Beleza   Tendências  

Vamos distanciar-nos das mensagens tóxicas sobre o nosso corpo?

22 Jun 2020
By Mónica Bozinoski

Piadas sobre comer todos os snacks da quarentena, memes sobre ganhar peso e tweets sobre o “antes e depois” do isolamento. Talvez esteja na altura de nos distanciarmos das mensagens que nos fazem sentir mal em relação ao nosso corpo.

Piadas sobre comer todos os snacks da quarentena, memes sobre ganhar peso e tweets sobre o “antes e depois” do isolamento. Talvez esteja na altura de nos distanciarmos das mensagens que nos fazem sentir mal em relação ao nosso corpo. 

©Direção criativa e styling de Veronica Bergamini. Fotografia de Carlos Teixeira. Maquilhagem de Nuno Lopes. Cabelos de Rui Rocha.
©Direção criativa e styling de Veronica Bergamini. Fotografia de Carlos Teixeira. Maquilhagem de Nuno Lopes. Cabelos de Rui Rocha.

“Eu não uso máscara para me proteger do vírus. Eu uso máscara para não engordar.” Diz-se por aí que a primeira vez nunca se esquece, e a teoria pode aplicar-se ao momento em que os nossos olhos se cruzam com o tipo de narrativa que, nas entrelinhas, nos parece dizer que ganhar peso é tão assustador quanto contrair um vírus. Este meme foi o primeiro, mas estava longe de ser o único. Desde o início da crise de saúde pública que continuamos a enfrentar variações da mesma mensagem, que têm surgido um pouco por toda a parte. “Estou a cinco quilos do Google Maps me incluir como rotunda.” “Fui pesar-me hoje de manhã e a balança disse: Por favor, pratique o distanciamento social. Uma pessoa de cada vez.” “Agora que uma pessoa está a ficar redonda é que desvalorizam o barril.” “Devido ao coronavírus, o meu corpo de verão vai ser adiado até 2021. Obrigada pela compreensão.” “Tenho más notícias. Alguém no nosso apartamento testou positivo à COVID-19. Chama-se balança, está em quarentena noutro quarto e, nos próximos meses, ninguém pode tocar nela ou usá-la.” A esta pequena amostra juntam-se ainda imagens da Barbie antes e depois do confinamento (spoiler alert: o depois envolve uma boneca com aquilo que alguns chamam de “uns quilos a mais”), GIF's de pessoas que comeram todos os snacks que tinham na despensa, e inúmeras publicações com o hashtag #quarantine15 – isto é, os sete quilos que vamos ganhar durante este período. Em plena pandemia mundial, é difícil não sentir um gosto amargo quando uma destas “piadas” infiltra o nosso feed de Instagram. Em plena pandemia mundial, é difícil não sentir um gosto amargo quando alguém nos diz para termos cuidado com as calças de fato de treino, porque as calças de fato de treino enganam. Em plena pandemia mundial, é difícil não sentir um gosto amargo quando se propaga a ideia de que, depois disto, nenhum de nós vai caber nas calças de ganga. 

Mafalda Gomes é blogger plus size e uma das vozes portuguesas que, através das redes sociais, tem vindo a estabelecer um diálogo sobre todos estes temas com os seus seguidores. À Vogue começa por contar que “o feedback tem sido unânime” e “muitos sentem-se pressionados por esta crescente diet culture talk em tempos de quarentena, seja para praticarem exercício de forma a evitar o aumento de peso, seja para terem cuidados acrescidos com a comida.” Sobre as mensagens que propagam o medo de ganhar peso e a necessidade de praticar exercício físico de forma desenfreada, Mafalda não tem dúvidas que as mesmas representam uma série de riscos. “Além da perpetuação da gordofobia, porque as pessoas revelam não só medo de engordar, mas também tecem comentários cheios de desdém sobre corpos alheios mais pesados e quem tem ganho peso durante a quarentena, cria uma ansiedade crescente e relacionada com a nossa imagem corporal, num momento em que essa devia ser uma das nossas menores preocupações”, defende a blogger. “Com o mundo virado de pernas para o ar, é bastante preocupante que um dos nossos maiores medos enquanto sociedade seja o nosso peso. De alguma maneira, sinto que as pessoas se focam nisso porque é um aspeto que acreditam poderem controlar mas, por outro lado, também espelha a relação pouco saudável que muitos têm com a comida. Acho que a pandemia vai criar espaço para o aumento de problemas relacionados com distúrbios alimentares, em parte porque é o 8 ou o 80: ou a comida é vista como um escape e conforto, ou é vista como algo a evitar na totalidade, sempre acompanhada por exercício físico e como forma de compensação ou punição.” Para Maria Inês Galvão, psicóloga clínica da Psinove, essa mesma “necessidade psicológica de controlo, de sermos capazes de influenciar o que nos rodeia e de criarmos objetivos e o caminho para os cumprir” pode ajudar a explicar o porquê de, num momento repleto de incerteza e imprevisibilidade, estarmos tão “fixados” no peso e na comida. “Também o nosso corpo e os elevados níveis de stress vividos nos tempos atuais ajudam a perceber essa ‘fixação’. Em situações de maior stress, tentamos regular e apaziguar emoções desagradáveis que surjam. Algumas pessoas podem encontrar essa regulação comendo grandes quantidades de comida num curto espaço de tempo (binge eating) e outras restringindo a sua alimentação (não comendo até) numa tentativa extrema de exercer controlo sobre si e o seu meio”, explica a psicóloga clínica, que não descarta o impacto das redes sociais nesta questão. “[As redes sociais] podem ser um meio para constante comparação com os outros e de confronto com os conteúdos partilhados por eles. Como se os conteúdos das redes sociais estivessem, permanentemente, a reforçar a necessidade de nos preocuparmos com o corpo, a imagem e a comida. O viés da disponibilidade diz-nos que é mais provável atribuirmos relevância e significado ao que conseguimos imediatamente recordar, sendo que as mensagens e ‘piadas’ constantes sobre o peso tornam este conteúdo mais presente e colocam-nos num estado hipervigilante relativamente a ele.” 

“Com o mundo virado de pernas para o ar, é bastante preocupante que um dos nossos maiores medos enquanto sociedade seja o nosso peso.”

Para Helena Morais Cardoso, terapeuta de amor-próprio, as mensagens e memes sobre ganhar peso durante a quarentena também vão criar uma pressão interna acrescida, numa altura em que precisamos de tudo menos dela. “Estamos num momento de muita incerteza, e a incerteza traz-nos a falta de controlo sobre o nosso meio e sobre a nossa vida, e isso traz-nos ansiedade”, explica em entrevista à Vogue. “Se isto já é uma coisa que nos está a afetar a todos, emocionalmente e psiquicamente, eu não vejo necessidade de trazer mais um foco de preocupação, de tensão e de pressão interna. Já não basta estarmos numa situação tão atípica, e estarmos preocupados com tanta coisa, agora ainda temos que nos preocupar com a forma como vamos sair desta quarentena em termos físicos, e se estamos a fazer o suficiente para cuidar de nós na parte física.” Na opinião da especialista, e face à situação que hoje vivemos, a questão também passa por estabelecer algum tipo de prioridades: “Eu até posso ver um meme e achar piada, e até repassar, mas tenho de perceber que isso, neste momento, não é a minha prioridade. A minha prioridade é estar bem de saúde, é cuidar de mim, é manter-me profissionalmente ativa, ou mentalmente ativa noutro sentido.” “Não será disparatado estarmos a abordar esse tema agora? Não seria melhor se nos privilegiássemos e cuidássemos de nós em vez de estarmos preocupados com o beach body deste ano? Era a mesma coisa que eu estar a discutir contigo qual é o design da máscara. Será que isso é relevante nos tempos que correm? A relevância está noutro lado. Há coisas que, naturalmente, deveriam perder palco. E o tema é precisamente esse, é que não perdem.” E se a luz dos holofotes continua tão intensa hoje como num qualquer outro momento, o que é que isso diz de nós? “A sociedade atual dá uma considerável importância à aparência, criando a ideia de que alcançar a felicidade, o amor, o sucesso e a imagem corporal são fatores preferenciais e interdependentes. É assim criada a ilusão de que temos de gostar da nossa aparência todos os dias”, diz Cristina Sousa Ferreira, psicóloga na Oficina de Psicologia. “Se isto não acontecer podemos não ser felizes ou qualificados para fazer o que gostamos ao nosso melhor nível, e muito se tem falado na imagem e na sua importância para carreiras de sucesso. Gostamos que gostem de nós e gostamos de ser bonitos porque isso nos cria a expectativa de que vão gostar de nós. E uma situação de pandemia não é exceção.” 

Aquilo que foge a todas as regras, contudo, é o momento que todos nós estamos a atravessar – e importa perceber que cada um de nós vai lidar com ele de forma diferente, e que cada um de nós vai ver uma imagem diferente nos memes sobre subir à balança e pesar por dois. “Embora cultura de dieta nas redes sociais certamente não seja novidade, ela torna-se mais impactante quando associada aos gatilhos adicionais de isolamento e incerteza que acompanham a pandemia”, defende Cristina Sousa Ferreira. “Enquanto algumas pessoas conseguem tirar o melhor proveito disso, usando o tempo em casa para reorganizar, comer alimentos mais saudáveis ou ter tempo extra para exercitar, para outras – particularmente aquelas com ou em recuperação de perturbações do comportamento alimentar – estas mensagens constantes podem levá-las a cair em hábitos prejudiciais. Os sintomas de uma perturbação alimentar também incluem pensamentos obsessivos sobre comida, peso ou exercício.” Como refere Maria Inês Galvão, “é necessário não esquecer que o humor pode ser um gatilho para que nos sintamos mal com o nosso próprio corpo” e que “um foco tóxico ou desproporcionado (individual e/ou grupal) no peso e em ‘piadas’ sobre ele pode ser desafiante para quem tem dificuldade em aceitar e gostar de si e do seu corpo.” Para além disso, salienta a psicóloga clínica da Psinove, “para quem sofre com perturbações do comportamento alimentar (PCA), mensagens que sugiram que ganhar peso é uma das piores situações da quarentena podem ser lidas e interpretadas como se quem não tem um determinado tipo de corpo, ‘o corpo ideal’, tem um corpo passível de ser ridicularizado. Mesmo quando a mensagem ou ‘piada’ é sobre o corpo do próprio não se antecipa que se pode provocar sensações semelhantes nos outros, nomeadamente em quem sofre com PCA.” Para além de todos estes sentimentos, Helena Morais Cardoso chama ainda a atenção para o facto destas “piadas” despertarem sentimentos de insuficiência com o corpo e criarem ainda mais sistemas de pressão naqueles que já lidam com este tipo de temas e que se debatem com questões de peso no seu dia a dia. 

“É necessário não esquecer que o humor pode ser um gatilho para que nos sintamos mal com o nosso próprio corpo.” 

Em caso de dúvida, o melhor remédio é mesmo a empatia. Um ato que, reflete Mafalda Gomes, nem sempre é administrado na dose devida. “Sempre existiu muita pouca empatia no que diz respeito a assuntos relacionados com o peso, mesmo em grandes núcleos feministas, onde a questão da gordofobia e dos distúrbios alimentares não são levados com tanta seriedade, fora no resto da sociedade e em grupos que não estão tão consciencializados para estes temas que afetam, na maioria, mulheres e pessoas não binárias”, defende a blogger plus size. “Dos memes natalícios como ‘Vejo-vos muito sorridentes, já se pesaram?' à pressão para começar a trabalhar no beach body até o verão chegar, são muitos os comportamentos que revelam a falta de empatia para com quem tem distúrbios alimentares, está em recuperação, ou simplesmente no caminho da aceitação corporal. O que não esperava era estarmos no meio de um momento tão pesado e que o nosso foco principal fosse 'manter a linha' ou demonizar a comida.” No que diz respeito a este tema, admite, “falta a consideração de nos colocarmos no lugar dos outros, procurar saber a sua história e porque é que estes comportamentos são problemáticos e devem ser mitigados”. Ainda assim, Mafalda Gomes não deixa de acreditar que é possível aprender. “Eu compreendo que para alguém que corresponda ao padrão de beleza, muitas destas questões nem sequer lhe passem pela cabeça, mas sinto que nos dias que correm, não faltam testemunhos e tantos outros meios para nos educar em relação ao assunto.” Em caso de dúvida, o melhor remédio é mesmo a empatia. Um ato que, hoje e sempre, deve ser tanto de nós para o outro, como de nós para nós. “Pessoas com corpos de todas as formas e tamanhos estão a ter de lidar com os desafios que este período atípico tem colocado. Os momentos de grande ativação emocional, sem sabermos como a regular, podem ‘reabrir’ feridas psicológicas, tanto nossas como dos outros”, explica Maria Inês Galvão. “Sermos aceitantes e gentis connosco próprios e com os outros (que nos rodeiam fisicamente ou nas redes sociais), com o nosso corpo e com o corpo dos outros, permite-nos não intensificar o nosso sofrimento psicológico e não nos sentirmos assoberbados por ele.” 

Tal como a psicóloga Cristina Sousa Ferreira, que vê na prática da compaixão uma forma de nos cuidarmos e protegermos, também Helena Morais Cardoso chama a atenção para a importância de sermos mais gentis. “Eu acho que uma das mensagens mais danosas é a ideia de teres uma quarentena produtiva, de rentabilizares a quarentena. De fazeres exercício, de fazeres bolos, de trabalhares, de seres a melhor mãe. O que aumenta, para nós que estamos a receber esta informação, a insuficiência. Estás a ser requisitada para uma série de coisas que, mais uma vez, aumentam a pressão”, defende a terapeuta de amor-próprio. “O que eu digo é: sê um bocadinho gentil e compassiva contigo mesma, seja na comida, seja no exercício, seja no trabalho. Lembra-te que isto é uma quarentena por questões de saúde pública. A nossa realidade está alterada. E se a minha realidade está alterada, é normal que eu também esteja. Não vamos para os extremos da indulgência, nem vamos pôr em risco a nossa saúde física e a nossa saúde emocional, mas também não vamos exagerar nesta pressão, nesta eficácia, e neste pedido para rentabilizar a quarentena.” Para Helena Morais Cardoso, essa mesma gentileza e compaixão começa pelo auto-respeito e pela aceitação. “Se eu estou num estado de energia vital em que não consigo praticar exercício com tanta regularidade, se calhar devo respeitar-me um pouco mais, sabendo que estou num momento mais frágil. Como estou numa fase tão atípica, se calhar devo contrariar esse impulso de me forçar a alguma coisa só para fazer o check, e respeitar um bocadinho mais aquilo que está a acontecer comigo, e aceitar isso”, explica a terapeuta de amor-próprio, reforçando a importância de estabelecer prioridades. “Neste momento, é importante que tu escolhas qual é a tua prioridade. É tão simples quanto isso. Na minha opinião, enquanto profissional da área, é importante que tu te escolhas enquanto prioridade, ao invés de escolheres uma aprovação exterior. Ao invés de estares preocupada com aquilo que o exterior te está a pedir, qual é a tua prioridade?” Para aqueles cuja prioridade é viver uma quarentena livre de memes e mensagens tóxicas sobre o seu corpo e o seu peso, Mafalda Gomes deixa a sugestão. “O meu maior conselho para quem se quer manter online sem abdicar da sua sanidade mental é deixar de seguir contas de social media que passam mensagens triggering ou que não se alinham com o seu mindset”, afirma a blogger, aconselhando a procura de informação sobre movimentos como body neutrality positivity, aliada a uma boa leitura, se possível. “Aconselho dois livros ótimos: o Beyond Beautiful, para fazerem as pazes com o corpo, e o Train Happy, para quem quer treinar por gosto e amor ao bem-estar, sem a pressão da balança, e desmistificar preconceitos sobre fitness pelo meio.” E termina, claro, com kind regards: “Estamos a viver um momento muito peculiar, temos de ser gentis connosco, aceitar os dias menos bons, criar mecanismos para lidarmos com toda esta situação e fazer escolhas que façam sentido para nós. (...) É ok o nosso peso flutuar. O nosso valor enquanto pessoa mantém-se independentemente dos quilos a mais ou a menos da quarentena, e o nível de produtividade destes dark days não determina quem somos enquanto indivíduos. Não há vencedores, estamos todos a tentar sobreviver.”

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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