconteceu.

Estamos cada vez mais longe da época retratada no episódio They Shoot Single People, Don't They?, da segunda temporada d’O Sexo e a Cidade, em que Carrie Bradshaw aparece na capa da revista New York de cigarro na mão, olheiras gigantes, cabelo despenteado e a legenda: "Single & Fabulous?" Já ninguém precisa de pedir desculpa por ter decidido permanecer sozinha em casa. Porém, este novo paradigma não é um ataque à instituição família nem o começo subtil de um manifesto chamado "O Fim dos Homens". Consigo lembrar-me de vários casais que admiro: os meus pais. Os meus amigos Maria Ana e António, juntos há tempo suficiente para me fazer acreditar no amor genuíno e quase fácil. À distância, Iman e David Bowie. Mais ainda: adoro ir a casamentos. E mesmo não sendo uma romântica incurável, sou uma emocional confessável, choro com músicas em que se apela aos corações partidos e às vagas de paixão inquebrantáveis. Num universo paralelo, podia apenas estar a ler este artigo, curiosa sobre a vida "animada" da jornalista que se esconde atrás do todo-poderoso nome Vogue, sentada no meu sofá de pele, enquanto os meus filhos brincam com elefantes de peluche na minha casa com vista para o Tejo. Mas não foi assim que aconteceu. Deste lado está uma folha em branco, mês após mês. E, muito em breve, um bilhete de avião pronto a levar-me ainda não sei bem para onde. Talvez encontre por lá alguém que também tenha histórias para contar. E que não se assuste com as memórias de 16 anos de (aparente) solidão. *Artigo originalmente publicado na edição nº177 da Vogue Portugal.

Ana Murcho By Ana Murcho

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