Opinião  

Rui Maria Pêgo: "O coming out é determinante para reclamar espaço numa narrativa social comum"

04 Jun 2019
By Rui Maria Pêgo

No mês do orgulho LGBTQI+, damos a palavra a Rui Maria Pêgo, apresentador de rádio e televisão, para escrever sobre o seu coming out na primeira pessoa.

No mês do orgulho LGBTQI+, damos a palavra a Rui Maria Pêgo, apresentador de rádio e televisão, para escrever sobre o seu coming out na primeira pessoa.

 

Existir não é fácil. Não sei se estou aqui a apresentar uma novidade... Mas não é! Existir como queremos custa. Maça. Dá trabalho. É um ato político feito carne. Mora na pele. E, pior que tudo, torna-se impossível de ignorar assim que o Processo de Metamorfose começa.

Demorei muito tempo a escrever este texto como a redação da Vogue elegantemente refutará caso alguém comente — obrigado, por isso, queridxs. Adiei muito a entrega porque escrever sobre o processo de coming out é, no fim do dia, abrir a porta para uma sala em obras e medir, sem se conhecer o tempo de pousio do estuque ou a libidinosa vontade de ceder de uma primeira “de mão”, a Evolução. 
Se fizer um exercício com vibe Excel, diria que não encontrei a fórmula para ser, simplesmente sei que o dizer aos outros quem sou se revelou com o tempo mais simples. Talvez seja essa a minha busca: a existência natural. O fim dos artifícios. Deixar de pedir desculpa por ocupar espaço.

Essa foi sempre uma das batalhas: o espaço. Quem cresce com segredos e educado para a vergonha — vergonha essa que não se esfuma numa nuvem de glitter quando se diz a outro: sou gay/bi/ poli/seja o que for —, quem cresce a ser ensinado a odiar o que se é, sabe bem como a sobrevivência se joga muitas vezes na violência. Viver com a sensação de se ser diferente — e somos todos quanto mais em contacto estamos connosco e com a diferença única de cada um — pode ser um inferno. Ninguém me contou. Nem vi num filme. Eu vivi. Cresci a controlar gestos. A ouvir que os homens não podiam gostar de roupa. Que os homossexuais eram doentes. Que o sexo anal é um pecado e um nojo. Newsflash: não é. Até recomendo.

"Viver com a sensação de se ser diferente — e somos todos quanto mais em contacto estamos connosco e com a diferença única de cada um — pode ser um inferno. Ninguém me contou. Nem vi num filme. Eu vivi."

A minha história não é um acontecimento fora do comum — e que pena — até porque desde 2016, o ano em que escrevi um texto após o atentado de Orlando onde vários seres humanos de todos os tipos morreram numa discoteca queer, a minha caixa de mensagens em qualquer rede social continua cheia de gente a pedir ajuda com medo da família, dos amigos, e de si mesmo.

Em 2019, há LGBTI+ apedrejadx pelo Sultão do Brunei; há gente aprisionada no Irão ou lésbicas espancadas, mais perto, por um condutor de uma app de transporte, em Lisboa. Os exemplos não têm de ir até um campo de concentração para homossexuais na Chechénia. Moram por todo o lado. Tragédias com mais ou menos glitz atravessam a História e são ainda fatais. Por várias razões, mas é muito por esta: quem respira de forma não normativa é um reminder constante de que a Vida, o que é ser homem ou mulher, não se faz a régua e esquadro. E é na História que quero pairar por momentos.

Não conheço a minha própria história porque ela não me foi contada. Ninguém me disse que o regime salazarista perseguia homossexuais e os prendia. Nunca me chegou às mãos um texto do António Botto numa aula de português. Não me foi explicado como um general foi à televisão durante o PREC explicar que a revolução não se tinha feito para “prostitutas e degenerados” em reação a um tímido Manifesto Homossexual de Ação Revolucionária. Revolução, sim. Mas com respeito! Tudo o que sei da luta pelos direitos LGBTI+ aprendi por minha conta e risco em documentários ou livros que não me foram entregues por um professor na idade em que não sabia quem era. A mortandade real — e o impacto da culpa — causada pela sida não me chegou aos ouvidos no recreio enquanto aprendia a fumar. Na cantina não houve uma conversa sobre a homossexualidade só ter deixado de ser crime em Portugal em 1981. Não se falava. Porque para a esmagadora maioria do meu universo branco, privilegiado, católico, isso não era tema. Preferíamos ostracizar quem dissesse vermelho. O intuito máximo? Pertencer. O que é, no mínimo, perigoso: nunca aprendi a pôr um preservativo numa banana na escola. Graças a Deus, sou um eterno autodidata.

"O coming out não é só essencial para rebater a vergonha. É fundamental para não esconder a essência e determinante para reclamar espaço numa narrativa social comum."

Resumindo: o coming out não é só essencial para rebater a vergonha. É fundamental para não esconder a essência e determinante para reclamar espaço numa narrativa social comum. Não serve só para iniciar um processo de pulverização social e inventarmos a vida que nos interessa com os protagonistas que nos querem bem, comporta, também, a invenção de um Todo que é diverso e não tolerante (!). Não há nada a tolerar! Temos todos o direito a existir da forma que entendermos!

É por isso que tornar visível é tornar igual. Não me canso de reproduzir isto. Tornar visível é tornar igual! Seja na política, na mercearia ou numa consultora. E é por isso que a luta das mulheres, a luta contra o racismo e as lutas da comunidade LGBTI+ estão de mãos dadas. A chave é a empatia. Somos todos muitas coisas. Hippies do amor, fãs de Game of Thrones, abusados e abusadores. Eu já agredi. Já fui agredido. Já pactuei com silêncios. Já diminui uma mulher. Já brinquei com o género. Tudo para tapar a minha vergonha ou a minha falta de coragem. Já fui todas essas coisas e tento fazer o caminho para desfazer esses nós.

"Tornar visível é tornar igual! (...) E é por isso que a luta das mulheres, a luta contra o racismo e as lutas da comunidade LGBTI+ estão de mãos dadas. A chave é a empatia."

Gosto de acreditar que aprendi com tudo isso. Hoje, quando olho para a sala onde vejo a minha identidade em obras, sei que o coming out foi a melhor coisa que fiz na vida. Não só porque me salvou de mim mesmo, mas sobretudo porque me aproximou de ti.

Testemunho originalmente publicado na edição de maio 2019 da Vogue Portugal.

Rui Maria Pêgo By Rui Maria Pêgo

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