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O meu quarto, o meu mundo

31 Jul 2019
By Mónica Bozinoski

Alegre casinha? Não, alegre quartinho. No nosso pequeno grande mundo, podemos não andar com a casa atrás das costas, mas é certo que vamos carregar o peso do quarto para onde quer que vamos.

Alegre casinha? Não, alegre quartinho. No nosso pequeno grande mundo, podemos não andar com a casa atrás das costas, mas é certo que vamos carregar o peso do quarto para onde quer que vamos.

© Getty Images
© Getty Images

Esta não é a história de um quarto. Se não fossem as voltas que damos, do conforto do quarto que espera por nós na casa dos nossos pais para o vazio desconhecido do quarto onde moramos no nosso primeiro ano como estudantes universitários, do quarto que habitamos no nosso segundo ano de curso para o quarto que mal vemos no nosso terceiro e último ano de faculdade, do quarto que nos vê crescer mais uns centímetros no nosso primeiro estágio para o quarto que nos empurra para a vida mais adulta no nosso primeiro emprego, talvez fosse uma história de “e viveram felizes para sempre”.

Não nos interprete mal. O “felizes” está lá, o “para sempre” é que nem tanto. E é por isso que isto nunca poderia ser a história de um quarto – em vez disso, é a história de múltiplos espaços, espaços com quatro telas em branco que nos refletem co- mo espelhos, espaços mais ou menos temporários, que vão sendo mais ou menos moldados com a passagem do tempo, espaços que podemos chamar de “nossos”. 

“Ainda te lembras do teu primeiro quarto?”, pergunto a mim mesma enquanto tento traçar esta história entre quarto, menina e moça. Solto um pequeno riso e respondo, “não, nem por isso”. Lembro-me de ser em casa dos meus avós maternos. Lembro-me do armário que guardava os álbuns de fotografias antigas. Lembro-me dos peluches meticulosamente alinhados no parapeito da janela. Lembro-me dos livros, das cassetes VHS, das Barbies e dos seus vestidos, e da casa cor-de-rosa que, para uma miúda de um tamanho como o meu, era mais parecida com um palácio onde as princesas da Disney viviam. Apesar da memória ser escassa, a minha mãe diz-me que era muito bonito. Uma espécie de casa de bonecas, com cortinas e edredão a condizer. E eu acredito - da mesma forma que acredito que, quando somos projeções de nós mesmos em ponto pequeno, o nosso quarto não é o nosso quarto, mas sim as nossas brincadeiras e os nossos brinquedos, as nossas amigas e as nossas bonecas numa única ro- da, os nossos filmes de animação e os nossos livros com mil e um desenhos coloridos. 

E depois chegam os anos de adolescência, aqueles anos em que o nosso quarto passa a ser o nosso – ênfase no nosso – quarto. Aqueles anos em que, seguindo as palavras da cantora Luka, estamos “nem aí” e, como as pequenas grandes mulheres que achamos ser, dizemos “vou para o meu quarto” mais vezes do que aquelas que nos lembramos. Aqueles anos em que podemos fechar a porta e refugiar-nos num mundo que é só nosso – um mundo onde cabe um póster gigante da Britney Spears pendurado na parede, com um chapéu estilo fedora e um top curto que mostra o piercing no umbigo (aquele que vamos pedir à nossa mãe para nos deixar fazer e, mais tarde, vamos agradecer que a resposta tenha sido sempre “não, és muito nova para isso e vais-te arrepender”), uma pilha de revistas da Bravo de onde recortamos mais uns quantos pósteres (desta vez do Zac Efron porque, #crush) para colar dentro do armário e uma série de CD’s amontoados, que vão desde Avril Lavigne a 50 Cent.

 

Apesar de, como nós, como os nossos gostos, como as nossas influências, como os nossos sentimentos, como os nossos moods, o nosso quarto de adolescente ser a definição de all over the place, é aqui que começamos a perceber o porquê do nosso espaço – do nosso próprio espaço – ser tão importante. É ali, entre as quatro paredes decoradas com fotografias, entre as estantes cheias de livros que nos vão moldando, entre as cómodas que ocupamos com pequenos objetos que nos vão definindo, que encontramos a liberdade para ser quem somos. A liberdade para decidir que queremos fechar a porta. A liberdade para viajar num universo feito por nós, para nós. A liberdade para tecer sonhos e esperanças. A liberdade para rir enquanto dançamos e cantamos com o nosso melhor amigo. A liberdade para chorar enquanto tentamos não esgotar os “minutos” em desabafos com a nossa melhor amiga. 

Quando o fio que nos liga à adolescência é cortado para dar lugar à corda bamba que nos vemos obrigados a atravessar pela primeira vez – aquela que traça o caminho entre sairmos do carinhosamente chamado “ninho” e procurarmos um lar que, pelo menos na cabeça de alguém que sai de casa para desbravar o desconhecido, nunca o será verdadeiramente -, a nossa relação com o nosso quarto muda com a mesma rapidez com que nós próprios mudamos. Primeiro, chega a sensação de desconforto. O sentimento de vazio. A ideia de que não pertencemos ali. A cama é estranha e o colchão ainda mais. As paredes parecem sufocar-nos. O ar não circula da mesma forma. O barulho de alguém a entrar e a sair sobressalta-nos. “Isto não é o meu quarto”, dizemos, muito baixinho e muito devagar, enquanto tentamos crescer mais depressa do que achávamos que íamos precisar de crescer. Acordamos e continuamos a desempacotar caixotes e a esvaziar sacos. Estendemos um cobertor aconchegante na cama – e, de repente, ela deixa de parecer estranha. Penduramos molduras familiares nas paredes – e, de repente, elas deixam de nos sufocar. Montamos um candeeiro de teto na nossa cor favorita, uma cómoda que enchemos com os nossos livros, revistas e caixas decorativas – e, de repente, o ar circula como sempre circulou. Vemos o rosto que entra e sai – e, de repente, o barulho deixa de nos sobressaltar. Sem darmos por isso, aquele espaço que não nos dizia nada, de repente, diz-nos tudo.

Aprendemos a gostar dele e ele aprende a gostar de nós. Aprendemos a ser um com ele e ele aprende a ser um connosco. Aprendemos que conseguimos sempre torná-lo mais nosso – seja com um novo candeeiro que nos guia pela noite enquanto mergulhamos na imensidão das páginas que temos de estudar para a frequência de amanhã ou com um simples conjunto de post-it amarelos que as nossas colegas de casa nos colam na parede, só porque sim. Aprendemos que um quarto, independentemente do tempo que passamos dentro dele, é sempre nosso. Aprendemos que um quarto, independentemente daquilo que passamos dentro dele, é um poço de memórias. Apren- demos que um quarto, independentemente daquilo que sentimos quando o vemos pela primeira vez, é sempre importante. E, quando chega a hora de nos despedirmos dele, não temos medo daquilo que vamos encontrar a seguir. Afinal de contas, ele também nos ensinou que a mudança pode ser boa. 

"Mas este quarto também continua a ser o fio condutor para quem somos e para quem fomos. O nosso pequeno mundo. O nosso pequeno refúgio. O nosso pequeno santuário."

Hoje, longe de todos os quartos que foram os meus quar- tos, o meu quarto tem um pouco de todos eles. Não tem Barbies, nem cassetes VHS, nem revistas da Bravo, nem pósteres gigantes da Britney Spears – apesar de estar muito perto de ter um vinil de ...Baby One More Time, o primeiro álbum do qual tenho memória. Admitam. Uma vez Britney, para sempre Britney. Apesar de não ter nada disto, tem uma pequena boneca da personagem Eleven de Stranger Things e um pequeno boneco de Freddie Mercury, com as roupas que o cantor usou no concerto de Wembley em 1986, meticulosamente alinhados, como aquela filinha de peluches no parapeito da janela, com uma pilha de revistas que me levam para o quarto de adolescente, aquele quarto onde encontramos “a liberdade para tecer sonhos e esperanças.”

Os livros continuam lá, espalhados um pouco por toda a parte em pequenos blocos, dos que já foram lidos àqueles que ainda estão por ler. Das caixas que guardam os nossos pedaços, do puzzle que dissemos que íamos fazer, mas nunca chegámos a acabar, aos cuidados de Beleza sem os quais não conseguimos viver, as almofadas e cobertores que nos confortam e os pequenos pormenores decorativos, as velas que gostamos de acender depois de um dia (demasiado) longo, o bobble head de um cão vindo de Londres batizado de James (as in James Bond) e o quadro de Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany’s (aquele cliché que é sempre bem-vindo)... também lá estão. É, neste quarto continua tudo um bocado all over the place.

Mas este quarto também continua a ser o fio condutor para quem somos e para quem fomos. O nosso pequeno mundo. O nosso pequeno refúgio. O nosso pequeno santuário. A nossa pequena casa longe daquela que sempre foi (e sempre será) a nossa casa. Ainda que tenhamos de dar todas estas voltas ao cordão e ainda que o relógio possa teimar em soar o alarme que, eventualmente, irá ditar o fim do nosso direito de lhes chamar isso, os nossos quartos serão sempre os nossos quartos. 

 

Artigo originalmente publicado na edição de julho de 2019 da Vogue Portugal

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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