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Que grande cenário

19 Dec 2018
By Rui Matos

Qual é a coisa, qual é ela que é idílica, estrondosa e megalómana e não é uma coleção da Commes de Garçons? São os cenários que se erguem nas passerelles de nomes como Chanel, Louis Vuitton e Calvin Klein.

Qual é a coisa, qual é ela que é idílica, estrondosa e megalómana e não é uma coleção da Commes de Garçons? São os cenários que se erguem nas passerelles de nomes como Chanel, Louis Vuitton e Calvin Klein.

Chanel, Cruise 2019 © Chanel
Chanel, Cruise 2019 © Chanel

Três de maio de 2018. Quando pensávamos que Karl Lagerfeld não tinha mais trunfos nas suas mangas Chanel, eis que o kaiser da Moda nos brinda com um cruzeiro de 148 metros ancorado em pleno Grand Palais, no epicentro de Paris. Caro leitor, se ficou boquiaberto com esta concretização, é preciso revelar mais uma informação: este cenário não passou de um plano B. “Queríamos navegar e levar os nossos convidados num cruzeiro de verdade”, contou Bruno Pavlovsky, presidente de Moda da Maison francesa, ao diário britânico The Guardian. “Trabalhamos nesse plano durante dois anos, mas encontrar o barco perfeito revelou-se impossível”, concluiu. Esta alternativa recebeu o nome de La Pausa, uma simples homenagem a uma das casas de Coco Chanel na Cote D’Azur e demorou cerca de um mês para ser instalado. O som é também uma componente importante, e para dar ainda mais realidade ao cenário, cordas rangentes e gaivotas ecoaram dentro do edifício parisiense, que recebeu as miúdas mais badaladas da indústria e as celebridades mais queridas da Maison. Os coordenados foram tão surpreendentes como se estava à espera. Cor, muito tweed, boinas, padrões à la Riviera Francesa e um casting de modelos como nunca antes visto (Maria Miguel uma delas). Um verdadeiro espetáculo que, uma vez mais, nos provou que as passerelles são momentos de verdadeira magia, entretenimento e um lugar propício a viver uma das experiências mais marcantes da nossa vida. True story: isto não é uma hipérbole.

Mas nem sempre o cenário dos desfiles foi assim, hiperbolizado. Numa primeira fase, em meados do início do século XX, os desfiles começaram por ser apresentações informais, mas privadas, exclusivas às clientes dos criadores. As modelos deambulavam casualmente pelo salão enquanto a clientela as observava com uma chávena de chá na mão e um canapé na outra. Três horas. Três horas era o tempo destas apresentações, que muitas das vezes eram repetidas todos os dias durante semanas. Enfadonho? Tirando a parte do chá e do canapé, sim, muito. Devido ao crescimento de compradores estrangeiros que visitavam a Europa para ter acesso a estas criações, as datas foram afixadas em 1918, tal como escreve Caroline Evans em The Enchanted Spectacle. Fashion Theory. As apresentações passaram a ser bianuais, primavera/verão e outono/inverno, formando assim aquilo que hoje conhecemos como Semanas de Moda.

© Getty Images
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Fast forward até aos anos 90. Quebraram-se muitos preconceitos, iniciaram-se movimentos e deixaram-se para trás os moldes chatos das apresentações, que apesar de terem evoluído durante a década de 70 e 80 mais não eram do que uma passagem de modelos sem grandes alaridos. Nos 90 assistiram-se aos primeiros desfiles com estatuto de espetáculo que marcaram uma geração de jornalistas. Alix Browne é uma delas. Trabalhou no Women’s Wear Daily, no The New York Times e no International Herald Tribune e, no ano 2016, publica Runway: The Spectacle of Fashion com a Rizzoli, um livro com mais de 200 páginas que nos transporta para os primeiros anos de carreira como jornalista de Moda. Neste coffee table book, há uma ênfase especial para o outono/inverno de 1995 do britânico Alexander McQueen, o Highland Rape Show onde “as modelos vinham na nossa direção, os corpetes em tartan, os vestidos em renda destruídos e os olhos selvagens”, uma apresentação de que Alix ainda não se conseguiu recuperar. Palavras da própria.

 

A magia dos desfiles nasce de um casamento harmonioso entre as criações e os cenários, que são pensados até ao mais pequeno pormenor, para que nada falhe e tudo aconteça como o planeado. Randall Peacock, responsável pelos espetáculos que Tommy Hilfiger tem vindo a apresentar nos últimos anos, revelou até em entrevista ao Fashionista que os cenários começam a ser preparados “bem cedo, cinco meses antes, é um grande empreendimento e um processo bastante colaborativo”.

Claro que falar de cenários, espetáculos e experiências requer, quase obrigatoriamente, falar de Chanel, Dior, Louis Vuitton e Alexander McQueen. Nomes de peso que moldaram a maneira como encaramos a passerelle e como descrevemos os desfiles. Na Maison francesa, Lagerfeld não dá qualquer sinal de um possível abrandamento. Além do já referido navio, o diretor criativo brindou-nos com um supermercado, um casino, uma floresta, um aeroporto, isto para referir os mais marcantes dos últimos anos, se é que seja justo nomear um único cenário.

Se Karl Lagerfeld nos dias de hoje nos enche as medidas, Alexander McQueen foi um pioneiro neste tipo de espetáculos. É difícil esquecer a primavera/verão de 1999 do criador britânico que, muito à frente do seu tempo, introduziu dois robôs no soalho de madeira da Gatliff Road Warehouse, em Londres. Os modelos navegaram entre dois robôs que somente ganharam vida quando Shalom Harlow surgiu com um vestido sem alças branco, apertado no busto com um cinto em pele bege. Harlow, parada sobre uma plataforma circular, deu início à sua performance. “Era quase como se os robôs tivessem acordado de um longo período de descanso. Ganharam consciência e perceberam que tinham companhia. A curiosidade aumentou e tornaram-se agressivos e frenéticos”, descreveu a modelo canadiana na abertura da exposição Savage Beauty que abriu no MET Gala um ano depois da morte do criador. “A minha relação mudou no momento em que comecei a perder o controlo e eles começaram a assumir o poder. Pulverizaram tinta e criaram uma pintura abstrata num vestido tão simples. Quando terminaram, recuaram e eu caminhei quase a cair até à plateia”, conta.

E agora tudo voltou a mudar, como que por magia. A começar nas primeiras filas, que deixaram de ser ocupadas apenas por editores e jornalistas para o serem também por it girls e influencers. Trocaram-se as palavras pensadas e as descrições escritas por vídeos e fotografias nas redes sociais feitas no momento. Um upgrade natural numa era tão digital como a que vivemos. “Os smartphones são incríveis de tantas maneiras que parece tolice sentir saudades dos dias em que uma imagem não dava volta ao mundo num nanossegundo”, escreve Suzy Menkes num dos seus textos mais emblemáticos, Circus of Fashion, em fevereiro de 2013. Afirmações como estas fazem-nos parar e pensar no panorama atual da indústria e, consequentemente, questionar as vantagens e as desvantagens de optar pelo conforto que um livestream nos oferece em detrimento de uma experiência ao vivo e a cores.

No passado mês de julho, em Paris, Claire Waight Keller, atual diretora artística da Givenchy, tomou conta do jardim do edifício dos Arquivos Nacionais de Paris para apresentar as propostas da Alta-Costura para o inverno de 2018. A coleção homenageou os arquivos do fundador da Maison. Uma jogada de mestre por parte da designer britânica que criou o ambiente perfeito para permitir que as componentes já referidas – a experiência e o espetáculo – convivessem no mesmo espaço. Apesar de as Semanas de Moda serem dominadas e analisadas por números de seguidores e impressões, a magia destas apresentações não desapareceu, mas atualizou-se para continuar a providenciar experiências cada vez mais grandiosas. Quanto ao futuro, talvez só uma bola de cristal nos consiga ajudar a prever o próximo cenário de Karl Lagerfeld para a Chanel. A única coisa que temos garantida é que não esperamos nada menos do que algo mágico.

 

* Artigo originalmente publicado na edição de outubro de 2018 da Vogue Portugal. 

Rui Matos By Rui Matos

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